Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
14232/17.9T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: ROSA TCHING
Descritores: AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
BEM IMÓVEL
OCUPAÇÃO
PRIVAÇÃO DO USO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 01/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Numa ação de reivindicação em que os autores, para além, do reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio urbano ocupado pelos réus, pretendem a condenação destes na restituição do mesmo, por falta de título legitimador dessa ocupação, e no pagamento de indemnização pelos danos para eles advenientes da privação do respetivo uso, tais pedidos devem ser formulados apenas contra aqueles que, alegadamente, ocupam ilegitimamente o prédio em causa e não também contra a pessoa que figura como arrendatária no  contrato de arrendamento.

II. Se, mercê da ocupação de prédio urbano por terceiros sem título justificativo, os respetivos proprietários ficaram impedidos, durante um certo período, de usá-lo, de fruir as utilidades que eles normalmente lhes proporcionariam, essa privação injustificada do direito de propriedade constitui os ocupantes na obrigação de indemnizar os proprietários pelos prejuízos para eles decorrentes  da perda temporária dos poderes de gozo e fruição.

III. Competindo ao lesado provar o dano da privação do uso, não é suficiente, para tanto, a prova da privação da coisa, pura e simples, mas também não é de exigir a prova efetiva do dano concreto, bastando, antes, que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou alguma delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria  se não estivesse dela privado pela atuação ilícita do lesante.

IV. Sendo o imóvel em questão um prédio urbano, será, assim, suficiente demonstrar que o mesmo destinava-se a ser colocado no mercado de arrendamento, correspondendo, neste caso, a indemnização pela privação do uso ao seu valor locativo.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


***



I. Relatório

1. AA. e BB., intentaram a presente ação declarativa comum contra CC. e DD., pedindo que:

a)  Seja declarado que as frações autónomas, melhor identificados supra nos artigos 11.° e 12.°, pertencem à herança deixada por óbito do pai dos autores e da qual são os únicos herdeiros;

b) Sejam os réus condenados a restituírem aos autores as identificadas frações, livres e devolutas de pessoas e dos bens que ali não se encontravam aquando da ocupação pelos réus;

c) Sejam os réus condenados a efetuarem as obras necessárias com vista a restituir a varanda (que fruto das modificações operadas pelos réus é agora uma marquise) bem como a casa de banho do quarto (suite) (onde substituíram a banheira de hidromassagem por um poliban) ao seu estado/condição primitiva ou a pagarem todas as despesas que os autores tiverem de efetuar para reporem a fração autónoma no estado em que se encontrava, à data da ocupação, a liquidar em execução de sentença;

d) Sejam os réus condenados solidariamente a pagarem aos autores uma indemnização por danos não patrimoniais a determinar equitativamente pelo Tribunal, mas em montante nunca inferior a € 10.000,00;

e) Sejam os réus condenados solidariamente a pagarem aos autores uma indemnização por danos patrimoniais correspondente a um montante mensal de € 1.500,00 desde a data de início da ocupação das frações autónomas que se vier a apurar até à sua efetiva entrega aos autores, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral e efetivo pagamento;

ou,

subsidiariamente, para o caso de assim não se entender,

i) a pagarem aos autores a quantia correspondente a um montante mensal de € 1.500,00 desde a data de início da ocupação das frações autónomas que se vier a apurar até à sua efetiva entrega aos autores, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral e efetivo pagamento, a título de restituição por enriquecimento sem causa (pelo enriquecimento decorrente do uso e fruição ilegítimo das frações autónomas — enriquecimento sem causa por intervenção de terceiros em bens alheios);

ii) Sejam os réus condenados solidariamente a pagarem aos autores, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia diária de € 100,00, desde a notificação da decisão até à efetiva entrega das aludidas frações autónomas, ao abrigo do disposto no artigo 829.°-A, n.° 1 e 2, do Código Civil.

Alegaram, para tanto e em síntese, serem as frações dos autos pertencentes à herança indivisa da qual são únicos herdeiros, a ocupação não autorizada pelos réus das frações descritas nos autos, os prejuízos daí advenientes e a realização de obras não autorizadas numa das referidas frações.

2. Os réus contestaram, invocando a existência de contrato de subarrendamento e deduziram pedido reconvencional requerendo a condenação dos autores no pagamento da quantia de euros 11. 213,36 euros, a título de indemnização pelas benfeitorias realizadas no locado, e de 3 881,06 euros, correspondentes às quotizações de condomínio referente às frações que pagaram.

3. Realizada audiência prévia, nela foi proferido despacho saneador que afirmou, para além do mais, a legitimidade das partes.

De seguida, foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.

4. Procedeu-se a julgamento, após o que foi preferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e improcedente a reconvenção e, em consequência:

a) Reconheceu que a fracção autónoma designada pela letra "AV" e descrita sob o n.° …. da C.R.P. de …., freguesia da …, e que a fracção autónoma  designada pela letra "EF" e descrita sob o n.° … da C.R.P. de …, freguesia da …, são propriedade dos autores;

b) Condenou os réus a restituírem aos autores as identificadas fracções, livres e devolutas de pessoas e bens;

c) Absolveu os réus do demais peticionado.

d) Absolveu os autores do pedido reconvencional.


5. Inconformados com esta decisão, dela apelaram os autores para o Tribunal da Relação …, que por acórdão proferido, em 02.07.2020, julgou parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, decretou uma indemnização a favor dos autores do valor de 1.500,00 por cada mês de ocupação do mesmo prédio a partir de 4 de dezembro de 2017 e até efetiva entrega do mesmo, acrescida de juros à taxa legal, desde a data do respetivo vencimento e até efetivo pagamento.

Quanto ao  mais e uma vez não provados os danos não patrimoniais, julgou improcedente o recurso quanto a esta parte da sentença, deixando ainda consignado, relativamente à ilegitimidade dos autores suscitada pelos réus na sua resposta, que esta  matéria não foi objeto de recurso, pelo que se trata de questão transitada nos autos.


6.  Inconformados com este acórdão, os réus dele interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1.ª Tendo em vista o exposto na 1.ª questão, deverá conhecer-se da exceção do litisconsórcio necessário, de conhecimento oficioso do tribunal que, em consequência deverá declarar extinta a instância, com as legais consequências sem prejuízo do disposto na parte final do nº.3 do artigo 278º, do C.P.C, com a repristinação da decisão de 1ª. instância.

2.ª Tendo em vista o disposto no nº.4 do artigo 607º, do C.P.C, por força da confissão dos autores no articulado da ação, na decisão de mérito deverão dar-se como provados os seguintes factos:

i. Que a Mãe dos AA celebrou para a fração reivindicada contrato de arrendamento com EE. (14.º fls. 7); (facto nº.4).

ii. Que, o prazo do contrato era de um ano, renovável automaticamente, com início em 1.3.1997 (15.º fls. 7);

iii. Que a renda à época era de 960.000$00 anuais (16.º fls. 7);

iv. Que nunca colocaram em causa a validade dos atos praticados pela sua Mãe por desconhecimento e quando foram informados “…o prazo para exercer tal direito já se encontravam exauridos” (19.º e 20.º fls. 7);

v. Que não conseguiram por fim ao contrato em 2012 e por isso viram-se forçados a respeitar aquele contrato (21.º e 23.º fls. 7vs);

vi. Que, em 2015, os AA. tentaram atualizar a renda (25.º);

vii. Que a arrendatária continuou a pagar o montante de 445,41€;

3.ª Considerando que:

a) Conforme consta da confissão dos AA nos artigos 14.º a 23.º e se verifica do documento de fls. 41, a fração reivindicada encontra-se arrendada conforme consta do contrato de arrendamento a fls. 41.

b) Os AA reconhecem o arrendamento, e referem ainda, que a “inquilina” continuou a pagar a renda (cf. art.º 26.º da p.i.);

c) No entanto, não fizeram intervir na ação, a parte interessada, arrendatária, procurando servir-se dos autos num uso anormal da ação para, sem a intervenção da arrendatária, conseguirem um fim proibido por lei, que é a resolução do arrendamento sem utilizar a ação de despejo contra a arrendatária, posto que à luz do disposto no artigo 1084.º do CC, a resolução do contrato de arrendamento, na falta de acordo terá de ser decretada pelo tribunal.

d) Pretenderam assim os AA, através de meio processual impróprio e ilegítimo, obter um benefício económico e jurídico que não têm direito, posto que o direito dos AA recorridos, no caso, é a contrapartida da renda acordada com a arrendatária e que confessam receber.

e) Sem prejuízo do requerido na 1ª conclusão, perante a falta de legitimidade dos RR pela falta da arrendatária na ação e posteriormente dos herdeiros na relação material controvertida, e, em face da fase processual dos autos, deverá a instância ser declarada extinta em face do disposto no nº.1 alínea “d” do artigo 278º do C.P.C, com as legais consequências.

