Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1819/20.1T8STB-A.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: PRAZO DE PRESCRIÇÃO
OBRIGAÇÃO CARTULAR
LIVRANÇA EM BRANCO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
ABUSO DO DIREITO
PACTO DE PREENCHIMENTO
AVAL
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
BOA FÉ
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Apenas após preenchimento da livrança é possível discutir o eventual preenchimento abusivo da mesma, quer por incumprimento do pacto de preenchimento, quer por eventual exercício abusivo do direito ao livre preenchimento da livrança.

II. A questão da prescrição da obrigação cambiária opera apenas a jusante, isto é, o prazo de prescrição apenas poderá ser contabilizado após análise da existência ou não de preenchimento abusivo nas duas vertentes referidas em I. e após determinação da data de vencimento efectivamente visada pelas partes ou, na ausência de previsão contratual, na data de vencimento imposta pelo princípio da boa-fé.

III. No caso dos autos, não tendo sido acordado entre as partes uma data-limite para o preenchimento da livrança e não resultando a fixação de tal data do princípio da boa-fé, não se revela como abusivo o preenchimento da livrança nas circunstâncias descritas nos autos, seja na vertente de violação do pacto de preenchimento, seja na vertente de abuso do direito ao livre preenchimento da livrança.

IV. Perante tal conclusão, constando da livrança como data de vencimento 15-01-2020, e tendo a acção executiva sido instaurada em 17-03-2020, conclui-se pela não verificação da excepção de prescrição.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA, executado nos autos principais de execução para pagamento de quantia certa movida pela sociedade Haitong Bank, S.A., deduziu embargos de executado, formulando, no que aqui releva, o seguinte pedido: «ser considerada procedente a exceção perentória de prescrição do crédito cartular, sendo em consequência procedentes os presentes embargos e extinta a execução».

Para o efeito, o embargante invocou, em síntese: (i) que o direito de preenchimento deve ser exercido logo que se verifique o incumprimento definitivo da obrigação subjacente sob pena de se criar um direito imprescritível; (ii) que a livrança se venceu, pelo menos, em 19-10-2011, data da dissolução administrativa da subscritora da livrança; (iii) e que o preenchimento da livrança deve estar limitado pela boa-fé, não sendo de admitir a possibilidade de ocorrer a todo o momento, sob pena de violação dos princípios da segurança e da estabilidade jurídicas que devem tutelar a posição dos devedores cambiários.

Por sentença de 2 de Junho de 2021, a 1.ª instância considerou verificada a excepção de prescrição e, em consequência, determinou a extinção da execução.

Tendo a exequente embargada interposto recurso para o Tribunal da Relação ..., veio a ser proferido acórdão, em 27 de Janeiro de 2022, que, considerando que «a prescrição da letra e da livrança ocorre decorridos três anos a partir da data de vencimento nelas aposta, independentemente dessa data coincidir ou não com a data de vencimento da obrigação subjacente», decidiu:

«a) Revogar a sentença recorrida, declarando improcedentes os embargos de executado quanto à questão da prescrição do direito cambiário, determinando o prosseguimento dos autos no tribunal a quo para apreciação das demais questões invocadas pelo embargante;

b) Determinar o prosseguimento da ação executiva declarada extinta na sentença ora revogada; e

c) Fixar as custas a cargo do Apelado/embargante (art. 527.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).».


2. Inconformado, veio o embargante interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«A. Salvo o muitíssimo respeito devido, no aresto em crise as conclusões e a solução dadas ao caso sub judice não encontram apoio nas premissas avançadas pelo Tribunal a quo.

B. Da LULL não resulta o modo de determinação da data de vencimento da livrança em branco.

C. Não se afigurando correto concluir, sem mais, que o portador pode atribuir à livrança em branco o vencimento que bem lhe aprouver, sem limite de prazo.

D. Ao invés, face à ausência de norma expressa, a solução do caso sub judice deve equacionar e respeitar a demais legislação em vigor e os princípios gerais de Direito aplicáveis.

E. Pelo que, no caso sub judice, a questão que se coloca é a seguinte: na falta de qualquer

estipulação no pacto de preenchimento, o vencimento de uma livrança em branco ocorre, no máximo, com o incumprimento definitivo da obrigação subjacente, ou, pelo contrário, pode o beneficiário da livrança, que seja sujeito da relação material subjacente, atribuir-lhe a data de vencimento que entender?

