Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
27328/20.0T8LSB-A.L1.S2
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: REVISTA EXCECIONAL
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
Data do Acordão: 06/01/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA EXCEPCIONAL
Decisão: ADMITIDA A REVISTA EXCECIONAL.
Sumário :
Há contradição estes dois acórdãos que dão respostas opostas à questão de saber se o art. 7.º da Lei 1-A/2020, de 19.03, que determinou a suspensão dos prazos processuais e procedimentais, bem como dos prazos de prescrição e de caducidade nos processos disciplinares, se aplica a entidades privadas.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 27328/20.0T8LSB-A.L1.S1 (revista excecional)
MBM/JG/RP


Acordam na Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.

1.1. Autora/recorrente: AA.
1.2. Ré/recorrida:  CPLP – Comunidade Países de Língua Portuguesa.

X X X

2. O A. instaurou a ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra a R., invocando, para além da ilicitude material do despedimento, vícios e invalidades do procedimento disciplinar, nomeadamente a sua caducidade/prescrição.

3. A ação foi julgada improcedente na 1ª instância.

4. Interposto recurso de apelação, foi o mesmo julgado improcedente pelo Tribunal da Relação de Lisboa (TRL). Para além do mais, que não releva no âmbito do presente recurso, o TRL – considerando que o prazo de prescrição previsto no n.º 3 do art. 329º, do Código do Trabalho, se suspendeu durante o período de 09.03.2020 a 02.06.2020, por força do disposto no art. 7º, n.º 3, da Lei nº 1-A/2020, de 19/03 – julgou improcedente a questão da prescrição/caducidade do processo disciplinar, invocada pelo A./apelante.

5. Inconformado, o A. veio interpor recurso de revista excecional, com fundamento no art. 672.º, n.º 1, c), do CPC – contradição com o acórdão do Acórdão da Relação de Coimbra de 29.01.2021, proferido no processo n.º 537/20.5T8LMG.C1, transitado em julgado.

Alega, para tanto, que este aresto, ao contrário do acórdão recorrido, decidiu que o artigo 7.º da Lei 1-A/2020, de 19.03, que determinou a suspensão dos prazos processuais e procedimentais, bem como dos prazos de prescrição e caducidade nos processos disciplinares, não se aplica a entidades privadas.

6. A recorrida respondeu, pugnando pela improcedência da revista excecional, cuja admissão não questionou.

7. No despacho liminar, considerou-se estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso.

8. Está em causa a questão de saber se há contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento (transitado em julgado), os quais, no domínio da mesma legislação, incidem sobre a mesma questão fundamental de direito, consistente em saber se 7.º da Lei 1-A/2020, de 19.03, que determinou a suspensão dos prazos processuais e procedimentais, bem como dos prazos de prescrição e caducidade nos processos disciplinares, se aplica a entidades privadas.

Decidindo.

II.

9. Sobre a questão em causa, o acórdão recorrido decidiu com base na seguinte argumentação:
« (…)
Refere a sentença recorrida:
«Da Prescrição do Processo Disciplinar (art. 329º/3 do C. Trabalho).
Estatui o nº3 do art. 329º do C. Trabalho: «O procedimento disciplinar prescreve decorrido um ano contado da data em que é instaurado quando, nesse prazo, o trabalhador não seja notificado da decisão final».

Alega o Autor/Trabalhador, no essencial, que «a infração terá que se considerar praticada no dia 23 de abril… Já o Procedimento disciplinar foi instaurado em 11 de dezembro de 2019 e a Decisão Final comunicada a 14 de dezembro de 2020…. Sendo por demais evidente que o referido prazo de um ano decorreu antes da Decisão».

Antes de tudo mais, há que ter em consideração que, por força do art. 7º/3 da Lei nº 1-A/2020, de 19/03, conjugado com o teor das alterações introduzidas pela Lei nº 16/2020, de 29/05 (que entrou em vigor no dia 03/06/2020 e que revogou aquele art. 7º), os prazos de prescrição/caducidade, incluindo os relativos a processos disciplinares, estiveram suspensos entre 13/03/2020 e 02/06/2020 (isto é, suspensão durou 2 meses e 20 dias).

E precisamente por força desta suspensão legal de prazos torna-se inequívoco que, no caso em apreço, também não ocorreu qualquer prescrição do processo disciplinar com base no prazo de um ano previsto no nº 3 do referido art. 329º/3: com efeito, tendo processo disciplinar relativo sido instaurado em 11/12/2019 (cfr. facto provado nº 11), em princípio o prazo de um ano teria o seu termo em 11/12/2020; porém, atenta a referida suspensão de 2 meses e 20 dias, então o prazo em causa apenas teria o seu efetivo termo em 01/03/2021; logo, tendo o Autor/Trabalhador recebido a decisão de despedimento no dia 14/12/2020 (cfr. facto provado nº 5), verifica-se que não decorreu o prazo de 1 ano de prescrição aqui em causa.
(…)
Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, impõe concluir-se que improcede totalmente este fundamento da prescrição do processo disciplinar.»

Vejamos.
(…)
       
Sobre este assunto, consideramos relevante a explanação efetuada pela Desembargadora Sílvia Saraiva sob o tema “ Covid 19- Implicações na Jurisdição do Trabalho e da Empresa” (Cadernos CEJ) :

O « Artigo 7.º, nºs 3, 4 e 9, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei n.º 4-A/2020, de 06 de abril A Lei n.º 4-A/2020, de 06 de abril, mantêm incólume a redação do artigo 7.º, nºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, no qual se determinou a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos, prevalecendo sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional. (…)

Claramente, o intuito do legislador é o de salvaguardar os prazos de prescrição e de caducidade ligados unicamente ao contexto da pandemia, acautelando os casos em que o exercício do direito implica a instauração de um processo ou um procedimento, isto é, implica uma concreta iniciativa processual. Assim, durante o período de exceção, quer os prazos ainda em curso, quer os que, porventura, se iniciem ou se finalizem, nas situações em que o pleito ainda não tenha sido introduzido previamente em juízo, encontram-se suspensos, retomando-se a contagem dos prazos de prescrição e de caducidade, logo que seja declarado cessado o termo da situação excecional, em obediência ao disposto no artigo 7.º, n.º 2, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.
 