4.ª Considerando o exposto na anterior conclusão, existindo sobre a fração reivindicada, o ónus de arrendamento habitacional que não foi resolvido através de ação de despejo, tal ónus impede os recorridos de usar e fruir da coisa para além do valor da renda que recebem da arrendatária, tal facto apenas lhe confere o direito à perceção das rendas que recebem tal como se considerou na R, sentença proferida em 1ª, instancia, não assumindo aqui qualquer relevância a avaliação da fração como se estivesse livre de tal ónus ou encargo.

5.ª Que, tal como confessam na ação e se verifica dos documentos prova vinculada existentes nos autos a fls. 103 a 177, os AA recebem a renda da fração no valor de 445,41€.

6.ª Perante a factualidade antecedente, inexiste fundamento jurídico para justificar a condenação dos recorrentes no pagamento do valor de 1500,00€ mensais, como se sobre a fração em causa não existisse o ónus de arrendamento.

7.ª A que acresce ainda o facto de que o raciocínio jurídico expendido na R, decisão recorrida não é justa nem adequada, porquanto:

a) O contrato de arrendamento celebrado obsta à pretensão dos recorridos no pedido de qualquer tipo de indemnização por danos, designadamente os que reclamam como se não existisse arrendamento, e que foram reconhecidos no acórdão recorrido constituindo tal decisão um enriquecimento injusto e sem causa que à indemnização fixada, soma-se ainda o valor da renda num total de 1945,41€, mensais.!

8.ª Tal como se considerou na R. decisão de 1.ª instância:

“…a verdade é que no caso em apreço os Autores não se viram privados da utilização das frações reivindicadas porquanto sobre estas incidia um contrato de arrendamento com uma terceira pessoa, EE., que se manteve em vigor pelo menos até à propositura da acção pelo que mesmo sem a ocupação dos Réus não poderiam ter fruído dessas fracções...”

9.ª Contrariamente ao decidido no Acórdão recorrido, a obrigação dos herdeiros do arrendatário nos casos de caducidade do arrendamento não é na data do óbito, mas no prazo de seis meses a contar de tal data – conforme dispõe o art.º 1053º, do CC, sendo certo que para que tal pudesse ocorrer, teria de existir factualidade nos autos de prova de que o arrendamento não se transmitiu aos herdeiros da arrendatária – o que no caso não se verifica.

10.ª A decisão recorrida para além do vício de nulidade por omissão de pronúncia afigura-se aos olhos do recorrentes ilegal e manifestamente injusta porque não está adequada aos factos provados quer aqueles que o tribunal recorrido considerou quer aqueles que resultam de prova documental de força vinculada bem como da confissão no articulado da ação.

11.ª Que se considere e decida que os AA atuaram no âmbito da ação, em manifesto abuso do direito a que se refere o artigo 334º, do CC.

12ª. O acórdão recorrido no entendimento dos recorrentes, violou as seguintes disposições legais:

a) Do Código Civil

- Artigo 9.º, 1106º,1113,1053º, e 1045, 1080 a 1084.

b) Do CPC

- Artigos 33.º, 278.º a contrário e 607.º nº.4 e 5., 615º, nº.1 alínea “d”;

c) Do NRAU:

Artigo 57º.».


Termos em que requerem seja revogado o acórdão recorrido, mantendo-se o decidido em 1.ª instância no que se refere ao mérito, alterando-se a responsabilidade pelas custas que devem ser de inteira responsabilidade dos autores visto que os réus não impugnaram a propriedade da fração reivindicada.

7. Os autores responderam, terminando as suas alegações, com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«A. Os Recorrentes-Réus invocam a excepção de ilegitimidade passiva, sendo que, no entanto, tal questão já foi decidida nos presentes autos, aquando da prolação do despacho saneador, não tendo sido impugnada por aqueles, pelo que transitou em julgado, tendo ficado definitivamente resolvida nos autos;

B. Não obstante, e ainda que assim não se entendesse, sempre se diga que carece de qualquer fundamento a invocação de tal excepção pelos Réus (que, aliás, não a invocaram sequer em primeira instância), pois que analisadas as causas de pedir e pedidos inexistem quaisquer dúvidas quanto à legitimidade processual dos Réus para a presente acção, uma vez que têm interesse directo em contradizer, já que caso se viesse a provar (como, aliás, provou) que os Autores são proprietários das fracções e que os Réus as ocupam ilegitimamente/ilegalmente, os mesmos poderiam vir a ser condenados nos pedidos formulados pelos Autores, daí advindo um prejuízo para os mesmos da procedência da acção (artigo 30.º, do CPC);

C. Além da questão da ilegitimidade passiva, os Réus insurgem-se, ademais, quanto à decisão proferida pela Relação de os condenar a pagar uma indemnização aos Autores pela ocupação abusiva das fracções autónomas identificadas nos autos;

D. Ora, os Autores também recorreram do douto Acórdão, estando a sua posição quanto ao mérito daquela decisão plasmada na motivação de recurso que já apresentaram, pelo que se dá a mesma aqui por integralmente reproduzida, por motivos de economia e celeridade processual».

Termos em que pugna pela improcedência do recurso.

8. Igualmente inconformados com o acórdão recorrido, os autores interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«A. As questões suscitadas no presente recurso dizem respeito a: i) da anulação da decisão do tribunal recorrido quanto à impugnação da decisão da matéria de facto; ii) da indemnização devida pelos Réus pela ocupação ilícita dos imóveis propriedade dos Autores;

- DA ANULAÇÃO DA DECISÃO DO TRIBUNAL RECORRIDO QUANTO À IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

B. Conforme consta das alegações do recurso de apelação apresentadas pelos Autores (vide conclusões F. e G.) os mesmos requereram o aditamento de diversos factos, tendo tal pretensão sido indeferido pelo Tribunal a quo por entender (sem mais) que os mesmos não interessavam à decisão jurídica das questões trazidas aos presentes autos;

C. que pelos mesmos foram alegados nos seus articulados, não são irrelevantes para a decisão da causa, tanto mais que se inserem nos temas da prova enunciados no despacho saneador, em particular, nos seguintes: “saber, se os Réus em momento algum deram conhecimento aos Autores de tais ocupações, que as desconheciam”, “bem como desconheciam a identidade dos Réus até ao dia 07.03.2017”;

D. Salvo o devido respeito por opinião diversa, ao contrário do decidido pela Relação os factos cujo aditamento foi requerido pelos Autores, e que pelos mesmos foram alegados nos seus articulados, não são irrelevantes para a decisão da causa, tanto mais que se inserem nos temas da prova enunciados no despacho saneador não impugnado por nenhuma das partes, em particular, nos seguintes: “saber, se os Réus em momento algum deram conhecimento aos Autores de tais ocupações, que as desconheciam”, “bem como desconheciam a identidade dos Réus até ao dia 07.03.2017”;

E. Sendo certo que, ainda que assim não fosse (serem os factos relevantes para a decisão da causa), o Tribunal a quo deveria fundamentar tal decisão, não se podendo bastar com a afirmação conclusiva de que “à decisão destas questões não interessa qualquer um dos factos que se requer que seja aditado”, verificando-se, em consequência, uma total falta de fundamentação (factual e de Direito) da decisão de ser desatendida a pretensão de aditamento de tais factos;

F. Destarte, deve ser determinada a anulação do acórdão recorrido nesta parte a fim de ser apreciado o mérito da apelação no que respeita à impugnação da decisão da matéria de facto naquela parte (aditamento dos factos requeridos pelos Autores-Recorrentes no recurso de apelação);

– DA INDEMNIZAÇÃO DEVIDA PELOS RÉUS PELA OCUPAÇÃO ILÍCITA DOS IMÓVEIS PROPRIEDADE DOS AUTORES

G. O Tribunal a quo decidiu condenar os Réus a pagarem aos Autores o montante de € 1.500,00 mensais apenas com início a 04.12.2017 (e não desde a data da ocupação – Junho de 2002 –, conforme peticionado pelos Autores) até à entrega efectiva do prédio (sendo que estavam em discussão duas fracções autónomas e não apenas uma), acrescendo a tais quantias juros à taxa legal desde a data do vencimento e até efectivo pagamento;

H. Se bem se entende da fundamentação da decisão recorrida, o Tribunal a quo apenas condena os Réus a pagar uma indemnização correspondente a € 1.500,00 mensais desde 04.12.2017 pois que considera que (conforme ali se escreve) “a partir da morte da arrendatária a ocupação dos RR é ilegítima fazendo-os incorrer em responsabilidade civil extracontratual”.

