Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2610/18.0T9VFX-C.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: HABEAS CORPUS
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
ACUSAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 06/01/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I - O termo do prazo previsto no art. 215.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do CPP ocorre na data da dedução da acusação e não no momento em que o arguido toma efectivo conhecimento da acusação.

II - Constatada a dedução tempestiva da acusação pública no processo, revela-se infundado o pedido de habeas corpus em que se invoca o fundamento da al. c) do art. 222.º do CPP, sustentado numa alegada ultrapassagem dos prazos legais da prisão preventiva por o arguido não ter sido notificado da acusação dentro do referido prazo de seis meses.

Decisão Texto Integral:

1. Relatório

1.1. No processo n.º 2610/18...., do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Criminal ... - Juiz ..., os arguidos AA e BB, em requerimento conjunto, vieram apresentar pedido de habeas corpus subscrito pelo seu mandatário, ao abrigo do disposto no art. 222.º, n.º 2, al. c), do CPP e com os fundamentos seguintes:

“1º-  Em sede  de  interrogatório judicial, no  pretérito  dia  25/11/2021,  foi determinada aos Arguidos a aplicação da medida de coação de prisão preventiva prevista no artigo 202º do C.P.P., por se considerar existirem fortes indícios dos mesmos terem praticado, em autoria material e na forma consumada, um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22/01, por referência à Tabela I-B do mesmo diploma legal.

2º- Assim, os Arguidos encontram-se presos preventivamente há mais de 6 (seis) meses.

3º- Sendo certo que, até ao presente momento os Arguidos não foram ainda notificados da Acusação.

4º- Dispõe o artigo 215° do CPP, o seguinte:

"1 A prisão preventiva extingue-se quando,  desde o seu início,  tiverem decorrido;

a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.a instância;

d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.”

2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos..." (Negrito nosso).

5º- No caso em apreço, atentos os crimes indiciados nos autos, o prazo máximo de duração de prisão preventiva, é de seis meses, pelo que, encontra-se esgotado o prazo máximo de duração da prisão preventiva, previsto nas disposições dos artigos 215º, n.° 1, alínea a), e n.º 2, e 1º, alínea m), do Código de Processo Penal, cujo término ocorreu em 25/05/2022.

6º- Assim, o prazo máximo de prisão preventiva nos presentes autos encontra-se ultrapassado.

7º - Dispõe o Artigo 222º do Código de processo Penal que:

“l - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida/ em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial/' (Negrito e sublinhado nossos).

8º- Encontrando-se ultrapassado o prazo máximo de prisão preventiva, a detenção dos Arguidos em estabelecimento prisional mostra-se um atentado ilegítimo à sua liberdade individual, e é ilegal nos termos do Artigo 22º nº2 alínea c) do Código de processo Penal.

Até a presente data, 26/05/2022, nem os Arguidos nem o seu Mandatário foram notificados do Despacho de Acusação, pelo que, à cautela, e por mero dever de patrocínio, ainda diremos o seguinte:

9º- Nos termos do artigo 4º do Código de Processo Penal:

"Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal”. (Negrito nosso)»

10º- Assim, verte o artigo 144° do Código de Processo Civil:

1 - Os atos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes são apresentados a Juízo por via eletrónica, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, valendo como data da prática do ato processual a da respetiva expedição. (…)

7 - Sempre que se trate de causa que não importe a constituição de mandatário, e a parte não esteja patrocinada, a apresentação a juízo dos atos processuais referidos no n.º 1 é efetuada por uma das seguintes formas:

a) Entrega na secretaria judicial, valendo como data da prática do ato processual a da respetiva entrega;

b) Remessa peio correio, sob registo, valendo como data da prática do ato processual a da efetivação do respetivo registo postal;

c) Envio através de telecópia, valendo como data da prática do ato processual a da expedição;

d) Entrega por via eletrónica, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, valendo como data da prática do ato a da respetiva expedição,"(Negrito nosso).

11º- Segundo os artigos acima citados, os atos processuais das partes, consideram-se praticados na data da efetivação do registo postal.

12º- Ou seja, mesmo que o Despacho de Acusação seja proferido com data anterior a 25/05/2022, o que é revelante para verificação do cumprimento do prazo máximo da prisão preventiva, previsto no artigo 215º do Código de Processo Penal, é a data da expedição do registo postal e não a data da prolação da acusação.

