Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
084633
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FIGUEIREDO DE SOUSA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/14/1996
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam em plenário das Secções Cíveis, no Supremo Tribunal de Justiça:
A - A requereu a resolução do conflito de jurisprudência entre a solução dada à questão suscitada na revista n. 84633 por acórdão de 5-5-94 deste Tribunal - acórdão recorrido -, e a solução dada a idêntica questão por acórdão deste mesmo Tribunal de 22-4-93 - acórdão fundamento -, que transitou em julgado.
Admitido, veio a ser proferido o acórdão a fl. 50, que decidiu o prosseguimento do recurso por se verificarem os legais pressupostos, nomeadamente a oposição entre as soluções em que os ditos arestos assentaram relativamente à mesma questão fundamental de direito.
Na sequência do decidido, o recorrente ofereceu alegação, que remata com as seguintes conclusões:
1) O cheque emitido sem data de per si não é título executivo;
2) Impõe-se, no mínimo, que se alegue e prove ter havido acordo para o preenchimento;
3) Foi o recorrido que nele apôs a data;
4) Este não provou ter havido acordo para o preenchimento;
5) O que era uma condição essencial para que o pudesse preencher e em consequência existisse cheque, nos termos do art. 1, da lei uniforme;
6) Logo que o cheque não pode produzir efeitos por lhe faltar a data ou por esta haver sido aposta sem para tal ter havido acordo;
7) O douto acórdão, viola o que dispõe os arts. 1 e 13 da lei uniforme, bem como o art. 342, do Código Civil;
8) Já que o ónus de provar que existiu acordo impendia sobre o recorrido;
9) Deve o douto acórdão ser revogado e os embargos julgados procedentes;
10) É fixado que o cheque sem data só produz efeitos como tal desde que se alegue e prove ter havido acordo para o preenchimento desse requisito.
Data.
O recorrido não alegou.
O Sr. Procurador-Geral Adjunto foi de parecer que, deve ser confirmado o acórdão recorrido e que deve ser solucionado o conflito de jurisprudência, por assento, para o qual propôs a seguinte redacção: "Em processo de embargos de executado, é ao embargante, subscritor de cheque emitido com a data em branco ulteriormente completado pelo tomador, que compete o ónus da prova da existência de acordo do preenchimento e da sua inobservância."
B - Cumpre decidir.
1 - Antes de prosseguirmos, detenhamo-nos sobre uma questão que não pode deixar de ser considerada.
É que, pelo assento n. 1/93, lavrado nos termos do art. 455 do Código de Processo Penal, em 2-12-92, e publicado no DR, I série, 9-3-93.
"Para efeitos penais, dos arts. 23 e 24, do Dec. 13004, a entrega pelo sacador de cheque incompleto quanto à data não faz presumir que foi dada autorização de preenchimento ao tomador, nos termos em que este o fez.
E segundo o n. 1 do citado art. 445, do Código de Processo Penal, a decisão proferida nos termos da mesma disposição, além de ter eficácia no processo em que o recurso foi interposto, constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais até que venha a ser alterada, em resultado de requerimento do Procurador-Geral da República e segundo os termos do art. 447, daquele diploma.
Coloca-se-nos, pois, a questão de saber se o referido assento se aplica obrigatória e amplamente ou se a sua obrigatoriedade se restringe ao campo penal.
E cremos que a solução não pode deixar de ser a da aplicação restrita, por duas ordens de razões, qualquer delas decisiva.
Por um lado, a própria formulação do assento limita a sua aplicabilidade ao direito penal: "Para efeitos penais", é a condição liminarmente posta pelo texto do assento.
Por outro lado, e em consequência dos princípios constitucionais da presunção da inocência do arguido, até ao trânsito em julgado da sentença condenatória (art. 32, n. 2, da Constituição) e da tipicidade (art. 29, da Constituição e art. 1, do Código Penal), o direito penal não admite presunções contra o agente de facto, incumbindo à acusação a prova de todos os elementos típicos da infracção. Diferentemente se passam as coisas no campo do direito civil, em que as presunções são amplamente admitidas no âmbito da liberdade de julgamento (art. 655, do Código de Processo Civil), estando mesmo previstas presunções legais contra o agente de facto (por exemplo, 503 e 799 do Código Civil).
Concluímos, pois, que o referido assento 1/93 não é aplicável senão para efeitos penais, não prejudicando, portanto, o prosseguimento do conhecimento da questão que nos ocupa neste momento.
2 - Nos termos do n. 3 do art. 17 do decreto-lei, o objecto dos recursos para o tribunal pleno já intentado à data da sua publicação, circunscreve-se à resolução em concreto do conflito, com os efeitos decorrentes dos arts. 732-A e 732-B, aditados pelo mesmo decreto-lei.
E para que haja conflito, necessário é que as soluções jurídicas em que assentaram as decisões do acórdão recorrido e do acórdão fundamento estejam em oposição, que tenham sido proferidas no domínio da mesma legislação e que as situações de facto a que se aplicaram sejam perfeitamente idênticas.
Tal oposição já foi verificada no acórdão de fl. 5 e é de confirmar neste momento.
Com efeito ambos os acórdãos foram proferidos em processo de embargos de executado, em que os respectivos títulos executivos são cheques entregues sem conterem a data, que, depois, foi aposta pelo portador.
Ambos os acórdãos entendem que o cheque é título executivo, embora emitido sem data, desde que esta seja posteriormente aposta pelo tomador em execução de acordo entre o sacador e o tomador sobre esse ponto.