I. Tal conclusão é, no entanto, e salvo o devido respeito, despicienda de qualquer sentido lógico e jurídico;

J. Com efeito, e desde logo, porque a ocupação das fracções autónomas identificadas nos autos pelos Réus sempre foi ilegítima, pois que os mesmos nunca possuíram qualquer título que lhes reconhecesse legitimidade para as ocupar;

K. De facto, e na senda do que se referiu na 1.ª instância, “os Réus não demonstraram dispor de título que afastasse a ilicitude da ocupação das fracções”, tanto mais que foi dado como não provado que “os mesmos tenham sido reconhecidos como subarrendatários até pelos próprios AA, e anteriormente pela sua legal representante que dos RR receberam as rendas que já em 2006 a 2010 eram depositadas na conta da Autora BB. e anteriormente em nome de FF. e actualmente em nome do Autor AA.” (facto não provado n.º 7), não vingando, portanto, a estratégia processual, assente numa falsidade evidente, apresentada pelos Réus, isto é, a existência de um pretenso subarrendamento celebrado com uma pretensa ex-arrendatária, EE.(sendo que não se pode ignorar que a Ré é ex-cunhada do filho – testemunha GG. – daquela EE., ou seja, irmã da ex-mulher daquela testemunha (conforme resulta expressamente do depoimento daquela testemunha – 02m45s a 04m58s da gravação);

L. Assim, ao contrário do que se refere no Acórdão recorrido, tem que se concluir que a ocupação dos Réus é ilegítima/ilegal desde o seu início, ou seja, desde Junho de 2002 (conforme factos provados n.º 5.º e 6.º), e não apenas desde 04.02.2017, pois que os mesmos, ao contrário do que alegaram e não provaram, nunca dispuseram de qualquer título que os habilitasse a ocupar tais fracções, nem foram reconhecidos como arrendatários ou subarrendatários pelos Autores ou anteriormente pela sua legal representante.

M. A acrescer, mal se entende que o Acórdão recorrido chame à colação para a decisão dos presentes autos um anterior contrato de arrendamento celebrado em 1997 pela mãe dos Autores – o qual, saliente-se, aliás, apenas tem como objecto a fracção autónoma “AV” e já não a fracção autónoma “EF” –, quando a discussão da validade, execução e cessação não fazia parte do objecto do presente litígio, nem dos temas da prova (vide objecto da lide e temas da prova constantes do despacho saneador não impugnado);

N. De facto, nos presentes autos, o que está em apreciação é se a ocupação pelos Réus das fracções autónomas “AV” e “EF”, propriedade dos Autores, era ou não lícita, tendo-se provado que os mesmos não dispunham de qualquer título que lhes reconhecesse a licitude/legitimidade de tal ocupação, pelo que a mesma é ilícita desde que utilizam aquelas fracções autónomas, ou seja, desde Junho de 2002;

O. E, sendo tal ocupação ilícita desde Junho de 2002, devem os Réus ser condenados a indemnizar os Autores nos termos da responsabilidade civil extracontratual por tal facto ilícito desde que o mesmo se verifica e até que cesse (artigo 483.º do Código Civil);

P. Sendo que tal indemnização deve ser fixada em montante equivalente ao valor das rendas que as fracções autónomas seriam susceptíveis de proporcionar se colocadas no mercado de arrendamento, ou seja, € 1.500,00 mensais (ou valor mensal calculado nos termos do valor das rendas de cada fracção constante no auto de perícia colegial constante a fls. dos autos);

Q. Devendo acrescer a tais montantes juros de mora, à taxa legal, contabilizados desde o respectivo vencimento mensal e até efectivo e integral pagamento;

Caso assim não se entendesse, por mera cautela de patrocínio, sempre se diga que:

R. Ainda que se mantivesse a decisão do Tribunal a quo no sentido de limitar a indemnização no montante mensal de € 1.500,00 contabilizado apenas a partir de 04.12.2017, nos termos da responsabilidade civil extracontratual, sempre se diga que teriam os Réus que ser condenados ao pagamento € 1.500,00 mensais aos Autores (ou valor mensal calculado nos termos do valor das rendas de cada fracção constante no auto de perícia colegial constante a fls. dos autos), nos termos do enriquecimento sem causa (por intervenção de terceiros em bens alheios), com referência ao restante período de ocupação (Junho de 2002 a 03.07.2017), o que foi, aliás, precavido pelos mesmos na presente acção, ao formularem tal pretensão, a título subsidiário, quer na petição inicial, quer no recurso de apelação;

S. Ou, alternativamente, que os Réus, ao invés do decidido, fossem condenados a pagar aos Autores o montante de € 1.500,00 mensais (ou valor mensal calculado nos termos do valor das rendas de cada fracção constante no auto de perícia colegial constante a fls. dos autos), desde a data de ocupação das fracções até até à sua efectiva entrega aos Autores, apenas e só com base no instituto do enriquecimento sem causa (por intervenção de terceiros em bens alheios), e já não na responsabilidade civil extracontratual;

T. De facto, conforme se faz notar no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03.10.2013, proferido no âmbito do Processo n.º 1261/07.0TBOLHE.E1.S1, “Poderá o Direito ficar indiferente a uma tal situação de alguém que beneficia de bens alheios à custa e contra a vontade do respectivo dono? Seguramente que não, pois tal solução repugnaria ao mais elementar senso jurídico. E o certo é que o Direito tem solução: o instituto do enriquecimento sem causa.”, cujos requisitos são: a) que haja um enriquecimento de alguém; b) que o enriquecimento careça de causa justificativa; c) que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição;

U. O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, podendo essa vantagem consistir no uso ou exercício de direitos alheios, como é o caso da instalação em imóveis/prédios alheios, como se verifica nos presentes autos, há mais de 17 anos (desde Junho de 2002);

V. A ausência de causa justificativa reconduz-se, grosso modo, à ausência de título ou fundamento jurídico ou, de outro modo dito, quando a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito impunha que o enriquecimento pertencesse a outrem que não o enriquecido, sendo que no caso em apreço, não tendo os Réus demonstrado a titularidade de qualquer  direito legitimador do seu uso, é evidente que, segundo a ordenação jurídica dos bens, o aproveitamento daquelas vantagens deveria pertencer aos Autores e não àqueles;

W. Por fim, é necessário que o enriquecimento seja obtido à custa de quem requer a restituição, sendo que “à custa” não significa necessariamente que o credor da restituição seja empobrecido, quer dizer e contemplando a deslocação patrimonial, que o valor que entra no património do enriquecido corresponda ao que sai do empobrecido; com efeito, pode ocorrer enriquecimento injustificado sem o correspondente e correlativo empobrecimento do lesado, o que, por via de regra acontece, nos casos em que o beneficiado com a vantagem patrimonial se intrometeu nos direitos, ou nos bens jurídicos alheios, isto é, quando alguém, sem ter a tal direito, usa, consome ou utiliza bens alheios ou exercita direitos de outrem, sendo que, nestes casos, em bom rigor, não se pode afirmar que se verifique um empobrecimento do lesado, mas apenas que alguém se aproveitou dos seus bens, enriquecendo à custa deles; assim “à custa”, conforme ensina Antunes Varela, quer dizer “obtido com meios ou instrumentos pertencentes a outrem”; e à luz desta explanação, forçoso é concluir que o enriquecimento dos Réus foi obtido a custa dos Autores;

X. Sendo inquestionável que a ocupação e o uso das fracções autónomas, desde Junho de 2002, implicou um enriquecimento injustificado dos Réus à custa dos Autores, a consequência jurídica é a imposição aqueles da obrigação de restituir o enriquecimento (artigo 473.º, n.º 1, do Código Civil);

Y. Ora, o objecto da restituição nos casos de enriquecimento sem causa fundado na utilização de bens alheios é o chamado “valor de exploração” de tais bens, pois que o objecto da obrigação de tal restituição é, primariamente dirigido em relação ao que foi obtido à custa de outrem, e em caso de impossibilidade de restituição em espécie, ao valor correspondente, o qual, coincidirá, conforme vem entendendo a jurisprudência dos nossos Tribunais e a doutrina (vide, por exemplo, o Professor Menezes Leitão in Direito das Obrigações, vol I, 2000, p. 413), em caso de ocupação de casa/prédio alheio ao valor locativo do mesmo;

Z. Assim, também por esta via (do enriquecimento sem causa), sempre teriam os Réus que ser condenados a pagar aos Autores um montante correspondente ao valor locativo das fracções autónomas desde a sua ocupação ilícita até à sua efectiva entrega;

AA. Com efeito, uma decisão que não condene os praticantes de actos ilícitos, nomeadamente através da sua intromissão e utilização de bens privados alheios, violando um direito importantíssimo como o direito de propriedade, ao pagamento de um montante justo que deva corresponder ao valor locativo dos bens por todo o tempo da ocupação ilícita poria em causa a confiança na justiça, no tráfego jurídico e a segurança jurídica, criando-se um precedente para a verificação de um número crescente de situações similares à dos presentes autos, num sentimento de impunidade e desconfiança que o Direito e os nossos tribunais não podem permitir».