Quid iuris? Porém, quanto aos prazos do procedimento disciplinar e de prescrição contidos no artigo 329.º, nºs 1, 2, e 3, aplicáveis aos procedimentos sancionatórios disciplinares do empregador privado? Estarão os mesmos contemplados na previsão normativa contida no artigo 7.º, n.º 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março? Como se sabe, o direito de exercer o poder disciplinar pelo empregador (artigos 98.º e 328.º), não é ilimitado, estatuindo o artigo 382.º, n.º 1, que o despedimento por facto imputável ao trabalhador é ainda ilícito (para além, dos fundamentos gerais contidos no artigo 381.º, n.º 1), se tiverem decorrido os prazos estabelecidos nos nºs 1 ou 2 do artigo 329.º, ou se o respetivo procedimento for inválido.

Como se sabe, o direito de exercer o poder disciplinar pelo empregador (artigos 98.º e 328.º), não é ilimitado, estatuindo o artigo 382.º, n.º 1, que o despedimento por facto imputável ao trabalhador é ainda ilícito (para além, dos fundamentos gerais contidos no artigo 381.º, n.º 1), se tiverem decorrido os prazos estabelecidos nos nºs 1 ou 2 do artigo 329.º, ou se o respetivo procedimento for inválido. Ora, sob pena de violação do artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa, perfilhamos o entendimento que tal suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade também se deve estender aos processos sancionatórios disciplinares dos particulares».

Importa ainda salientar que o nº 3 do art 7.º da Lei n.º 1-A/2020 se reporta a todos os tipos de processos e procedimentos.         

Atento o contexto excecional do período em causa e a redação do referido n.º 3 deste último preceito legal, concordamos com a decisão recorrida no que concerne à suspensão (no período de 09.03.2020 a 02.06.2020) do prazo de prescrição e não se vislumbra violação do princípio do direito de defesa do recorrente consagrado no nº10 do art. 32º da CRP.”

10. Por seu turno, o acórdão-fundamento desenvolveu a seguinte argumentação:

“(…)
Temos, assim, no âmbito de um diploma legal de natureza excecional (…): i) que uma norma decretou a suspensão dos prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devessem ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corriam termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal (art. 7º/1); ii) outra norma que determinou a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos (art. 7º/3); iii) uma norma excecional que determinou a aplicação do regime das duas anteriores normas, na parte com relevo para o caso dos autos, aos procedimentos disciplinares que corram termos em serviços da administração direta, indireta, regional e autárquica, e demais entidades administrativas, designadamente entidades administrativas independentes, incluindo a Autoridade da Concorrência, a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, bem como os que corram termos em associações públicas profissionais (art. 7º/9/b).
O problema que ora se suscita é o de saber se a suspensão decorrente desta última norma se aplica, também, a procedimentos disciplinares que corram termos em entidades distintas das que nela se encontram identificadas, designadamente em entidades privadas do tipo da recorrida que é uma IPSS (…).
Assim sendo, sustentar-se que o regime de suspensão ora em causa se aplicava, também, a procedimentos disciplinares tramitados por entidades privadas redundaria na adoção de uma interpretação que não tem a mínima base de apoio na letra da lei, o que é vedado pelo art. 9º/2 do CC.

Por outro lado, o legislador conhecia, como não podia deixar de ser, que para lá das entidades que identificou no art. 7º/9/b, outras existem com competência disciplinar a exercer através da tramitação dos competentes procedimentos disciplinares, pois foi esse mesmo legislador que, por exemplo e relativamente ao regime jurídico do contrato de trabalho em que são empregadores entidades privadas: i) determinou que “O empregador tem poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço, enquanto vigorar o contrato de trabalho.” (art. 98º do CT/09); ii) regulamentou aspetos substantivos e procedimentais a que devia subordinar-se o exercício desse poder disciplinar (arts. 328º a 332º, 352º a 358º do CT/09).

Sendo assim, sustentar-se que o regime suspensivo ora em questão se aplicava a processos disciplinares tramitados por entidades diversas das taxativamente identificadas no art. 7º/9/b viola ostensivamente a presunção decorrente do transcrito 9º/3 do CC.
(…)
Tudo visto, sem prejuízo de conhecermos entendimentos divergentes, somos do entendimento de que o regime suspensivo do art. 7º/9/b citado não se aplica aos procedimentos disciplinares tramitados por entidades privadas, como é a recorrente.
(…)”

11. É manifesto que estes dois arestos deram respostas opostas à questão de saber se o art. 7.º da Lei 1-A/2020, de 19.03, que determinou a suspensão dos prazos processuais e procedimentais, bem como dos prazos de prescrição e de caducidade nos processos disciplinares, se aplica a entidades privadas

Para além dos demais requisitos estabelecidos pelo art. 672º, nº 1, c), do CPC, verifica-se, pois, a contradição invocada pelo recorrente.


III.

12. Nestes termos, acorda-se em admitir a recurso de revista excecional em apreço.
Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 01 de junho de 2022



Mário Belo Morgado (Relator)

Júlio Manuel Vieira Gomes

Ramalho Pinto