Ora,

13º- Portugal é, por determinação Constitucional, "um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, (...), no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes" (art.2º da CRP), no qual, nomeadamente, "todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo" (nº4 do art. 20º da CRP),

"Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança, (art. 27º, n.º 2 da CRP),

"A prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei." (art. 28º, n.º 4 da CRP),

"1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso,

2.  Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, (...)," (art.32º da CRP);

"1. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo.

2. Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos (...)" (art.202º da CRP);

"Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nele consagrados" (art.204º da CRP);

14º - E no qual a lei ordinária dispõe, nomeadamente, que:

“1. Os juízes têm o dever de administrar justiça, proferindo despacho ou sentença sobre as matérias pendentes (…).” (art.152º do CPC);

15º- Ou seja: com o óbvio propósito de, por um lado, assegurar o respeito do direito a processo equitativo e das garantias de defesa (arts. 2º, 20º e 32º da CRP); e por outro, impedir que os cidadãos sejam privados da sua liberdade, quando se encontram esgotados os prazos estabelecidos por lei.

16º- Sendo certo que sempre serão inconstitucionais os artigos 215° e 222° do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido que:

“Para verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva é relevante a data da prolação do Despacho de Acusação e não a data da expedição postal.”

E ainda no sentido que:

"Não é fundamento bastante do pedido de Habeas Corpus a data da expedição postal do Despacho de Acusação,"

Tais interpretações violam os artigos 2º, 20º, 27º, n.º 2, 28º n.º 4, 32°, 202º, 204º, todos da Constituição da República Portuguesa, artigo 144º e 152º do Código de Processo Civil ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal, inconstitucionalidades que, desde já se arguem.

Assim, em face do que ficou exposto resulta, claramente, que a prisão dos Arguidos é manifestamente ilegal, pelo que se requer a V. Exa., o deferimento do presente pedido de Habeas Corpus, e em consequência que seja ordenada a imediata libertação dos Arguidos.”

1.2. A informação a que se refere o art. 223.º, n.º 1, do CPP foi a seguinte:

“Os arguidos AA e BB, sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva desde 25/11/2021, o primeiro no Estabelecimento Prisional ... e a segunda no Estabelecimento Prisional ..., intentaram providência de habeas corpus, alegando prisão ilegal por se mostrar decorrido o prazo máximo de duração da prisão preventiva.

Alegam, em síntese, que até ao termo do prazo máximo de duração da prisão preventiva (25/05/2022) não foram notificados da dedução de acusação pública.

Importa prestar a informação necessária sobre a prisão e sua manutenção nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal:

Aos arguidos AA e BB foi aplicada em 25/11/2021, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguidos detidos, a medida de coacção de prisão preventiva (cfr. auto de interrogatório de fls. 3155 a 3168 verso e 3176 a 3200), tendo por base, no essencial, os seguintes fundamentos:

1 – A constatação de fortes indícios da prática pelos arguidos de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-lei 15/93, de 22 de Janeiro.

2 – A verificação da concreta existência dos perigos de continuação da actividade criminosa, de perturbação do inquérito, na modalidade de perigo para a conservação ou veracidade da prova, e de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, estando cabalmente explicados os motivos que levaram a concluir pela existência concreta dos aludidos perigos e pela necessidade de aplicação da medida de coacção mais gravosa do nosso ordenamento jurídico.

3 – Tal medida foi revista por despachos proferidos a 23/02/2022, 19/05/2022 e, na sequência da dedução de acusação pública a 25/05/2022, por despacho de 25/05/2022.

Face ao exposto, é de concluir que a medida de coacção de prisão preventiva aplicada em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido:

- Foi aplicada por entidade competente;

- Foi motivada por facto que a lei permite e prevê;

- Não se encontram excedidos os prazos fixados por lei ou decisão judicial.

Relativamente a este último aspecto, é de salientar que não se encontra esgotado o prazo máximo de duração da prisão preventiva, pois, atentos os crimes indiciados nos autos (crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01), e tendo sido deduzida acusação pública a 25/05/2022, o prazo máximo de duração da prisão preventiva, nesta fase processual, é de dez meses (cujo término ocorrerá a 25/09/2022), nos termos das disposições conjugadas dos artigos 215.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, e 1.º, al. m), do Código de Processo Penal.