F. A LULL não resolve o problema. No seu artigo 10.º, prevê-se a admissibilidade das livranças em branco. No artigo 70.º dispõe-se sobre a prescrição, contando-a desde a data do vencimento. Todavia, nenhum preceito da LULL determina o momento em que ocorre o vencimento das livranças em branco.

G. Nos casos em que o pacto de preenchimento é omisso quanto à data de vencimento da livrança em branco, deixar a fixação do vencimento ao critério do beneficiário da livrança não constitui o mais justo equilíbrio de interesses, sendo mesmo ilegal.

H. A vigorar tão extensa permissão, através da subscrição da livrança em branco as partes estariam criando um direito imprescritível ou poriam o devedor na posição de renunciar antecipadamente à prescrição, o que violaria o disposto nos artigos 300.º e 302.º CC.

I. Seria aliás nula, por violação dos mesmos preceitos legais, a convenção constante do pacto de preenchimento em que se concedesse ao credor a faculdade de determinar o vencimento quando entendesse.

J. Adicionalmente, como sucede com todos os direitos, o exercício do direito de preenchimento da livrança está limitado pela boa-fé (artigo 334.º CC). Ora, reconhecer ao beneficiário da livrança a faculdade de determinar a seu bel-prazer a data de vencimento da livrança corresponderia a desconsiderar totalmente os princípios da segurança e da estabilidade jurídicas que tutelam a posição dos devedores cambiários, pois nunca seria determinável o conteúdo dos direitos incorporados no título de crédito e deixaria os devedores cambiários à mercê do arbítrio do beneficiário da livrança.

K. Pelo que, salvo melhor entendimento, deve de ser imposto um limite ao exercício do direito de fixar o vencimento da livrança em branco, ou seja, deve ser criada uma regra que não deixe este aspeto crucial no total arbítrio do beneficiário da livrança.

L. Assim acontece noutros ordenamentos jurídicos, como no inglês [§20(2) do Bills of Exchange Act 1882, aplicável às livranças ex vi §89(1)], no qual se exige que o preenchimento da livrança em branco tem de ser realizado dentro de um prazo razoável, ou no italiano (artigo 14.º do Regio Decreto 5 diciembre 1933, n. 1669), onde se estipula que o portador perde o direito de preencher a letra de câmbio em branco três anos após a data da respetiva emissão.

M. Atualmente, a livrança é utilizada sobretudo para garantia em operações bancárias, sendo emitida em branco não por capricho do credor ou obsequiosidade do devedor, mas antes porquanto apenas desse modo pode cumprir integralmente a sua função de garantia, uma vez que nestas operações se desconhece se, quando e por quanto o devedor entrará em incumprimento.

N. Excluindo as situações em que a livrança haja circulado (pois nessas hipóteses seria necessário ter em consideração os direitos do endossatário, que porventura desconheceria em absoluto o que sucedeu à relação subjacente), nos casos em que o preenchimento é realizado pelo beneficiário da livrança que é simultaneamente o sujeito da relação subjacente, ou seja, o mutuante, tal como sucede na hipótese sub judice, este não pode invocar o desconhecimento sobre o estado da obrigação subjacente.

O. Aliás, no presente caso, como ficou amplamente alegado nos embargos deduzidos, o controlo efetivo da sociedade subscritora da livrança pertencia a três sociedades do Grupo Espírito Santo, entre as quais se encontrava a Espírito Santo Sociedade de Investimento, S.A., a que a Exequente sucedeu. O ora Recorrente era um mero avalista, que teve de se sujeitar às disposições dos credores das sociedades que havia fundado, entre as quais a subscritora da livrança.

P. O direito de preenchimento da livrança em branco há de ser moldado, quanto ao conteúdo e modo de exercício, na função de que a livrança se desempenha: garantia do cumprimento da obrigação subjacente.

Q. Consequentemente, o credor pode exercer este direito de preenchimento logo que se verifique o incumprimento da obrigação que causou a emissão da livrança, restando apenas saber até quando pode exercê-lo.

R. Ora, a solução de não limitar cronologicamente esse direito é de legalidade duvidosa (artigos 300.º e 302.º CC) e introduz na relação cambiária um desequilíbrio injustificado, pelo que não é de admitir (artigo 762.º/2 CC).

S. Logo, não estabelecendo a nossa lei qualquer prazo, a data do vencimento da livrança em branco só pode ser a data do incumprimento definitivo da obrigação subjacente, momento em que o credor adquire a informação necessária para preencher a livrança, bem como o interesse (processual) na cobrança coerciva do crédito.

