Sentença de Julgado de Paz
Processo: 22/2019-JPVNP
Relator: CRISTINA EUSÉBIO
Descritores: ASSUNÇÃO DE DÍVIDA. EMISSÃO DE CHEQUE PARA GARANTIA DE CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE TERCEIRO
Data da sentença: 10/23/2019
Julgado de Paz de : VILA NOVA DE POIARES
Decisão Texto Integral: SENTENÇA
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RELATÓRIO:
A, identificada a fls. 1 , propôs, em 26 de Julho de 2019 contra B melhor identificada a fls. 1 e 22, a presente acção declarativa de condenação, pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 4.243,65 € (Quatro mil, duzentos e quarenta e três euros e sessenta e cinco cêntimos) por falta de pagamento de um cheque na quantia de 3850,00€, bem como juros de mora sobre tal montante, desde a data em que o cheque foi depositado e devolvido pela compensação do Banco de Portugal.
Alega, em suma, que a demandada preencheu, assinou e lhe entregou um cheque, para pagamento de rendas devidas por Paulo Paiva, companheiro da demandante e não pagas. Mais alega que o depositou na sua conta bancária, tendo o mesmo sido devolvido por ter sido dado como extraviado.
Para tanto, alegou os factos constantes do seu Requerimento Inicial de fls. 1 a 5, que se dá por integralmente reproduzido.
Juntou 2 documentos (fls. 6 a 11) que igualmente se dão por reproduzidos.
Regularmente citada, veio a demandada apresentar contestação de fls. 17 a 21, defendendo-se por excepção por ilegitimidade passiva – considerando não estar obrigada ao pagamento das rendas devidas por terceiro, uma vez que não é titular do contrato de arrendamento - e caso julgado – dado que o cheque foi dado à execução tendo os embargos que apresentou sido considerados procedentes.
Juntou 2 documentos (fls. a 23 a 28).
A demandante pronunciou-se por requerimento escrito acerca das excepções invocadas – fls. 35 a 40.
Tendo a Demandante afastado o recurso à Mediação, procedeu-se á marcação da Audiência de Discussão e Julgamento, para o dia 15 de Outubro de 2019.
Procedeu-se à realização da Audiência de Julgamento, com observância do formalismo legal, conforme da respectiva acta melhor se alcança.
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Ao tribunal cabe decidir se a quantia aposta no cheque é devida pela demandada, apreciadas que sejam as excepções invocadas.


QUESTÕES PRÉVIAS
Da excepção de ilegitimidade
Em termos gerais, a legitimidade não constitui uma qualidade pessoal das partes, referente aos processos, mas uma posição delas em face do processo concreto – o interesse de cada uma delas em determinado processo (cfr. Antunes Varela, RLJ, ano 114.º, p.139). --
Significa isto que “É uma posição de autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objecto do processo” – Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, 2.º, p.153.
Dispõe o n.º 1, do Art.º 30.º do Código de Processo Civil (CPC) o seguinte: “O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer”. ---
O interesse tem de ser direto, no sentido de que não basta um mero interesse indireto ou reflexo, isto é, não basta que a decisão da causa seja suscetível de afetar, por via da repercussão, uma relação jurídica de que a pessoa seja titular.
Por seu turno, dispõe o n.º 3, do art.º 30.º, do CPC que “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”.
Ora, do requerimento inicial resulta que a demandante, se arroga de direito sobre a demandada, independentemente da relação contratual com terceiros, porquanto alega ter recebido da demandada um cheque para pagamento de determinada quantia.
Ora, da forma como é configurada a acção não temos dúvidas de que a demandada tem interesse em contradizer a presente acção, conferindo-lhe legitimidade processual.
Dissipadas as dúvidas no plano adjectivo, diremos que, no plano substantivo, a legitimidade ou ilegitimidade da demandada, apenas poderá ser apreciada após a produção de prova e perante esta.
Da excepção de caso julgado
A demandada alega que a presente acção terá uma tríplice identidade com a acção executiva n.º C/17.4T8CBR que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Juízo de Execução de Coimbra J1, juntando cópia da decisão proferida no âmbito dos embargos de executado.
Ora, desde logo, a tríplice identidade entre a acção declarativa e a executiva, apenas poderia proceder, caso, nos embargos de executado, tivesse sido discutida e apreciada a relação subjacente ao título executivo dado à execução.