Acresce que, conforme decorre literalmente do disposto pelo artigo 215.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do Código de Processo Penal, e tem vindo a ser entendimento uniforme na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a data que releva para determinação do termo final do prazo de duração da prisão preventiva (na dicotomia entre data da acusação ou data em que o arguido toma conhecimento da peça acusatória), é a data da prolação da acusação (neste sentido, vide, a título meramente exemplificativo, os acórdãos do STJ de 09/02/2011, proc. 25/10.8MAVRS-B.S1; de 04/11/2021, proc. 77/21.5JALSB-C.S1; de 10/02/2022, proc. 44/21.9GBCVD-B.S1; todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Em face do exposto, entendemos que a prisão dos arguidos é legal e deverá ser mantida ao abrigo do disposto nos artigos 191.º, 192.º, 193.º, n.º 1 e 2, 196.º, 202.º, n.º 1, alíneas a) e c), 204.º, alíneas b) e c), e 215.º, n.º 1, als. a) e b), e n.º 2, do Código de Processo Penal, não estando, de todo, preenchido o requisito previsto no artigo 222.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal.

No entanto, Vossas Excelências, Colendos Senhores Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, melhor decidirão.”

1.3. Notificados o Ministério Público e o defensor do arguido, realizou-se a audiência na forma legal, tendo-se reunido para deliberação.


2. Fundamentação

O habeas corpus é uma providência com assento constitucional, destinada a reagir contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal, podendo ser requerida pelo próprio detido ou por qualquer outro cidadão no gozo dos seus direitos políticos, por via de uma petição a apresentar no tribunal competente (art. 31º da CRP).

A petição de habeas corpus tem os fundamentos previstos taxativamente no art. 222.º, n.º 2. do CPP, que consubstanciam “situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade ambulatória (…), a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. O “carácter quase escandaloso” da situação de privação de liberdade “legitima a criação de um instituto com os contornos do habeas corpus” (Cláudia Cruz Santos, “Prisão preventiva – habeas corpus – recurso ordinário”, in RPCC, ano 10, n.º 2, 2000, pp. 303-312, p. 310).

Os autores convergem, pois, no sentido de que “a ilegalidade que estará na base da prevaricação legitimante de habeas corpus tem de ser manifesta, ou seja, textual, decorrente da decisão proferida. Pela própria natureza da providência, que não é nem pode ser confundida com o recurso, tem de estar em causa, por assim dizer, uma ilegalidade evidente e actual. (…) O habeas corpus nunca foi nem é um recurso; não actua sobre qualquer decisão; actua para fazer cessar «estados de ilegalidade»” (José Damião da Cunha, “Habeas corpus (e direito de petição «judicial»): uma «burla legal» ou uma «invenção Jurídica»?”, in Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva (coord. José lobo Moutinho et al.), vol. 2, lisboa: uce, 2020, pp. 1361-1378, pp 1369 e 1370).

E constitui também jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça a excepcionalidade da providência e a sua distanciação da figura dos recursos. O habeas corpus não é um recurso e não se destina a decidir questões que encontram no recurso o seu modo normal de suscitação e de decisão.

Preceitua então o art. 222.º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”, que o Supremo tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa (n.º 1).

Por força do n.º 2 da mesma norma jurídica, a ilegalidade da prisão deve (ou tem de) provir de uma das seguintes circunstâncias:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei o não permite;

c) Se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

No presente caso, os requerentes invocam o requisito da al. c). Argumentam que “atentos os crimes indiciados nos autos, o prazo máximo de duração de prisão preventiva é de seis meses, pelo que se encontra esgotado o prazo máximo de duração da prisão preventiva, previsto nas disposições dos arts. 215.º, n.° 1, al. a), e n.º 2, e 1.º, al. m), do CPP, cujo término ocorreu em 25/05/2022.”

Como se vê, não se mostra controvertido que aos arguidos requerentes foi aplicada a medida de coacção prisão preventiva em 25/11/2021, que ao crime dos autos corresponde o prazo máximo (de prisão preventiva) de seis meses (arts. 215.º, n.° 1, al. a), e n.º 2, e 1.º, al. m), do CPP), e que a acusação pública foi deduzida em 25/05/2022. Assim resulta da petição apresentada, assim consta da informação prestada pela Senhora Juíza do processo, assim o confirmam os demais elementos que instruem a presente certidão.

Mais disse a Senhora Juíza que a medida de coacção foi revista por despachos proferidos a 23/02/2022, 19/05/2022 (o que os requerentes não questionam) e, na sequência da dedução de acusação pública a 25/05/2022, por despacho de 25/05/2022. Sempre de acordo com a informação, não se encontraria esgotado o prazo máximo de duração da prisão preventiva, pois, atentos os crimes indiciados nos autos (crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01), e tendo sido deduzida acusação pública a 25/05/2022, o prazo máximo de duração da prisão preventiva, nesta fase processual, seria agora de dez meses,  a terminar em 25/09/2022, nos termos dos arts. 215.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, e 1.º, al. m), do CPP.