T. Só assim se alcança um justo equilíbrio dos interesses jurídicos em jogo, segurança e previsibilidade jurídicas, obviando a que o devedor seja colocado na disponibilidade arbitrária do credor.

U. Ora, no caso sub judice: (A) a última prestação em que foi dividido o cumprimento da obrigação subjacente venceu-se em 18.11.2007; (B) a devedora na relação subjacente e subscritora da livrança foi administrativamente dissolvida em 19.10.2011; (C) o credor e beneficiário da livrança atribuiu-lhe o vencimento em 15.01.2020.

V. Posto isto, a livrança venceu-se, senão antes, em 19.10.2011, uma vez que o incumprimento definitivo da obrigação subjacente não poderá fixar-se em data posterior ao da dissolução e liquidação da devedora e subscritora da livrança.

W. A presente ação foi proposta em 15.01.2020, isto é, mais de 8 anos após a data de vencimento da livrança, tendo, por conseguinte, sido largamente ultrapassado o prazo de três anos estipulado pelo artigo 70.º da LULL para o exercício judicial dos direitos cambiários.

X. Consequentemente, o direito incorporado no título dado à execução já havia prescrito, pelo menos, há mais de cinco anos, quando a ação foi proposta, pelo que se deverá declarar extinta, por prescrição, a obrigação exequenda e, em consequência, ser declarada extinta a execução (artigo 732.º n.º 4 do CPC).».

   A Recorrida contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:

«I – Vem o recurso de revista a que ora se responde interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação ... de 27/01/2022, o qual julgou integralmente procedente a apelação do Haitong Bank, S.A. e, nessa medida, decidiu:

A) Revogar a sentença recorrida, declarando improcedentes os embargos de executado quanto à questão da prescrição do direito cambiário, determinando o prosseguimento dos autos no tribunal a quo para apreciação das demais questões invocadas pelo embargante;

B) Determinar o prosseguimento da ação executiva declarada extinta na sentença ora revogada;

II – Inconformado, o embargante, ora apelante, vem propugnar o entendimento de que, na falta de determinação expressa no pacto de preenchimento do limite temporal para o preenchimento da livrança, o mesmo terá de ser realizado no prazo de 3 anos, previsto no art.º 70.º da LULL, contado do momento em que a livrança podia ser preenchida por estar vencido o crédito, resolvido o contrato e/ou dissolvida administrativamente a sociedade subscritora da livrança, e não já da data do seu vencimento;

III – O apelado não se conforma com tal entendimento, em primeira linha, por não se encontrar ainda determinada qual a vontade real das partes ao subscreverem o pacto de preenchimento (n.º 2 do art.º 236.º do Código Civil, tendo-se precipitado ao proferi-la, violando, assim, a al) b) do n.º 1 do art.º 595.º do CPC” a contrario”);

IV – Por outro lado, um declaratário normal (do art.º 236.º do CC), colocado na posição do apelante, empresário e bancário, não poderia deixar de entender que o apelado - como é prática corrente em contextos análogos - poderia preencher a livrança quando assim o entendesse;

V – A própria entrega de livrança em branco ao banco, de per si, consiste num significante, com um significado: o preenchimento daquela fica ao critério e conveniência do banco;

VI – O apelante incorre num manifesto lapso: da falta de referência expressa ao limite temporal para o preenchimento não se pode extrair que esse limite é de três anos; já oposto seria verdadeiro, se o pacto preenchimento estabelecesse um limite temporal para o preenchimento, o que executado não alegou nem provou (o executado não alegou ter sido convencionado um limite temporal para o preenchimento, como lhe incumbiria);

VII - A existir um prazo para o preenchimento da livrança sob pena de prescrição, o mesmo seria o prazo de 20 anos da prescrição ordinária (art.º 309.º do CC) e nunca ao prazo do art.º 70.º da LULL;

VII – No instituto da prescrição confronta-se o valor da justiça (nesse plano a prescrição não tem razão de ser) e os valores da segurança e certeza nas relações jurídicas, na falta de indiscutível determinação legal, dever-se-á aplicar o prazo da prescrição ordinária;

IX – A livrança em branco não é um verdadeiro título cambiário, é um embrião de título, não se lhe devendo, por isso, aplicar o prazo de 3 anos de prescrição do art.º 70.º da LULL, mas o prazo de 20 anos previsto no art.º 309.º do Código Civil;

X – É entendimento generalizado na jurisprudência (onde se inclui o acórdão recorrido) e doutrina que a contagem do prazo previsto no art.º 70.º da LULL apenas tem o seu início com o preenchimento da livrança (já não a partir do momento em que esse preenchimento é possível);