Ora, da atenta leitura da douta decisão, junta aos autos, podemos concluir que, os embargos foram considerados procedentes, porquanto se considerou que o cheque em causa é destituído de força executiva. A relação cambiária subjacente à emissão do cheque em causa nos presentes autos não foi apreciada naquele processo executivo.
Ora, é disso mesmo que se trata, na presente acção. O que é pedido a este tribunal é que aprecie da validade da obrigação que terá, ou não, sido assumida pela demandada perante a demandante.
Assim, improcede a excepçao de caso julgado, devendo os autos prosseguir os seus termos.
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O Julgado de Paz é competente em razão do valor, da matéria e do território.
Não existem nulidades que invalidem o processado.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade jurídica e são legítimas.
Valor da causa: 4243,65€. (quatro mil, duzentos e quarenta e três euros e sessenta e cinco cêntimos) - artºs 297º nº1 e 306º nº2, ambos do C. P. C
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FUNDAMENTAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
Com interesse para a decisão da causa, ficaram provados os seguintes factos:
1º A demandante é dona e legitima proprietária do prédio urbano composto por casa de habitação sito na Rua D, Vila Nova de Poiares, inscrito na respetiva matriz predial urbana da Freguesia de Poiares (------) com o artigo ----; (doc. Fls. 6 a 9)
2º Na data de 19 de Fevereiro de 2013, a demandante deu de arrendamento o descrito prédio a E, casada com F tendo como avalista G, mãe daquela. (doc. Fls 6 a 9)
3º Tendo o respetivo contrato sido subscrito por E e G
4º As rendas devidas pelo referido contrato eram pagas pelo referido F, mesmo após se ter separado da mulher E
5ºSucede que, com referência a Dezembro de 2016, eram devidas rendas no valor de €3.850,00 (três mil oitocentos e cinquenta euros);
6º A demandante interpelou, por diversas vezes o Paulo Paiva para realizar o pagamento.
7ºNo dia 3 de Janeiro de 2017, a demandada -que mantinha um relacionamento amoroso com F naquela data - preencheu, assinou e entregou o cheque número -----------287 sacado sobre a sua conta bancaria aberta na H com o numero ------------588 cuja cópia consta a fls 10 e 11 dos autos, no valor de 3.850,00€.
8º A demandada sabia que o cheque não estava provisionado.
9º A demandante celebrou com o referido F, um acordo verbal de pagamento da quantia de 3850,00€ em 12 prestações mensais e sucessivas de 320,83€
10º O referido cheque foi entregue à demandante para garantia do acordo referido em 9.
11º Em 22 de Maio de 2017, a demandada deu o cheque como extraviado, junto da GNR – Posto Territorial da Lousã – cfr. Doc. Fls. 23 e 24.
12ºO referido cheque foi apresentado a pagamento no dia 16 de Junho de 2017 e devolvido pela compensação do Banco de Portugal em 20 de Junho de 2017, com a menção de “cheque extraviado por mandato do banco sacado- I”.
13ºCorreu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Juízo de Execução de Coimbra a acção executiva com o n.º C/17.4T8CBR, que foi e considerada extinta na fase de embargos de executado, por decisão proferida em 13 de Abril de 2018. (cfr fls.25 a 28).
Não provados:
1- Nos dias que se seguiram, à emissão do cheque, quer a demandada quer o F foram pedindo à demandante para não apresentar o cheque a pagamento pois que a conta sacada não tinha provisão bastante, mas que ia aprovisioná-la o mais rapidamente possível.
2 – Que a demandada tenha contactado a demandante dando-lhe conta que havia dado o cheque como extraviado.
3 – Que o cheque tenha sido entregue pela demandada, pessoalmente à demandante em sua casa e que a negociação para pagamento da divida tenha sido realizada entre a demandante, a demandada e o F.
4- A demandada não sabia o fim a que se destinava o cheque, desconhecendo como foi parar às mãos da demandante.
5 – A demandada não sabia a origem da divida de 3850,00€ que o F tinha.
MOTIVAÇÃO
A convicção probatória do tribunal, de acordo com a qual se selecciona a matéria dada como provada ou não provada, ficou a dever-se ao conjunto da prova produzida nos presentes autos, tendo sido tomadas em consideração as declarações de parte da demandante e demandada, nomeadamente as que constituem confissão, bem como os documentos juntos aos autos.
Pese embora as diferenças nos respectivos depoimentos, -no que diz respeito à concreta negociação e à deslocação da demandada a casa da demandante- ambas referem que o cheque em causa nos presentes autos se destinava à prestação de uma garantia de pagamento a F, tendo chegado às mãos da demandante com tal finalidade.
A matéria dada por não provada, resulta da escassez da prova. Na verdade, a demandante depôs com um discurso coerente e verdadeiro mas não podemos esquecer que as suas declarações foram negadas, perentoriamente, pela demandada, sem que aquela tenha trazido aos autos outro meio de prova que infirmasse as suas declarações. Por tal motivo, os factos descritos supra ter-se-ão por não provados sob os n.ºs 1,2 e 3.
O facto não provado sob o n.º 4 resulta das declarações da própria demandada, que pese embora algo contraditórias e pouco coerentes, se logrou extrair que esta conhecia a situação, que o cheque se destinava a “caução” das rendas do Paulo e que se conformou, sem grande reflexão, com as consequências do seu acto.
O facto não provado n.º 5 resulta igualmente das declarações da demandada. Não é verosímil, pelo normal acontecer que alguém, com quem se mantém um relacionamento amoroso, tenha pedido a emissão de um cheque de um elevado montante, sem que tenha explicado as circunstâncias e para que serviria o dito cheque. Aliás, a demandada acabou por reconhecer que sabia ao que o cheque se destinava.
FUNDAMENTAÇÃO - MATÉRIA DE DIREITO
A Demandante ancora o seu pedido, com base no facto de ser portadora de um cheque, no valor de 3.850,00€, preenchido e assinado pela demandada e sacado sobre a H, que se destinava ao pagamento de rendas em dívida de terceiros para com a demandante.
Mais alega que com o preenchimento do cheque, a demandada assumiu, por si, o pagamento da dívida.
Tal cheque, haverá de ser considerado ao portador, na medida em que não se encontra preenchido o campo destinado ao beneficiário, pese embora contenha uma clausula expressa “não á ordem”.
Quando o cheque não contém o nome da pessoa a quem deve ser pago, pode sê-lo a qualquer um que se apresente a cobrá-lo, sendo pagável por simples apresentação, e transmissível por simples tradição, pelo que a simples posse de boa-fé é título suficiente de legitimação.
Ora, como resulta da matéria provada, a demandante recebeu o cheque, não se tendo apurado se foi a demandada a entregar-lho, pessoalmente ou se foi o referido companheiro Paulo Paiva. De qualquer modo, resultou das declarações da demandada que esta o preencheu e assinou sabendo o fim a que se destinava, tendo a mesma referido que serviria de “caução” ao pagamento das rendas devidas por aquele. Não se provou, assim que a demandante o tenha recebido de má-fé, pelo contrário, depositou confiança de que, caso o devedor não pagasse as rendas, sempre poderia fazer uso daquele cheque para pagamento da dívida.
No entanto, em Maio de 2017, veio a demandada revogar o cheque por extravio, quando na verdade bem sabia que havia passado o cheque, com que finalidade e que estava em poder da demandante.