Ao invocar o fundamento da al. c), pretendem os requerentes que ocorreu a ultrapassagem dos prazos legais da prisão preventiva (para lá dos prazos fixados no art. 215.º CPP) por não terem sido notificados da acusação dentro do referido prazo de seis meses. Ou seja, na sua alegação, não bastaria a dedução tempestiva da acusação pública no processo, exigindo-se ainda a notificação aos arguidos no mesmo prazo.

Sucede que a pretensão dos requerentes não encontra fundamento na lei, não tem cobertura legal nem constitucional, e contraria a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, consentânea com a visão do Tribunal Constitucional.

De entre muitos, vejam-se os seguintes acórdãos:

Acórdão do STJ de 09-02-2011 (Raul Borges), em cujo sumário pode ler-se:

“II -  No caso concreto, o que está em discussão é a questão de saber se o dies ad quem do prazo previsto no art. 215.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do CPP – 6 meses – se deverá fazer coincidir com a data da acusação, ou com o momento em que o arguido toma efectivo conhecimento da peça acusatória. Nesta dicotomia, é de ter como correcta a opção pela data em que é elaborada a acusação.

III - Desde logo, um argumento literal, a extrair da al. a) do n.º 1 do art. 215.º do CPP, quando refere o decurso do prazo sem que tenha sido deduzida acusação e de modo similar nas restantes alíneas, como na b), ao referir o decurso do prazo sem que tinha sido proferida decisão instrutória, e nas als. c) e d), ao colocar o ponto final do prazo sem que tenha havido condenação, em 1.ª instância, ou com trânsito em julgado.

IV - Em todos estes casos é patente a referência à data da prática do acto processual ou elaboração da decisão (acusação, decisão instrutória e condenação) proferida no processo de acordo com cada etapa ou fase processual e não com o momento em que chega ao conhecimento do destinatário da mesma. De contrário, em caso de pluralidade de arguidos, teríamos datas diferentes consoante os diversos momentos em que a decisão fosse chegando ao destino

V -  Por outro lado, furtando-se o destinatário ao recebimento da notícia, descoberto estaria o caminho para se prolongar o prazo, caso se mostrasse pontualmente necessária ou conveniente tal estratégia.

VI - Em conclusão, o termo final do prazo referido na al. a) do n.º 1 do art. 215.º do CPP é a data da dedução da acusação, solução de que não resulta prejudicado o direito de defesa.” (itálicos nossos)

Na fundamentação deste acórdão, já a propósito da conformidade constitucional do entendimento que o Supremo sempre adoptou, pode ler-se:

“Decidindo sobre a invocada inconstitucionalidade da norma do artigo 215.º, n.º 1, alínea a), do CPP, estando em causa questão similar à presente, no âmbito do processo n.º 522/2008, de que fomos relator, pronunciou-se o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 280/2008, processo n.º 295/08-1.ª secção, de 14-05-2008.

Estava em causa a inconstitucionalidade do artigo 215.º, n.º 1, alínea a), do C.P.P., interpretado no sentido de que para os efeitos nele previstos os prazos se contam da prolação da acusação e não da sua notificação, por violação do disposto nos artigos 28.º, n.º 4, 31.º e 32.º, n.º 1, todos da C.R.P.

Como pode ler-se em tal acórdão, « (…), como resulta do citado artigo 28.°, n.° 4, da Constituição da República Portuguesa, “a prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei”, significando que não pode, face à sua natureza de “ultima ratio”, de deixar de estar temporariamente limitada. Cabendo à lei a fixação de prazos de prisão preventiva, dispõe, consequentemente, o legislador ordinário de uma relativa margem de liberdade de conformação, sem embargo de dever ser respeitado o princípio da proporcionalidade (…).

E depois de afirmar não se detectar razão de ser para emitir um juízo de inconstitucionalidade, adianta: «Com efeito, estamos perante a fixação do termo de um prazo fixado na lei, de acordo com uma interpretação desta que "não se mostra incongruente com a aventada justificação do sistema instituído de duração de prisão preventiva, não desrazoável, tendo em atenção os factores relevantes de estar em causa crime de especial gravidade (...)." (Acórdão n.° 208/2006, já citado).

Na verdade, o legislador não está impedido de tomar em conta como termo final do prazo da primeira fase da prisão preventiva a data de acusação, uma vez que este momento se revela congruente com propósito de promover sem delongas o normal decurso do processo.