XI – A seguir-se o entendimento do apelante, à mesma livrança seria aplicável em dois momentos distintos, o mesmo prazo prescricional do art.º 70.º da LULL i) na fase do preenchimento (contado a partir do momento em que podia ser preenchida) e ii) na fase da livrança já preenchida (contado da data aposta no título);

XII – As ideias de literalidade e certeza estruturante no direito cambiário, não podem conviver com interpretações potencializadores de discussões sobre se um título prescreveu ou não;

XIII - Se houve uma menor celeridade do que seria expectável por parte do exequente no preenchimento e accionamento da livrança, isso resultou de iniciativas do apelante que de forma abusiva explorou relações pessoais e familiares com altas esferas do Grupo Banco Espírito Santo, onde o apelado se integrava, consistindo a invocação da prescrição num abuso de direito no exercício do direito de defesa, tudo como vai alegado nos art.ºs 67.º a 68.º da contestação à oposição por embargos de executado, matéria que o tribunal de primeira instância devia ter tentado esclarecer (al) b) do n.º 1 do art.º 595.º do CPC);

XIV - Em síntese a livrança não se encontra prescrita nos termos do art.º 70.º da LULL pois que se venceu em 15/01/2020 (i.e. a contagem do prazo de prescrição previsto no art.º 70.º da LULL faz-se da data aposta na data de vencimento e não, tese do apelante, da última data de vencimento de obrigações emergentes do contrato de transacção (18/11/2007), data a partir da qual podia ter sido preenchida ou, quando menos, da data da dissolução administrativa da subscritora da livrança (19/10/2011));

XV - Concluindo-se, portanto, como no douto acórdão recorrido, no sentido em que compete ao avalista, no momento em que presta aval, precaver-se, através do pacto de preenchimento, de situações como as do caso concreto.

XVI - E, consequentemente, não se verificando qualquer situação de prescrição da relação cartular titulada pela livrança dos autos, o douto acórdão ora em crise que revogou, e bem, a sentença recorrida, substituindo-a por outra que julga tal prescrição improcedente, procedendo ao prosseguimento dos autos, designadamente determinando o prosseguimento da ação executiva, declarada extinta na sentença ora revogada, bem como apreciando as demais questões invocadas pelo embargante e que, nos termos do art. 608.º, n.º 2, do código de processo civil, não chegaram a ser apreciadas..

XVII - Pelo que, deve improceder o recurso a que ora se responde e, em consequência, manter-se, in totum, o douto acórdão recorrido.».

Cumpre apreciar e decidir.


3. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem como objecto a questão de saber se a livrança podia ter sido preenchida mais de doze anos após a data de incumprimento da obrigação subjacente e mais de oito anos após a dissolução administrativa da sociedade subscritora da livrança e, consequentemente, também a questão de saber se a obrigação cambiária se deve considerar prescrita.


4. Com relevância para a apreciação das questões recursórias foi provado o seguinte:

1. Por escrito intitulado «Contrato de Transação», datado de 18.11.1999, celebrado entre a GOLFCONSULT – SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS, S.A., a GOLF OBRA – DESENHO, IRRIGAÇÃO E MANUTENÇÃO DE GOLFE JARDIM, LDA., a TURFOBRA – RELVADOS E JARDINS, S.A., a GOLFGEST – GESTÃO DE GOLFES, S.A., a GOLFREP – REPRESENTAÇÃO DE ARTIGOS DE DESPORTO, LDA., a GOLFTEC – SISTEMAS INFORMÁTICOS DE GESTÃO E PROJECTOS, S.A. (Primeiras Contraentes), o BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A., o BANCO INTERNACIONAL DE CRÉDITO, S.A., o BANCO ESPÍRITO SANTO DE INVESTIMENTO, S.A., o BESLEASING MOBILIÁRIA, S.A. (Primeiras Contraentes), o BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A., o BANCO INTERNACIONAL DE CRÉDITO, S.A., o BANCO ESPÍRITO SANTO DE INVESTIMENTO, S.A., o BESLEASING MOBILIÁRIA, S.A. (Instituições Credoras) e AA, BB e CC (Garantes), as Primeiras Contraentes declararam-se devedoras perante as Instituições Credoras do montante global de 696.004.344$00 - saldo credor total -, que se obrigaram solidariamente a restituir em 12 prestações semestrais e variáveis de capital, vencendo-se a primeira prestação em 18.05.2002 e a última no dia 18.11.2007.