Uma vez que, o referido cheque foi apresentado a pagamento, fora do prazo estabelecido no art. 29º da LUC e após a sua revogação, a obrigação cambiária extinguiu-se, como bem refere a sentença proferida nos embargos de executado referida no ponto 13 da matéria provada, restando a obrigação subjacente à emissão do referido cheque.
E é dessa relação subjacente que trata o presente processo.
O que nos é pedido avaliar é, na verdade, se ocorreu a assunção daquela dívida, resultante do incumprimento de um contrato de arrendamento da casa de morada de família de E e F, pela demandada.
Apurou-se que o cheque titulou uma “caução” de pagamento dada pela demandada ao devedor originário, nas palavras da própria.
A demandante referiu que fez um acordo com o devedor F, no sentido de que este pagasse a quantia em dívida de 3850,00€ em prestações mensais ao longo de 12 meses, tendo recebido o cheque como garantia de pagamento do acordado.
Por seu turno, a demandada refere que não tinha intenção de pagar aquela dívida, insistindo que este era um “cheque garantia” ou “cheque caução” que entregou ao F.
A demandada não podia desconhecer, no entanto, que com o preenchimento do referido cheque, se estaria a vincular ao seu pagamento, caso o devedor originário não cumprisse. E neste sentido existe assunção de divida de terceiro, ou seja a demandada vinculou-se a efectuar a prestação devida por outrem, caso este não cumprisse. Ao receber o cheque a demandante deu o seu assentimento. Encontra-se, pois preenchida a previsão constante do art. 458º do Código Civil.
Ficaram, claras, pese embora não expressas, as posições negociais de ambas as partes: assunção da divida, sob condição, por parte da demandada e aceitação por parte da demandante.
Citando o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 16 de Abril de 2013 consultável em www.dgsi.pt: “Não se tendo provado a existência de qualquer declaração negocial expressa nesse sentido, só poderá concluir-se pela verificação de uma assunção de dívida através de uma declaração tácita, isto é quando é dedutível de factos que com toda a probabilidade a revelam (art.º 217º, n.º 1, do C. Civil).
Para haver declaração tácita basta que o declarante tenha praticado factos dos quais se possa deduzir, com segurança, a vontade provável de ele emitir certa declaração. Os factos de que a vontade se deduz, na declaração tácita, chamam-se factos concludentes ou significativos.
Sendo a declaração a expressão objectiva da vontade do autor do acto, os factos concludentes devem revelar, com probabilidade plena, a vontade do declarante.
Na declaração tácita, a partir daqueles factos deduz-se uma vontade e dá-se como verificada uma declaração imputável a certa pessoa, existindo entre aqueles factos e a declaração um nexo de presunção, juridicamente lógico-dedutivo.
A declaração não é formada pelos factos concludentes, deduz-se deles, cabendo ao julgador apurar se de certo comportamento se pode deduzir, de modo indirecto, mas com toda a probabilidade, certa vontade negocial.”