Termos em que requerem seja determinada a anulação do acórdão recorrido a fim de ser apreciado o mérito da apelação no que respeita à impugnação da decisão da matéria de facto na parte referente ao aditamento dos factos requeridos pelos Autores-Recorrentes no recurso de apelação (conclusões B. a F. supra).

Para o caso de assim não se entender, requerem seja revogada a decisão recorrida na parte em que apenas condenou os Réus a pagarem aos Autores o montante de € 1.500,00 mensais com início a 04.12.2017 até à entrega efectiva do prédio, acrescendo a tais quantias juros à taxa legal desde a data do vencimento e até efectivo pagamento, substituindo-se por outra que condene os Réus, com base na responsabilidade civil extracontratual e/ou no enriquecimento sem causa por intervenção de terceiros em bens alheios, a pagarem aos Réus um montante correspondente ao valor locativo das fracções autónomas, equivalente a € 1.500,00 mensais (valor locativo dado por provado com o n.º 9) ou à soma do valor das rendas de cada fracção constante no auto de perícia colegial constante a fls. dos autos, com início na data da ocupação das duas fracções autónomas propriedade dos Autores identificadas nos autos, ou seja desde Junho de 2002, até à entrega efectiva daquelas fracções autónomas aos Autores, acrescendo a tais quantias juros à taxa legal desde a data do vencimento e até efectivo pagamento.

9. Os réus responderam, terminando as suas alegações, com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

« 1ª Tendo em vista a “dupla conforme” a que se refere o nº 3 do Artigo 671º do CPC, tal facto impede a Revista que, em consequência, deve ser rejeitada.

2.ª Sem prejuízo da anterior questão, e, tendo em vista o exposto na 2ª questão, há também a verificação da dupla conforme impeditiva de que este V.dº Tribunal pudesse alterar a matéria de facto dada como assente no tribunal da Relação, salvo nos casos previsto no artº 674 do C.P.C se o recurso fosse admissível, o que não é o caso.

3.ª Tal como referido na 3ª questão, na instauração da ação e no recurso a que se responde, os Recorrentes partiram com sofisma, com base num facto irreal e não verdadeiro – inexistência de arrendamento existente como ónus incidente sobre a fração, para construir toda a sua tese maldosa em que assentou quer a ação quer o recurso a que se responde.

4ª. E, muito embora a R. decisão recorrida tenha sido clara no raciocínio e no conteúdo no que ao mérito da ação nesta questão da existência de tal ónus se refere, o certo é que os recorrentes ignoram uma questão de facto essencial considerada pelo tribunal, em ambas as instâncias de que a fração reivindicada encontra-se com o ónus de arrendamento, cujo contrato consta a fls. 41 – Facto provado n.º 4, ainda está em vigor por não ter sido denunciado – facto esse que, por si só, põe em causa toda a estratégia maldosa dos AA recorrentes, tal como consta do Recurso dos Recorridos e cuja fundamentação se dá por reproduzida por economia processual.

5ª. Considerando que os recorrentes invocam prestações retroativas ao ano de 2002, já ocorreu a sua prescrição em face do disposto no artigo 310º, do CC, o que se invoca para os devidos efeitos».

Termos em que requerem:

« 1. Que o recurso de Revista interposto pelos recorrentes, por inadmissível em face da dupla conforme seja rejeitado, com as legais consequências.

2. Que, em consequência do anterior pedido, prejudicada fica a questão da modificação da matéria de facto porquanto, no caso, também se verifica a dupla conforme ».


10. Em 22.10.2020, o Tribunal da Relação proferiu acórdão que, apreciando a nulidade do acórdão recorrido invocada em sede de recurso, nos termos dos arts. 666º, 615º, nº1, al. b), 679º e 641º, todos do CPC, concluiu pela inverificação de tal nulidade.  


11. Dados os vistos, cumpre apreciar e decidir.


***


II. Delimitação do objeto do recurso

Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, as questões a  decidir  consistem em saber:

A - Quanto ao recurso interposto pelos réus:

1ª- da ilegitimidade passiva por preterição do litisconsórcio  necessário;

2ª- se há lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto;

3ª-  se os autores têm direito a indemnização pela privação do uso do imóvel;


*



B - Relativamente ao recurso interposto pelos autores:

1ª- se há lugar à ampliação da decisão sobre a matéria de facto;

2ª- desde quando é devida a indemnização.


***


III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

1º- Por apresentação 1 de 1989/08/15 encontra-se inscrita a favor de HH., pai dos AA, a aquisição por compra a I........, Lda. da fracção autónoma designada pela letra "AV" e descrita sob o n.° …… da C.R.P. de ………, freguesia da …….., e da da fracção autónoma designada pela letra "EF" e descrita sob o n.° ……… da C.R.P. de ……., freguesia da ……...

2º- O pai dos Autores, HH., faleceu, aos …. anos, no dia 15.02.1996.

3º- Tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os filhos, ora Autores.

4º- FF. invocando a qualidade de representante legal dos filhos menores AA. e BB., assinou o documento cuja cópia se encontra a fls. 41, intitulado "contrato de arrendamento", no qual declarou dar de arrendamento a EE. a referida fracção AV, com o seguinte teor:

"o prazo é de um ano, a começar em 1 de Março de 1997 e a terminar no último dia do mês de 31-3-1998, considerando-se prorrogado por igual período e nas mesmas condições, enquanto por qualquer das partes não for denunciado nos termos legais;

"a renda inicial anual ajustada é de Esc. 960.000$00 que deverá ser paga em duodécimos de Esc. 80.000$00, em casa do senhorio, ou seu representante, no primeiro dia útil do mês anterior àquele que disser respeito. Este contrato estabelece a renda durante o 1.° ano, a renda das renovações seguintes será a que resultar da actualização legal";

"o prédio ou parte do prédio aqui arrendado, destina-se a habitação do arrendatário, não podendo este sublocar ou ceder por qualquer forma os direitos do arrendamento, sem consentimento por escrito do senhorio e devidamente reconhecido";

5º- Os RR. habitam na fracção autónoma "AV" desde junho de 2002.

6º- Os Réus ocupam igualmente a fracção autónoma correspondente a estacionamento identificada nos autos, ali estacionando nomeadamente o seu veículo de marca …… e um motociclo.

7º-  EE. faleceu no dia 4 de Dezembro de 2017 .

8º- O valor de mercado das fracções autónomas identificadas em 11.° e 12.° é de E 320.000,00;

9º-  O valor locativo das duas fracções autónomas em conjunto é de € 1.500,00;

10º- A mandatária dos Autores enviou a EE., no dia 03.09.2015, carta de acordo com a qual a renda era actualizada para € 372,00.

11º- Foram realizadas pelos Réus as seguintes obras na fracção AV :

I) Cozinha

- Colocação de armários e puxadores, na qual gastaram o valor de 1.180,92€;

II) Janelas

- Colocação de janelas e marquise, no qual despenderam o valor de 3.236,76€;

III) Chão

- Limpeza do soalho flutuante e vitrificação do mármore, no qual despenderam a importância de 250,00€;

IV) Casa de Banho

(a) Material de revestimento 1.096,82€

(b) Cabine de duche 539,25€

(c) Loiças Sanitárias 485,10€

(d) Torneiras 157,01€

(e) Sanca 68,29€

No total de 4.383,69€

V) Pinturas, Restauro das Paredes, Portas de Madeira e Tectos

(a) Mão-de-obra 1.500,00€

(b) Materiais 661,99€

12º- As obras referidas em I , III , IV e V não podem ser removidas sem deterioração do imóvel.