2. Ficou então ajustado no referido «Contrato de Transação» que o saldo credor total não venceria juros durante os três primeiros anos de vigência daquele contrato e que, a partir de 18.11.2002, passaria a ser remunerado a uma taxa indexada à taxa LISBOR a um ano, em vigor no segundo dia útil anterior ao início de cada período de contagem de juros e seriam pagos da seguinte forma:

a. anualmente, ocorrendo o primeiro pagamento em 18.11.2003, sendo que a quantia a pagar não poderia em caso algum ultrapassar 50% do resultado corrente consolidado positivo das Primeiras Contraentes que houvesse no final do exercício anual anterior ao período de contagem dos juros em causa; e

b. os juros que se vencessem a partir de 18.11.2002, cujo pagamento não tivesse sido efetuado por força do disposto supra em “a.”, seriam integralmente pagos no último dia do prazo de vencimento do contrato, ou seja, em 18.11.2007.

3. Para garantia do reembolso a cada Instituição Credora da sua participação no saldo credor total, bem como do pagamento dos respetivos juros remuneratórios e de mora, comissões e demais encargos e, ainda, das despesas judiciais e extrajudiciais que aquelas viessem a fazer para boa cobrança dos seus créditos, a GOLFCONSULT entregou na mesma data (18.11.1999) a cada uma das Instituições Credoras uma livrança em branco, subscrita pela GOLFCONSULT e avalizada pelos Garantes, incluindo o Embargante, com o respetivo termo de autorização de preenchimento.

4. O Embargante assinou, na qualidade de avalista, escrito intitulado «Termo de Autorização de Preenchimento», igualmente assinado pelo Embargado, com o seguinte teor:

«Para garantia da totalidade do capital em dívida ao BANCO ESPÍRITO SANTO DE INVESTIMENTO, S.A. (adiante BES INVESTIMENTO) emergente de Contrato de Transacção celebrado em 18 de Novembro de 1999 entre o GRUPO GOLFCONSULT – SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS e os AVALISTAS abaixo identificados, o BES INVESTIMENTO, o BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A. e o BANCO INTERNACIONAL DE CRÉDITOS, S.A. que, à presente data, é de Esc. 261.024.163$00 (duzentos e sessenta e um milhões vinte e quatro mil cento e sessenta e três escudos), dos juros remuneratórios e de mora e demais encargos, bem como das despesas judiciais e extrajudiciais que a Instituição Credora venha a fazer para boa cobrança dos seus créditos, à data do respectivo vencimento ou das suas eventuais prorrogações, compreendendo o saldo que for devido, comissões, juros remuneratórios e de mora e demais encargos ou despesas que possam resultar do referido contrato e eventuais alterações que venham a ocorrer ao texto do mesmo por acordo entre as partes, junto remetemos uma livrança subscrita pela sociedade GOLFCONSULT – SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS, S.A. (neste termo designada por SUBSCRITORA) e avalizada pelos Exmªs Senhores AA, BB e CC, cujo montante e data de vencimento se encontram em branco para que o BES INVESTIMENTO os fixe, completando o preenchimento do título, em caso de incumprimento por parte da SUBSCRITORA e das sociedades GOLFOBRA – DESENHO, IRRIGAÇÃO E MANITENÇÃO DE GOLFE E JARDIM, LDA., TURFOBRA – RELVADOS E JARDINS, S.A., GOLFGEST – GESTÃO DE GOLFES, S.A., GOLFREP – REPRESENTAÇÃO DE ARTIGOS DE DESPORTO, LDA. e GOLFTEC – SISTEMAS INFORMÁTICOS DE GESTÃO E PROJECTOS., S.A. (neste termo todas em conjunto designadas por GRUPO G...) de qualquer das obrigações assumidas no Contrato de Transacção acima identificado, o que desde já, e por este termo, se autoriza.

O montante até ao qual a livrança poderá ser preenchida está limitado à participação desse Banco na totalidade do crédito emergente do referido Contrato, a qual corresponde a uma percentagem de 37,5032%.

A referida livrança não implica uma novação da dívida, mantendo-se integralmente válidas as obrigações emergentes para o GRUPO GOLFCONSULT do referido Contrato de Transacção e dos contratos identificados no seu Anexo II.

Os AVALISTAS dão o seu assentimento à remessa da livrança, nos termos e condições em que é feita, pelo que connosco assinam a presente autorização».