Não é assim desrazoável a opção do legislador».

Sobre a também aqui suscitada inconstitucionalidade, alegadamente decorrente de uma apodada violação dos direitos de defesa do arguido, pouco há a aditar. A conformidade constitucional da posição que se sufraga, e que decorre de uma clara e legítima opção legislativa sobre o termo final do prazo da primeira fase da prisão preventiva (a data de acusação),  sempre foi reconhecida pelo Tribunal Constitucional. Estranho (e ilegal) seria afirmar agora aqui o contrário.

No acórdão do STJ de 04-11-2021 (Rel. Helena Moniz), pode ler-se no sumário:

“IV – Para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º, do CPP, é relevante a data de prolação da acusação (ou do despacho de pronúncia, ou da condenação) de modo que não se faça recair sobre os serviços o ónus de cumprimento, pois cabe apenas ao Magistrado Judicial ou ao Ministério Público (consoante a fase processual em que se encontrem os autos) o cumprimento deste prazo”.

E na fundamentação deste acórdão frisou-se lapidarmente: “Acresce referir que a norma consagrada no art. 215.º, do CPP, é muito clara — “a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido: (...) meses sem que tenha sido deduzida acusação”. Pretender que se deve interpretar o momento da dedução da acusação como sendo o momento da sua notificação é não só uma interpretação em violação clara da letra da lei, como também é dizer, em desrespeito do disposto no art. 9.º, n.º 3, do Código Civil, que o legislador utilizou erroneamente o termo “deduzida” querendo dizer “notificada”, não tendo sabido exprimir o seu pensamento.”


Por último, o acórdão do STJ de 10-02-2022 (Rel. Cid Geraldo):

“I - Para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º, do CPP, é relevante a data de prolação da acusação (ou do despacho de pronúncia, ou da condenação) e não a notificação ao arguido dessa peça processual.

II - Este Supremo Tribunal já tomou posição sobre a questão, defendendo-se no acórdão de 11-10-2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 186, que para o efeito previsto no artigo 215.º do CPP, releva a data da acusação e não a notificação ao arguido dessa peça processual, podendo ver-se neste sentido ainda os acórdãos de 14 e 22 de Março de 2001, in Sumários do Gabinete de Assessores, n.º 49, págs. 62 e 81; de 15-05-2002 e de 11-06-2002, ibid., n.º 61, pág. 84 e n.º 62, pág. 81; de 13-02-2003, processo n.º 599/03-5.ª; de 22-05-2003, processo n.º 2159/03-5.ª; de 18-06-2003, processo n.º 2540/03-3.ª; de 13-11-2003, processo n.º 3943/03-5.ª; de 08-06-2005, processo n.º 2126/05-3.ª; de 19-07-2005, processo n.º 2743/05-3.ª; de 10-05-2007, processo n.º 1689/07-5.ª; de 24-10-2007, processo n.º 3977/07-3.ª; de 12-12-2007, processo n.º 4646/07-3.ª; de 13-02-2008 no processo n.º 522/08 -3.ª; de 10-12-2008, processo n.º 3971/08-3.ª; de 06-01-2010, processo n.º 28/09.5MAPTM-B.S1-3.ª e de 30-12-2010, processo n.º 4/09.8ZCLSB-A.S1-3.ª – Jurisprudência indicada no Acórdão do STJ de 09/02/2011, proc. 25/10.8MAVRS-B.S1, 3ª Secção, Relator: Raul Borges; cfr. também, o recente Ac. do STJ de 04/11/2021, proc. 77/21.5JALSB-C.S1, 5ª Secção, Relator: Helena Moniz.” (itálicos nossos)

De tudo resulta que foram (e continuam a ser) respeitados os prazos de duração da prisão preventiva, inexistindo qualquer excesso do prazo legal máximo, concluindo-se que a presente providência de habeas corpus carece manifestamente de base factual e legal que a suporte, relativamente a ambos os requerentes.


                                                *

3. Decisão

Pelo exposto, delibera-se neste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir os pedidos de habeas corpus  por falta de fundamento bastante (art. 223.º, n.º 4, do CPP).

Custas pelos requerentes, fixando-se a cada um deles 4 UC de taxa de justiça, indo ambos condenados na importância de 6 UC a título de sanção processual (art. 223.º, n.º 6, CPP).

                                                          

Lisboa, 01.06.2022

Ana Barata Brito (Relatora)          

Pedro Branquinho Dias (Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)