Factos Não Provados

1º- Toda esta situação criou, principalmente, ao Autor, uma enorme ansiedade, revolta, angústia, sentimento de ter sido enganado, de ter sido impedido de habitar a casa onde sempre morou com o seu pai até à morte deste ou sequer de a ela aceder, sendo que nem consegue dormir sem tomar comprimidos;

2º- O Autor é acompanhado por uma psicóloga, o qual lhe detectou uma depressão, sentindo-se angustiado, triste, revoltado, ansioso, enganado, sentindo que fizeram e continuam a fazer "pouco dele", bem como que por culpa dessas pessoas (nomeadamente, dos Réus) se viu sem um local para habitar condignamente, para usufruir dos bens que o pai lhe deixou e à sua irmã, ou de os rentabilizar e, desse modo, conseguir pagar as dívidas deixadas pelo seu pai, que ao longo do tempo foi assumindo pessoalmente com todo o esforço; E, por vezes, sente-se até com pouca vontade de viver, tendo já ponderado pôr fim à vida ou, em alternativa, fazer justiça pelas próprias mãos.

3º- Propondo GG. em 2005 que os Réus passassem a pagar o valor da renda mensal até que conseguissem resolver a situação, agora na qualidade de subarrendatários, uma vez que a arrendatária EE. Mãe deste outorgante, titular do arrendamento, subarrendava o andar aos réus até que resolvessem a situação, conforme veio a ocorrer.

4º- O promitente vendedor GG., informou os RR que a sua Mãe — EE. era arrendatária daquela fracção, da qual tinha poderes de representação e que os RR ficariam então nessa qualidade, a ocupar a fracção, pagando a respectiva renda ao Senhorio.

5° A partir de tal data (2005) os RR. passariam a liquidar o valor das rendas da fracção, tendo procedido aos seguintes pagamentos:

Anos Renda Beneficiário 2005 Julho a Novembro 410,00€ 2.050,00€

Cheque à ordem JJ..

Fiel depositário Proc.° …….. da 2° Secção da 10.° Vara Cível de ………

Executado FF. e outro Dezembro 410,00€410,00€

Depósito CGD à ordem do Exmo. Sr. Dr. Juiz da comarca de ……. (motivo: continuação do pagamento que até agora se fez á ordem do processo ……. do tribunal de ……: Conta n.° ……… 2006 Janeiro a Outubro 410,00€ 4.100,00€

Deposito CGD à ordem do Exmo. Sr. Dr. Juiz da comarca de …….. (motivo: continuação do pagamento que até agora se fez á ordem do processo 471/96 do tribunal de …….: Conta n.° ……… Novembro a Dezembro 410,00€ 820,00€ Depósito CGD à ordem de FF. Conta n.° ……… 2007 Janeiro a Dezembro 422,71€ 5.072,52€ Depósito CGD à ordem de FF. Conta n.° ………..

2008 Janeiro a Dezembro 433,28€ 5.199,36€ Depósito CGD à ordem de FF. Conta n.° ………..

2009 Janeiro a Dezembro 445,41€ 5.344,92€ Depósito CGD à ordem de FF. Conta n.° ……….

2010 Janeiro a Julho 445,41€ 3.117,87€ Depósito CGD à ordem de FF. Conta n.° ………. Agosto a Dezembro 445,41€ 2.227,05€

Depósito Millennium à ordem de EE. Conta n.° ……….

2011 Janeiro a Dezembro 445,41€ 5.344,92€ Depósito Millennium à ordem de EE. Conta n.° ………..

2012 Janeiro a Dezembro 445,41€ 5.344,92€ Depósito Millennium à ordem de EE. Conta n.° ……….

2013 Janeiro a Dezembro 445,41€ 5.344,92€ Depósito Millennium à ordem de EE. Conta n.° …………..

2014 Janeiro a Dezembro 445,41€ 5.344,92€ Depósito Millennium à ordem de EE. Conta n.° …………

2015 Janeiro a Dezembro 445,41€ 5.344,92€ Depósito Millennium à ordem de EE. Conta n.° …………

2016 Janeiro a Dezembro 445,41€ 5.344,92€ Depósito Millennium à ordem de EE. Conta n.° …………..

2017 Janeiro a Outubro 445,41€ 4.454,10€ Depósito Millennium à ordem de EE. Conta n.° …………

6° Procedendo desde o ano de 2010 ao depósito da renda no valor de 445.41C na conta de EE., por instruções desta através do filho GG..

7° Reconhecidos como tais até pelos próprios AA, e anteriormente pela sua legal representante que dos RR receberam as rendas que já em 2006 a 2010 eram depositadas na conta da Autora BB. e anteriormente em nome de FF. e actualmente em nome do Autor AA..

8° Durante os anos, de 2002 a 2005, os RR procederam ao pagamento do valor do condomínio referente àquela fracção no valor total de 3.881,06€.

9° A fracção em causa, encontrava-se devoluta, abandonada e totalmente degradada no seu interior.

10° Para poderem habitar a fracção, os RR tiveram de fazer obras em todas as divisões, sendo designadamente as seguintes:

I) Cozinha

- Colocação de armários e puxadores, na qual gastaram o valor de 1.180,92€;

II) Janelas

- Colocação de janelas e marquise, no qual despenderam o valor de 3.236,76€;

III) Chão

- Limpeza do soalho flutuante e vitrificação do mármore, no qual despenderam a importância de 250,00€;

IV) Casa de Banho

(a) Material de revestimento 1.096,82€

(b) Cabine de duche 539,25€

(c) Loiças Sanitárias 485,10€

(d) Torneiras 157,01€

(e) Sanca 68,29€

No total de 4.383,69€

V) Pinturas, Restauro das Paredes, Portas de Madeira e Tetos

(a) Mão-de-obra 1.500,00€

(b) Materiais 661,99€

SOMA 11.213,36€

11° As obras referidas em II não podem ser removidas sem deterioração do imóvel.

12° Em 1-02-2016, os AA. verificaram que sem autorização dos mesmos tinham sido retirados da casa de banho da suite da fracção "AV" uma banheira com hidromassagem e colocado um chuveiro e fechada por completo a varanda dessa fracção.


***


3.2. Fundamentação de direito


Conforme já se deixou dito,


A- Quanto ao recurso interposto pelos réus:

1ª- da ilegitimidade passiva por preterição do litisconsórcio  necessário;

2ª- se há lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto;

3ª-  se os autores têm direito a indemnização pela privação do uso do imóvel;


*


B - Relativamente ao recurso interposto pelos autores:

1ª- se há lugar à ampliação da decisão sobre a matéria de facto.

2ª- desde quando é devida a indemnização.



*


3.2.1. Questão prévia


Antes, porém, de entrarmos na apreciação destas questões, importa decidir da questão prévia da inadmissibilidade do recurso de revista interposto pelos autores suscitada pelos réus  nas suas contra alegações com o fundamento de que, sendo a decisão proferida pelo  Tribunal da Relação  mais favorável aos autores do que a sentença de 1ª instância e tendo o Tribunal da Relação decidido manter inalterada a factualidade dada como provada pelo Tribunal de 1ª Instância, verifica-se, num e noutro caso, dupla conformidade de decisões obstativa da  interposição do recurso de revista, nos termos do disposto no at. 671º, nº 3, do CPC.


Vejamos.

Dispõe o nº 3 do citado art.  671.º, que «não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem  fundamentação substancialmente diferente ».

De salientar ainda que, não obstante a dupla conforme aferir-se em função da decisão final, constatando-se que, no caso dos autos, a parte dispositiva da sentença, tal como do acórdão recorrido, contém segmentos decisórios distintos e com objeto materialmente autónomo,  impõe-se aferir o  conceito de dupla conforme previsto no art. 671º, nº 3 do CPC, separadamente, relativamente a cada um deles[2].

Ora, se é certo ter o acórdão recorrido mantido inalterada a factualidade dada como provada pelo Tribunal de 1ª Instância e conter o mesmo uma decisão mais favorável aos autores/recorrentes, na medida em que, alterando a sentença  proferida pelo  Tribunal de 1ª Instância que havia absolvido os réus do pedido de indemnização formulado pelos autores, condenou os réus a pagarem a estes uma indemnização do valor de 1.500,00 por cada mês de ocupação do mesmo prédio a partir de 4 de dezembro de 2017 e até efetiva entrega do mesmo, acrescida de juros à taxa legal, desde a data do respetivo vencimento e até efetivo pagamento, a verdade é que esta decisão, oposta à prolatada em 1ª instância, envolveu uma fundamentação jurídica essencialmente diferente, sendo, por isso, insuscetível de ser enquadrada no conceito de dupla conforme contido no  nº 3 do citado art. 671º.

E resultando claro do disposto neste preceito legal, que o requisito delimitador da conformidade das decisões radica na fundamentação jurídica que, em concreto, se revelou crucial para sustentar o resultado declarado por cada uma das instâncias, evidente se torna ser totalmente irrelevante, para efeitos de aferição da dupla conforme, a circunstância de o acórdão recorrido ter mantido inalterada a factualidade  dada como provada pelo Tribunal de 1ª Instância.