5. Por escritura pública intitulada «Hipoteca», outorgada em 17.05.2000, no então ... Cartório Notarial ..., exarada a fls. 76 a fls. 79 do Livro n.º ...70... de escrituras diversas do aludido Cartório, o Embargante declarou constituir hipoteca a favor das Instituições Credoras identificadas em 1 sobre o lote de terreno para construção, designado pelo lote n.º ...5, sito na Quinta ..., freguesia ..., concelho ..., com o n.º 3978, abrangendo a hipoteca a edificação que iria ser construída no referido terreno, para garantia do capital emergente do «Contrato de Transação» referido em 1, juros remuneratórios e de mora e demais encargos, bem como despesas judiciais e extrajudiciais.

6. A hipoteca que antecede mostra-se registada junto da Conservatória do Registo Predial pela AP. ...4 de 22.11.1999, a favor, conjuntamente, do BANCO ESPÍRITO SANTO DE INVESTIMENTO, S.A., do BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A., do BANCO INTERNACIONAL DE CRÉDITO, S.A. e do BESLEASING MOBILIÁRIA, S.A. pelo capital de 80.0000.000$00 (nas proporções de 32,9395% pelo BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A.; 24,5028% pelo BANCO INTERNACIONAL DE CRÉDITO, S.A.; 37,5032% pelo BANCO ESPÍRITO SANTO DE INVESTIMENTO, S.A. e 5,0545% pelo BESLEASING MOBILIÁRIA, S.A.), juro anual de 2,7299%, acrescido de 2% em caso de mora e despesas de 2.000.000$00, sendo o montante máximo assegurado de 93.351.760$00.

7. O Embargado procedeu ao preenchimento da livrança exequenda, emitida em 18.11.1999, que havia sido entregue em branco ao Embargado, então designado BANCO ESPÍRITO SANTO DE INVESTIMENTO, S.A. (e anteriormente BANCO ESSI, S.A.), com vista a garantir o cumprimento das responsabilidades emergentes do «Contrato de Transação», nos termos aludidos em 3, tendo inscrito em tal livrança o valor de € 1.953.565,46 e o vencimento em 15.01.2020, sendo que no verso desta livrança consta a assinatura do Embargante sob os dizeres: «Por aval à subscritora».

5. Assinale-se, antes de mais, que, no passado dia 21-04-2021, foi proferido, nesta Secção do Supremo Tribunal de Justiça, acórdão no âmbito do processo n.º 3941/20....[1], disponível em www.dgsi.pt, respeitante a recurso interposto por AA, ora recorrente embargante, contra o Novo Banco, S.A., ali recorrido embargado, sendo que as questões analisadas nesse acórdão correspondem essencialmente àquelas que se colocam no presente recurso e sendo de afirmar, desde já, que se subscreve, na íntegra, a posição ali assumida.

   Vejamos então.

6. Não suscita particular controvérsia a possibilidade de emitir uma livrança em branco, podendo esta definir-se como:

 «Aquela a que, ainda que falte algum ou faltem alguns dos requisitos essenciais mencionados no art. 75.º da Lei Uniforme relativa Letras e Livranças, “incorpora, pelo menos, uma assinatura que tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária”, “destinando-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior sendo a sua aquisição / entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, o denominado ‘acordo ou pacto de preenchimento’» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-10-2019, proc. n.º 295/14.2TBSCR-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Neste sentido, cfr. Ferrer Correia (Lições de Direito Comercial, Vol. III, Universidade de Coimbra, Coimbra, 1973, págs. 124 e segs.), Engrácia Antunes (Os Títulos de Crédito, Uma Introdução, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2012, págs. 65 e segs.) e Pinto Furtado (Títulos de Crédito – Letra, Livrança, Cheque, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 144 e segs.).

  A emissão de livranças em branco configura uma prática comum, muitas vezes associada a negócios bancários e justifica-se pela necessidade de acautelar o credor quanto a variações no montante da dívida, quanto ao momento do incumprimento e quanto ao momento adequado para propor a acção de cobrança de dívida (cfr. Engrácia Antunes, ob. cit., pág. 65; Pinto Furtado, ob. cit., pág. 144).

A propósito da natureza jurídica da letra em branco, afirma Ferrer Correia (ob. cit., págs. 127-128), em termos que se afiguram válidos para a livrança em branco:

«O que existe antes do preenchimento para o emitente do título não é a obrigação cambiária, é apenas o estar ele sujeito ao exercício do direito (potestativo) do portador de preencher a letra, sendo o preenchimento que marca o nascimento da obrigação cambiária.».