Mas enquanto o acórdão fundamento faz recair sobre o tomador o ónus de provar que foi respeitado o acordo quanto ao preenchimento da data, o acórdão recorrido faz recair sobre o sacador o ónus de prova que houve acordo e que este não foi respeitado.
Assentes, assim, os dois acórdãos considerados em solução opostas sobre a mesma questão fundamental de direito, as respectivas decisões estão em oposição.
3 - É sabido que a indicação da data em que o cheque é passado é elemento constitutivo desse título cambiário (art. 1, n. 5, da lei uniforme sobre cheques, diploma a que se reportarão as disposições legais que vierem a citar-se sem diferente indicação de proveniência), importando a sua falta a nulidade do cheque, na terminologia legal a não produção de efeitos como cheque (art. 2).
É também sabido, porém, que um cheque incompleto no momento de ser passado pode ser validamente completado posteriormente, de harmonia com os acordos realizados entre o sacador e o tomador (art. 13).
Com efeito, nos termos desta disposição, "se um cheque incompleto no momento de ser passado tiver sido completado contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido o cheque de má fé, ou, adquirindo-o tenha cometido uma falta grave".
O que significa que, de harmonia com a sua natureza própria, de literalidade, em princípio, o cheque á válido como tal a partir do momento em que se encontra totalmente preenchido, independentemente da autoria do seu completo preenchimento.
4 - Segundo o art. 342 do Código Civil, aquele que invocar um direito, cabe fazer a prova dos factos, constitutivos do direito invocado, enquanto a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita, sendo certo que, em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
E, nos termos do art. 344, n. 1, do mesmo Código (a hipótese considerada no n. 2 não tem qualquer pertinência com o caso que nos ocupa), aquelas regras, invertem-se quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine.
Presunções são as ilações que a lei (presunções legais) ou o julgador (presunções judiciais) tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido (art 349, ainda do Código Civil).
As presunções judiciais têm de ver com a decisão sobre a matéria de facto ao passo que as presunções legais dispensam a prova do facto a que elas conduzem (art. 350, n. 1, do referido diploma).
Para a inversão do ónus da prova só importam as presunções legais.
Dizer-se que quem entrega a outrem um cheque com a data em branco é porque entre eles, existe um acordo quanto ao preenchimento, pelo menos tácito e sob a forma de permitir que o tomador aponha a data que entender, poderá ser mera presunção judicial, a valorar com a demais prova em sede de decisão sobre a matéria de facto.
Por outro lado, é certo que não existe qualquer presunção legal num ou noutro sentido nem dispensa ou liberação do ónus da prova ou convenção válida sobre tal tema.
Daí que a questão tenha de ser resolvida à luz dos princípios consignados no art. 342, do Código Civil.
5 - Como acima vimos, o preenchimento abusivo do cheque é, segundo o art. 13, motivo de oposição ao tomador.
A procedência de tal oposição tem como consequência julgar-se o cheque nulo, extinguindo ou impedindo o direito de acção do tomador (art. 40).
Materialmente, pois, o preenchimento abusivo tem a natureza de excepção, peremptória (as excepções peremptórias importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor - art 493, n. 2, do Código de Processo Civil) e o facto de - porque o cheque é título executivo (art. 46 alínea c), do Código de Processo Civil) - essa excepção deve ser invocada em processo de execução por meio de embargos (arts. 812, 813 e 815 do Código de Processo Civil), não lhe retira ou altera essa natureza.
Daí que o ónus da prova do preenchimento do cheque pelo tomador com desrespeito de acordo de preenchimento (ou na ausência de tal acordo) impenda, nos termos do n. 2 do art. 342, do Código Civil, sobre o subscritor.
Em face do exposto, acordam em confirmar o acórdão recorrido e em uniformizar a jurisprudência nos seguintes termos: " Em processo de embargos de executado é sobre o embargante, subscritor do cheque exequendo, emitido com data em branco e posteriormente completado pelo tomador ou a seu mando, que recai o ónus da prova da existência de acordo de preenchimento e da sua inobservância."
Vai o recorrente condenado nas custas.
Lisboa, 14 de Maio de 1996.

João Augusto Gomes Figueiredo de Sousa,
Fernando Adelino Fabião,
António César Marques,
Roger Bennett da Cunha Lopes,
Ramiro Luís d'Herbe Vidigal,
José Martins da Costa,
António Pais de Sousa,
Fernando Amâncio Ferreira,
José Miranda Gusmão de Medeiros,
António Manuel Guimarães de Sá Couto,
Jaime Octávio Cardona Ferreira,
José Joaquim de Oliveira Branquinho,
Mário Fernandes da Silva Cancela,
Manuel Nuno de Sequeira Sampaio da Nóvoa,
António Costa Marques,
Agostinho Manuel Pontes de Sousa Inês,
Fernando da Costa Soares,
Fernando Machado Soares,
Herculano Carlindo Machado Moreira de Lima,
Luís Filipe Metello de Nápoles,
Jorge Alberto Aragão e Seia,
João Fernando Fernandes de Magalhães,
Ilídio Gaspar Nascimento Costa,
Rui Manuel Brandão Lopes Pinto,
José Pereira da Graça,
Manuel José Almeida e Silva,
Armando Figueira Torres Paulo,
Miguel de Mendonça e Silva Montenegro.