Acresce que a impugnação do acórdão recorrido, na parte respeitante à necessidade de ampliação da decisão sobre a matéria de facto,  suscitada pelos autores, por se tratar de questão que emergiu apenas do acórdão da Relação proferido no âmbito do recuso de apelação, sem que tenha sido objeto de apreciação  na 1ª Instância, escapa também à figura da dupla conforme[3].

Daí não existir qualquer obstáculo à admissibilidade do recurso de revista interposto pelos autores.

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, se conclui pela improcedência da questão prévia suscitadas pelos réus.


*


3.2.2. Ilegitimidade passiva

 Conhecendo, agora, do recurso interposto pelos réus, começam estes por arguir a nulidade do  acórdão recorrido  prevista no art. 615º, nº1, al. d) do CPC, por não se ter pronunciado sobre a exceção da sua ilegitimidade passiva por eles invocada no âmbito do recurso de apelação, afirmando, antes, erradamente,  terem os réus alegado a ilegitimidade dos autores uma vez e conhecido apenas desta questão.

Não há dúvida ter o acórdão recorrido, por lapso manifesto, conhecido a ilegitimidade dos autores, quando é certo terem os réus/apelados invocado a sua própria ilegitimidade por preterição  de litisconsórcio necessário por os autores não terem demandado a arrendatária do prédio, EE..

Considerando, porém, estarmos perante uma questão de conhecimento oficioso, conforme o disposto no art. 577º, al. e) e art. 578º, ambos do CPC, nada impede este Tribunal de suprir essa falta de pronúncia.

Assim e passando a conhecer desta questão, impõe-se, desde logo, referir que, tendo o Tribunal de 1ª Instância se limitado a afirmar, no despacho saneador, a legitimidade das partes em termos genéricos e tabelares, não se tenho pronunciado concretamente sobre esta exceção dilatória, nenhum obstáculo existe  à apreciação desta questão, em sede de recurso de revista, pois, como é consabido e resulta do disposto no art. 595º, nº 3, do CPC, uma tal decisão não forma caso julgado.

De salientar, tal como decorre do estabelecido no art. 33º, nº 1, do CPC, que «há litisconsórcio necessário, sempre que a lei ou o negócio jurídico exijam a intervenção de todos os interessados, seja para o exercício do direito, seja para reclamação do dever correlativo»[4].

 Mas, para além dos casos em que seja diretamente imposto por lei ou por negócio jurídico, nos termos do disposto no nº 2 do citado art. 33º, «o litisconsórcio torna-se ainda necessário, sempre que, pela natureza da relação material controvertida, a intervenção de todos os interessados seja essencial para que a decisão produza o seu efeito útil normal»[5], o que ocorre sempre que, transitada em julgado a decisão, fique definitivamente regulada a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado ( cfr. nº 3 do citado art. 33º).

«A pedra de toque do litisconsórcio necessário é (…) a impossibilidade de, tido em conta o pedido formulado, compor definitivamente o litígio, declarando o direito ou realizando-o, ou ainda, nas acções de simples apreciação de facto, apreciando a existência deste, sem a presença de todos os interessados, por o interesse em causa não comportar uma definição ou realização parcelar». «Não se trata de impor o litisconsórcio para evitar decisões contraditórias nos seus fundamentos, mas de evitar sentenças – ou outras providências – inúteis por, por um lado, não vincularem os terceiros interessados e, por outro, não poderem produzir o seu efeito típico em face apenas das partes processuais»[6].

Ora, neste âmbito, tem-se por seguro que, numa ação de reivindicação como a presente em que os autores, para além, do reconhecimento do seu direito de propriedade sobre as sobreditas frações ocupadas pelos réus, pretendem a condenação destes na restituição das mesmas, por falta de título legitimador dessa ocupação, e no pagamento de indemnização  pelos danos para eles advenientes da privação do respetivo uso, não sofre dúvida que tais pedidos devem ser formulados apenas contra aqueles que, alegadamente, ocupam ilegitimamente as frações em causa (por ter caducado o contrato de arrendamento por morte da arrendatária EE.) e não também contra a pessoa que figura como arrendatária no contrato de arrendamento.

Daí ser manifesto, não ocorrer, no caso dos autos, a alegada situação de litisconsórcio necessário, improcedendo, deste modo, a invocada exceção de ilegitimidade dos réus e  carecendo, também por isso, de fundamento legal a declaração da extinção da instância requerida pelos recorrentes nos termos do disposto no art. 278º, nº1, al. d), do CPC.


*


3.2.3. Ampliação da decisão sobre a matéria de facto

 Posto que quer os réus, quer os autores, impugnam o acórdão recorrido na parte respeitante à decisão sobre a matéria de facto, procederemos à analise conjunta das questões por eles suscitadas e supra enunciadas nos pontos  A.2 e B.1.  

3.2.3.1. Quanto à questão suscitada no ponto A.2, sustentam os réus/recorrentes que o acórdão recorrido violou o disposto no art. 607º, nºs 4 e 5,  do CPC, porquanto não teve em conta a factualidade resultante da prova vinculada existente nos autos.

Assim e por força da confissão dos autores feita nos artigos, 14, 15, 16, 19, 20, 21, 23, 25 e 25 da petição inicial e do documento junto a fls. 41, requerem que sejam dados como  provados os seguintes factos:

« i. Que a Mãe dos AA celebrou para a fração reivindicada contrato de arrendamento com EE. (14.º fls. 7);(facto nº.4).

ii. Que, o prazo do contrato era de um ano, renovável automaticamente, com início em 1.3.1997 (15.º fls. 7);

iii. Que a renda à época era de 960.000$00 anuais (16.º fls. 7);

iv. Que, nunca colocaram em causa a validade dos atos praticados pela sua Mãe por desconhecimento e quando foram informados “…o prazo para exercer tal direito já se encontravam exauridos” (19.º e 20.º fls. 7);

v. Que não conseguiram por fim ao contrato em 2012 e por isso viram-se forçados a respeitar aquele contrato (21.º e 23.º fls. 7vs);

vi. Que, em 2015, os AA. tentaram atualizar a renda (25.º)».


Mais requerem que, por força dos documentos constantes de fls. 103 a 177, seja dado como provado que:

« vii. Que, a arrendatária continuou a pagar o montante de 445,41€»


*


    

Nesta matéria, preceitua o artigo 607º, nº 4, do CPC, que «Na fundamentação da sentença,  (…), o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos  por acordo, provados por documentos  ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida (…) », estabelecendo o nº 5 deste mesmo artigo que «(...) a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes».   

Resulta, assim, deste artigo que o juiz deve concentrar na sentença, não só a matéria de facto refletida pelos meios de prova que foram produzidos ou apreciados na audiência final, mas também a que resulta da apreciação de meios de prova plena constantes dos autos, mormente da confissão (arts. 354 e 358º do C. Civil), documentos autênticos, autenticados e particulares (arts 371º, nº 1 e 376º, do C. Civil) e acordo expresso ou tácito das partes (arts. 574º, nºs 2 e 3, e 587º, nº 1, do CPC)[7].

E se é certo que, por via da sucessiva remissão do arts. 663º, nº 2 e 679º, ambos do CPC, esta norma tem aplicação no julgamento do recurso de revista, certo é também que o Supremo Tribunal de Justiça só deve aditar à decisão sobre a matéria de facto,  nos termos do citado art. 607º, nº 4, «os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito» nos casos em que tal factualidade se mostre relevante para a decisão de direito. 

Ora, no caso vertente, basta atentar na factualidade supra descrita no ponto 4 dos factos dados como provados (com base no doc. de fls. 41) para facilmente se constatar que a mesma abrange os factos constantes dos pontos i), ii) e iii) e que os recorrentes pretendem sejam  aditados, carecendo, por isso, de fundamento tal pretensão.

E o mesmo vale dizer quanto aos factos constantes dos pontos iv), v) e vi), porquanto, contrariamente ao que sustentam os recorrentes, não só não se vê que dos factos alegados pelos autores nos artigos 19º, 20º, 21º, 23º e 25º da petição inicial, se possa extrair qualquer  declaração confessória, como os mesmos não se revestem de qualquer interesse para a decisão da causa.

Do mesmo modo carece de fundamento a pretensão dos réus em ver aditada aos factos provados a factualidade constantes do ponto vii), ou seja, que «a arrendatária continuou a pagar o montante de 445,41€», pois para além de estarmos perante factualidade que não foi alegada por nenhuma das partes, não se vislumbra que os documentos constantes de fls. 103 a 177, façam  prova plena da referida factualidade[8].

Termos em que improcede, neste segmento, o recurso interposto pelos réus.