Neste sentido, ver também Engrácia Antunes (ob. cit., págs. 66-67), Pinto Furtado (ob. cit., pág. 144) e Carolina Cunha (Letras e Livranças: Paradigmas actuais e recompreensão de um regime, Almedina, Coimbra, 2012, págs. 635 e segs.).

Ora, se apenas a obrigação cambiária é susceptível de prescrever, torna-se evidente que, conforme se entendeu no acórdão deste Supremo Tribunal de 16-06-2019 (proc. n.º 1025/18.5T8PRT.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado:

«IV - Enquanto não for preenchida a livrança em branco, com os elementos essenciais referidos no art. 76.º da LULL, designadamente a data de vencimento, não é possível conhecer da eventual prescrição do crédito cambiário, nem tão pouco do eventual abuso de preenchimento».

   Deste modo, apenas após preenchimento da livrança é possível discutir o eventual preenchimento abusivo daquela, quer por incumprimento do pacto de preenchimento (inexistência do direito), quer por eventual exercício abusivo do direito ao preenchimento livre da livrança (abuso do direito).

Quer dizer que importa averiguar se o portador não podia, nos termos do pacto, inscrever aquela concreta data de vencimento ou se, podendo fazê-lo a todo o tempo, se deve considerar ilegítimo o exercício do direito ao livre preenchimento da livrança em determinadas circunstâncias.

Em todo o caso, a questão da prescrição da obrigação cambiária opera apenas a jusante, isto é, o prazo de prescrição apenas poderá ser contabilizado após análise da existência ou não de preenchimento abusivo nas duas vertentes supra mencionadas e após determinação da data de vencimento efectivamente visada pelas partes ou, na ausência de previsão contratual, na data de vencimento imposta pelo princípio da boa-fé.

No que diz respeito à posição jurídica do avalista, pronunciou-se Ferrer Correia (ob. cit., págs. 196-197) nos seguintes termos:

«Desta forma, parece fácil indicar a natureza jurídica do aval: é uma garantia; a obrigação do avalista ê uma obrigação de garantia - garantia da obrigação do avalizado. Economicamente, não há dúvida quanto a ser a obrigação do avalista uma obrigação de garantia: o fim próprio, a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário (...). Essa garantia vem inserir-se ao lado da obrigação de um determinado subscritor, cobrindo-a, caucionando-a.».

A respeito do risco assumido pelos obrigados cambiários, em especial pelo avalista, em caso de subscrição de letra ou livrança em branco, afirma Paulo Sendim (Letra de Câmbio, L.U. de Genebra, Vol. II - Obrigações e Garantias Cambiárias, Universidade Católica Portuguesa, Livraria Almedina, Coimbra, 1982, pág. 837) o seguinte:

A «participação do aval no risco inicial próprio da letra em branco compreende-se, e com ela igualmente a sua acessoriedade com a operação da letra que avaliza, uma vez que se veja que esta garantia cambiária não pode, por si, assumir esse mesmo risco, mas a ele não se pode furtar».

 E, nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos (Aval em Branco, Revista de Direito Comercial, in www.revistadedireitocomercial.com, 09-03-2018, pág. 391):

«O subscritor da livrança em branco promete e compromete-se a ficar vinculado no título tal como vier a ser preenchido por um portador, de acordo com o pacto de preenchimento. E porque assim promete e se compromete, não pode libertar-se unilateralmente da sua promessa e do seu compromisso. Está vinculado.

Dito de outro modo, a situação jurídica em causa é um poder potestativo, com a correspetiva sujeição jurídica. O exercício deste poder potestativo – o preenchimento – é efetuado unilateralmente e produz efeitos diretamente na esfera jurídica do subscritor independentemente da sua vontade quanto ao concreto ato de preenchimento.

Assim sucede com todos os poderes potestativos.».

Não é, pois, por acaso que tem sido entendimento unânime que a posição jurídica do avalista se reconduz, tudo visto, a uma sujeição, estando o avalista:

 «Sujeito a que o portador a preencha, pelo valor que for e com vencimento na data que for. O portador ao preencher a letra exerce um direito potestativo» (Pedro Pais de Vasconcelos/Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Vol. I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, pág. 399).

Transpondo os ensinamentos enunciados para o caso dos autos, resulta evidente que o embargante, ora recorrente, ao subscrever uma livrança em branco, assumiu o risco de tal título vir a ser preenchido pelo portador, nos termos do pacto de preenchimento, por si subscrito.