Ora, para que a demandada se exonerasse da obrigação que assumiu perante a demandante ao emitir o cheque “garantia”, teria de provar, na presente acção, que a obrigação principal se havia extinguido, por qualquer forma, o que não aconteceu.
Pese embora, o aqui exposto, não podemos deixar de referir que o devedor principal não fica exonerado da sua obrigação decorrente do incumprimento do contrato de arrendamento, porquanto resulta dos autos que a demandada não agiu com qualquer intuito de liberalidade.
Quanto aos juros de mora peticionados, diremos que não resulta dos autos a concreta data em que o incumprimento do devedor principal se verificou - verificação da condição – motivo pelo qual os juros de mora não poderão ser contabilizados desde a data aposta no cheque nem da data em que o mesmo foi apresentado a pagamento.
Nesta conformidade haverão de proceder o pagamento de juros a contar da citação do presente processo.
Da litigância de má-fé
Não se nos afigura que a demandante tenha agido de má-fé, nem do ponto de vista processual, nem do ponto de vista substantivo. Na verdade, o que se provou é que a demandante era legitima possuidora de um cheque; que o mesmo se destinou á prestação de garantia de pagamento de uma dívida perante esta e que interpôs a presente acção para fazer valer o seu direito de crédito. Não há, pois factos ou indícios de que tenha feito um uso indevido do processo, motivo pelo qual haverá de ser absolvida.

Decisão:
Nos termos e com os fundamentos invocados, decido pela condenação da demandada ao pagamento da quantia de 3850,00€ acrescida de juros de mora a contar da citação até efectivo e integral pagamento.
Mais absolvo a demandante do pedido de condenação como litigante de má-fé.

As custas serão suportadas na proporção do respectivo decaimento, sendo da responsabilidade da demandante de 10% e da demandada 90% a que corresponde a quantia de 7€ e 63€ respectivamente.(Art.º 8.º da Portaria n.º 1456/2001, de 28 de Dezembro e n.º 3 do art.º 446.º, do C.P.C.).

Proceda-se ao reembolso em conformidade e fica a demandada notificada para proceder ao pagamento da quantia de 28,00€ no prazo de 3 dias úteis a contar da presente, sob pena da aplicação de sobretaxa nos termos legais.


Registe.
Vila Nova de Poiares, 23 de Outubro de 2019
(Juíza de Paz que redigiu e reviu em computador – Art.º 138.º/5 do C.P.C.)
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(Cristina Eusébio)