*


3.2.3.2. Por outro lado, sustentam os autores/recorrentes que, contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, os factos por eles alegados na petição inicial sob os artigos 27; 28; 29; 31; 32 e 33; 34; 37, 38, 43, 51 e  52 ; 53; 60 e 61 ; 64 e 65; 68  e 69 interessam à decisão jurídica das questões trazidas aos presentes autos, pelo que requerem seja determinada a anulação, nesta parte, do acórdão recorrido e a sua remessa ao Tribunal da Relação a fim de aí ser determinada a ampliação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos por eles defendidos no recurso de apelação.

Mas, em nosso entender, não lhes assiste razão, pois, consabido que a ampliação da matéria de facto, só justifica nas situações em que não tenham sido valorados factos que relevem, verdadeiramente, para a solução jurídica do caso, basta atentar na factualidade que os autores pretendem seja aditada para facilmente se constatar  que a mesma não tem qualquer interesse para a decisão da causa, pelo que nenhuma censura merecer o acórdão recorrido ao decidir rejeitar a requerida ampliação dos referidos factos.

E nem se diga, como o fazem ainda os autores, carecer esta decisão de fundamentação, por não bastar, para tanto, a afirmação conclusiva de que «À  decisão jurídica destas questões não interessa qualquer um dos factos que se requer seja aditado», pois resulta claro do acórdão recorrido ter o Tribunal da Relação indeferido os pretendidos aditamentos dos pontos de facto referidos com o fundamento de que, recorrendo os autores «da parte da sentença que não lhes reconheceu o direito à indemnização pela ocupação ilícita da propriedade e bem assim o direito à indemnização por danos não patrimoniais» à «decisão jurídica destas questões não interessa qualquer um dos factos  que se requer seja aditado».


Termos em que improcede também, neste segmento, o recurso interposto pelos autores.


*


3.2.4. Indemnização pela privação do uso de imóvel

Posto que os réus questionam o direitos dos autores a esta indemnização bem como o respetivo montante e, por sua vez, os autores discordam da data a partir da qual esta indemnização é devida, procederemos à análise conjunta das questões por eles suscitadas e supra enunciadas nos pontos  A.3 e B.2.  

A este respeito, sustentam os réus que a existência do contrato de arrendamento  celebrado entre a mãe dos autores e a EE., em vigor à data da propositura da ação, obsta à fixação de qualquer indemnização a favor dos autores  uma vez que, mercê daquele contrato, estes  não se viram privados da utilização das frações reivindicadas.

Mais sustentam que, contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, para que se pudesse considerar caducado o contrato de arrendamento na data do óbito da arrendatária, ou seja, em 04.12.2017, necessário seria que se tivesse provado que o arrendamento não se transmitiu aos herdeiros da arrendatária, o que não aconteceu  no caso dos autos.

Defendem ainda que, existindo sobre a fração reivindicada o ónus de arrendamento habitacional,  que não foi resolvido através de ação de despejo, tal ónus impede os recorridos de usar e fruir da coisa para além do valor da renda que recebem da arrendatária, não assumindo, por isso, qualquer relevância a avaliação da fração como se estivesse livre de tal ónus ou encargo.  

E sendo assim, o acórdão recorrido ao condenar os réus no pagamento aos autores de uma indemnização no montante de € 1.500,00 por cada mês de ocupação das ditas frações a partir de 4 de dezembro de 2017 e até efetiva entrega das mesmas constitui um enriquecimento injusto e sem causa por parte dos autores que, para além daquele valor, recebem € 445,41 de renda, integrando, por isso, a sua conduta abuso de direito.   

Diferentemente, defendem os autores/recorrentes que tal indemnização é devida não apenas desde 04.12.2017 (data do óbito da arrendatária), tal como decidiu o acórdão recorrido, mas desde a data da ocupação pelos réus das ditas frações, ou seja, desde junho de 2002.


Vejamos.

Como é consabido, sobre a problemática do direito à indemnização pela privação do uso de um determinado bem formaram-se três correntes.

Assim, segundo uma tese, defendida, designadamente por Abrantes Geraldes[9] e Menezes Leitão[10] e perfilhada mormente no Acórdão do STJ, de 05.07.2007 (processo  nº 07B18496)[11], a privação do direito de uso e fruição integrado no direito de propriedade configura, por si só,  um dano indemnizável, independentemente da utilização que se faça, ou não, do bem em causa durante o período  da privação.

Já para os defensores de uma segunda tese, defendida entre outros, nos Acórdãos do STJ, de 10.07.2012 (processo nº 3482/06.3TVLSB.L1.S1), de 04.07.2013 (processo nº 5031/07.7TVLSB.L1.S1) e de 10.01.2012 (processo nº 189/04.0TBMAI.P1.S1)[12], a atribuição  de uma tal indemnização depende da prova do dano concreto, ou seja,  para a determinação do dano deve o lesado concretizar e demonstrar a situação hipotética que existiria se não fosse a lesão (ocupação ou privação do uso).   

Assim, no que concerne à privação do uso de um bem imóvel, afirmou-se, nos Acórdãos do STJ, de 08.05.2007 (processo nº 07A1066) e de 06.05.2008 (processo nº 08A1389) [13], que  a mera privação (de uso) da fração reivindicada ou do prédio reivindicado «impedindo, embora, o proprietário do gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição nos termos do art. 1305º do CC, só constitui dano indemnizável se alegada e provada, pelo dono, a frustração de um propósito real, concreto e efetivo  de proceder à sua utilização, os termos  em que o faria e o que auferiria, não fora a ocupação-detenção, pelo lesante».  No mesmo sentido, afirmou-se no acórdão do STJ, de 10.07.2008 (processo nº 08A2179)[14] que «A mera privação (de uso) do prédio esbulhado, impedindo, embora, possuidor do gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição (nos termos do artigo 1305.º do Código Civil) só constitui dano indemnizável se alegada e provada, por aquele a frustração de um propósito, real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização, os termos em que o faria e o que auferiria, não fora a ocupação-detenção, pelo lesante ».

Por sua vez, para os defensores de uma terceira tese, sufragada entre outros, nos Acórdãos do STJ de 02.06.2009 (processo nº 1583/1999.S1), de 12.01.2012 (processo nº 1875/06.5TBVNO.C1.S1), de 03.10.2013 (processo nº 1261/07.0TBOLHE.E1.S1) e de 14.07.2016 (processo nº 3102/12.7TBVCT.G1.S1)[15], apesar de não chegar a prova da privação da coisa, pura e simples, também não é de exigir a prova efetiva do dano concreto, bastando, antes, que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou alguma delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela atuação ilícita do lesante.

Em sentido próximo, escreve Paulo Mota Pinto[16] que a indemnização do dano da privação do uso pressupõe  a demonstração da possibilidade de certa utilização concreta ou da afetação da possibilidade dessa utilização, como integradora das faculdades do proprietário.  

Assim, sendo a coisa em questão um prédio urbano, decidiu-se no Acórdão do STJ, de 26.05.2009 (processo nº 09A0531) [17],  que «será suficiente  demonstrar que se destinava a ser colocado no mercado de arrendamento ou que o seu destino era a habitação própria, se pudesse dispor dele em condições de normalidade. Mas será dispensável a prova efectiva que estava já negociado um concreto contrato de arrendamento e a respetiva renda acordada ou os prejuízos efectivos  decorrentes de o não poder, desde logo, habitar ».

Ora, relativamente a esta matéria e aderindo à tese seguida no citado Acórdão do STJ, de 03.10.2013 de que «a indemnização do dano da privação do uso pressupõe, portanto, a demonstração da possibilidade de certa utilização concreta ou da afetação da possibilidade dessa utilização, como integradora das faculdades do proprietário», decidiu a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância que «independentemente do entendimento seguido a verdade é que no caso em preço os Autores não se viram privados da utilização das fracções reivindicadas porquanto sobre estas incidia  um contrato de arrendamento com uma terceira pessoa, EE., que se manteve em vigor pelo menos até à propositura da acção pelo que mesmo  sem a ocupação dos Réus não poderiam ter fruído dessas fracções»

Diferente entendimento teve o Tribunal da Relação que, tendo em conta resultar dos factos provados que «a arrendatária faleceu em 4 de dezembro de 2017, portanto, já no decurso da causa», considerou que, «nesta data caducou o contrato de arrendamento em face do disposto no artigo 1051º, alínea d) do CC » e que «a partir da morte da arrendatária a ocupação dos RR é ilegítima, fazendo-os incorrer em responsabilidade civil extracontratual nos termos do disposto no art. 483º do CC uma vez que esta ocupação viola e afronta o direito de propriedade dos AA que por essa razão se vêem impedidos de fruir o seu direito de propriedade (art. 1305º do CC)» e constitui os mesmos na «obrigação de indemnizar de acordo com as regras do artigo 562º e seguintes do CC».

Assim, perfilhando a orientação da terceira tese, entendeu, no caso dos autos, que «da conjugação dos factos provados, mormente do uso dado ao imóvel que foi arrendado e assim se manteve até à morte da inquilina e do valor locativo do mesmo fixado em 1.500,00 euros mensais, resulta quanto a nós e desde logo uma realidade processual demonstrativa que os AA usariam normalmente o prédio, do que ficaram privados, com o consequente prejuízo, que mesmo pela simples aplicação da teoria diferença se pode considerar ser o correspondente ao valor locativo do imóvel - 1.500,00 euros mensais - o que é, a nosso ver, suficiente para lhes atribuir uma indemnização».

E a verdade é que  não vemos razão para dissentir, no essencial, desta decisão.

É que se é certo que, não tendo os autores instaurado contra a arrendatária EE. ação de resolução do contrato de arrendamento, sempre seria de concluir que, subsistindo este contrato, pelo menos, até  4 de dezembro de 2017, não se podia falar em privação do uso das frações em causa por parte dos autores - o que, desde logo,  faz cair por terra a pretensão dos autores/recorrentes no sentido de que a indemnização fixada por privação do uso é devida desde a data da ocupação pelos réus das ditas frações, ou seja, desde junho de 2002 – certo é  também  que, por morte da arrendatária EE., ocorreu, nos termos do art. 1051º, al. d)[18], do C. Civil, a caducidade deste contrato de arrendamento.

Assim e porque, por via desta caducidade, o contrato de arrendamento resolveu-se ipso iure, sem necessidade de qualquer manifestação de vontade[19], não sofre dúvida que, a partir desta data (4 de dezembro de 2017), a ocupação pelos réus das referidas frações impediu e continua a impedir os autores, seus proprietários, de usá-las, de fruir as utilidades que elas  normalmente lhes proporcionariam, ou seja, de dispor delas como melhor lhes aprouver, de harmonia com o disposto no  art. 1305º do C.C., o que vale por dizer que estamos perante uma privação injustificada do uso das ditas frações por parte dos autores.

E nem se argumente, como o fazem os réus/recorrentes, que, para que assim fosse, necessária seria que se tivesse provado que o arrendamento não se transmitiu aos herdeiros da arrendatária, EE., já que era sobre eles que sempre recairia o ónus de alegar e provar essa transmissão, pelo que, não o tendo feito, são os próprios que têm de sofrer as consequências dessa falta de prova.

De resto sempre se dirá que, tendo ficado provado que os réus ocupam as duas fracções autónomas “Av” e “ EF” desde o ano 2002, nem se vê que se possa colocar a questão da não caducidade do contrato do arrendamento por transmissão mortis causa, que, de harmonia com o disposto no art. 57º  do NRAU, pressupõe a residência no locado por parte do arrendatário e demais pessoas ali referidas.   

Daí carecer também de fundamento a afirmação feita pelos réus de que, atento o disposto no art. 1053º do C. Civil, o prazo para a restituição das ditas frações por parte dos respetivos herdeiros sempre seria o de 6 meses a contar da data do óbito da arrendatária. 

Do mesmo modo, não colhe a tese defendida pelos réus de que, continuando os autores a receber € 445,41 de renda, a condenação deles no pagamento aos autores de uma indemnização no montante de € 1.500,00 por cada mês de ocupação das ditas frações a partir de 4 de dezembro de 2017 e até efetiva entrega das mesmas constitui um enriquecimento injusto e sem causa por parte dos autores, porquanto  não resulta dos factos provados que os autores, após a morte da arrendatária, continuaram a receber qualquer renda.

E muito menos se vê que a conduta dos autores consubstancie abuso de direito, pois é inquestionável que, estando os réus a ocupar as ditas frações desde 2002 sem qualquer título que legitimador dessa ocupação, recusando-se a entregá-las aos respetivos donos e privando estes de usufruírem das respetivas utilidades, foram eles que forçaram os autores a interpor a presente ação de reivindicação com vista  à obtenção da restituição das frações em causa e ao ressarcimentos dos danos causados.

Daí que, em face de todas estas considerações,  resultando provado que o valor locativo das duas frações é de € €1500,00 mensais e evidenciando os demais factos provados que os autores continuariam a destinar tais frações ao arrendamento, entende-se que a indemnização devida aos autores pela privação do uso das mesmas deve corresponder ao seu valor locativo, pelo que nenhuma censura merece, nesta parte, o acórdão recorrido.

Termos em que improcede, neste segmento, quer o recurso interposto pelos réus, quer o recurso interposto pelos autores.


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IV – Decisão


Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em julgar:

A - julgar improcedente a revista interposta pelos réus, ficando a seu cargo as custas da revista.

B - julgar improcedente a revista interposta pelos autores, ficando a seu cargo as custas da revista.

Notifique.


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Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exmª. Senhora Conselheira Catarina Serra e do Exmº Senhor Conselheiro Paulo Rijo Ferreira que compõem este coletivo.

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Supremo Tribunal de Justiça, 28 de janeiro, de 2021

Maria Rosa Oliveira Tching

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira

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[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de 11/02/2016 (proc. n.º 403/13.0TVLSB.L1.S1); de 11/05/2017 (proc. n.º 3779/12.3TBBCL.G1), cujos sumários estão disponíveis em jurisprudência cível, in www.stj.pt, e de 01/03/2018 (proc. n.º 1755/12.5TVLSB.L1.S1), acessível in www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed., Almedina, pág. 366.
[4] Cfr. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., 1985, pág. 165.
[5] Cfr. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., 1985, págs. 166 e 167.
[6] Cfr. Lebre de Freitas, João Rendinha e Rui Pinto, in “ Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. I, 1999, pág. 58.
[7] Neste sentido, cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in “ Código de Processo Civil, Anotado”, Almedina 2018, pág. 717.
[8] Porquanto, os documentos de fls. 103 a 119 são talões de depósito na conta do condomínio entre 2003 e 2005 sem identificação do depositante e recibos emitidos pelo condomínio a favor de LL. relativamente às quotas de 2003; os documentos de fls. 121 a 124 e 141-verso a 156-verso, são talões
de depósitos feitos na conta da autora BB. por EE. em 2006, 2007, 2008, 2009, 2010, 2017; os documentos de fls.125-verso a 130, são talões de depósitos feitos à ordem do tribunal por EE., invocando a qualidade de arrendatária, a título de renda em 2005 e 2006; os documentos de fls.130-verso, 131, 131-verso, 132-verso, 133, 133-verso, 134 a 136-verso, 137-verso, recibos passados por JJ. na qualidade de fiel depositário nomeado no âmbito do processo judicial aí identificado a EE., a título de renda do …. andar em 2005; os documentos de fls. 138-verso a 141 e 157 a 171-verso, talões de depósitos feitos na conta de EE. pelos aqui réus em 2011, 2013, 2016 e em 9 de janeiro, 8 de fevereiro, 9 de março, 10 de julho, 8 de agosto e 9 de outubro, todos do ano de  2017 e os documentos de fls.172 a 173-verso, são talões de depósitos feitos a favor do condomínio em 2015 e 2016.

[9] In “Temas da Responsabilidade Civil”, Vol. I, Indemnização do dano da privação do uso, 2007, pág. 13.
[10] In “Direito das Obrigações”, Vol. I, 2000, pág. 297.
[11] Acessível in www.dgsi/stj.pt.
[12] Acessíveis in www.dgsi/stj.pt.
[13] Acessíveis in www.dgsi/stj.pt.
[14] Acessível in www.dgsi/stj.pt.
[15] Acessíveis in www.dgsi/stj.pt.
[16] In “ Interesse Contratual Negativo e interesse contratual Positivo”, Vol. I, 2008, págs. 594-596.
[17] Acessível in www.dgsi/stj.pt.
[18] Norma aplicável ao contrato em causa por força  do art. 59 do NRAU, pois apesar do mesmo ter sido celebrado em 1997 e, por isso, antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo DL nº 321-B/90, de 15 de outubro, o arrendatário faleceu já na vigência do NRAU, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de maio e alterado pela Lei nº 31/2012, de 14 de agosto.   
[19] Neste sentido, cfr. Galvão Telles in “Contratos Civis (Projeto completo de um título do futuro Código Civil Português  e respectiva exposição de motivos)”, in BMJ, nº 83, 1959, pág. 151 e Romano Martinez, in “ Da cessação do contrato”, 2ª ed., Coimbra, Almedina 2006, págs. 315 e segs.