Ora, tem sido entendimento unânime da jurisprudência deste Supremo Tribunal que o pacto de preenchimento está sujeito às regras que regem a interpretação e integração do negócio jurídico, previstas nos arts. 236.º e segs. do Código Civil. Sucede que, lidas as alegações de recurso, verifica-se que o recorrente não invoca a eventual violação do pacto de preenchimento, admitindo, de resto, que não foi estabelecido qualquer limite máximo para o preenchimento da livrança, sendo o pacto de preenchimento omisso nessa matéria.

Em todo o caso, por se tratar de matéria de direito, importa afirmar que, atenta a factualidade alegada pelo recorrente e tendo por referência o texto do pacto de preenchimento, não existem quaisquer indícios de que a vontade, real ou hipotética, das partes tenha sido outra que não a constante no mencionado pacto.

Por outro lado, se é certo que a emissão de livranças em branco está relacionada com o objectivo de acautelar o credor cambiário quanto a flutuações no montante da dívida, data do seu incumprimento, possível demora em eventual negociação de dívida e definição do momento adequado para a sua cobrança coerciva, entende-se que a boa-fé não impõe a previsão de um limite temporal máximo para o preenchimento da livrança.

Assim, as partes, ao abrigo da autonomia privada, optaram por não acordar qualquer limite máximo para o preenchimento da livrança, não estando, assim, em causa o seu preenchimento abusivo stricto sensu, na vertente de violação do pacto de preenchimento.

Nas palavras do referido acórdão deste Supremo Tribunal de 21-04-2022, proferido no âmbito do processo n.º 3941/20.5T8STB-A.E1.S1:

 “Não se apurando que a vontade dos intervenientes tenha ou tivesse sido a de estabelecer condicionamentos à data do vencimento e, não sendo estes impostos pela boa-fé (cfr. art. 762.º, n.º 2, do CC), o portador da livrança em branco é livre de a preencher em data que considerar conveniente”.

Neste sentido, pronunciaram-se, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19-05-2020 (proc. n.º 7062/16.7T8LSB-A.S1), de 24-10-2019 (proc. n.º 6871/17.4T8VNF-A.G1.S1), não publicados, assim como os acórdãos de 24-10-2019 (proc. n.º 1418/14.7TBPVZ-B.P2.S2) e de 16-06-2019 (proc. n.º 1025/18.5T8PRT.P1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.

 

7. Não estando em causa a existência do direito ao preenchimento livre da livrança, importa apreciar se o exercício desse direito, por parte do portador, deve considerar-se abusivo ou dito de outro modo se, de acordo com o princípio da boa-fé, seria de exigir ao portador o preenchimento da livrança com outra data de vencimento.

É este exercício abusivo, na veste de abuso do direito, que o recorrente invoca.

Importa, assim, apreciar se, atentos os contornos do caso concreto, o portador exerceu de forma abusiva o seu direito ao livre preenchimento da livrança (facto provado n.º 4 provado).

Quanto à matéria do preenchimento abusivo da livrança (abuso do direito), refira-se o acórdão deste Supremo Tribunal de 19-10-2017 (proc. n.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado, na parte relevante:

“III - Ao dar o aval ao subscritor em livrança em branco, fica o avalista sujeito ao direito potestativo do portador de preencher o título nos termos constantes do contrato de preenchimento, assumindo mesmo o risco de esse contrato não ser respeitado e de ter de responder pela obrigação constante do título.

IV - O abuso de direito na sua vertente de “venire contra factum proprium”, pressupõe que aquele em quem se confiou viole, com a sua conduta, os princípios da boa fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio. 

V - O simples decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é suscetível de, sem mais, criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação que sobre ele impende.

VI - O preenchimento de uma livrança, entregue em branco ao credor quanto ao montante e data de vencimento, decorridos mais de doze anos sobre a data da constituição da obrigação e mais de sete anos sobre a declaração de insolvência da sociedade subscritora da livrança, e a instauração da ação executiva contra a avalista desta sociedade, só por si, não consubstanciam fundamento bastante para o reconhecimento do abuso de direito previsto no art. 334.º do CC, na modalidade de "venire contra factum proprium"

Entende-se que, em tese, o exercício do direito ao livre preenchimento pode considerar-se abusivo se se verificar que o portador da livrança adoptou uma conduta censurável e atentatória da dos “limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito” (cfr. art. 334.º do CC). 

 Sucede que tal comportamento censurável ou gravemente chocante não ocorreu no caso concreto, pelos motivos indicados no referido acórdão de 21-04-2022 (proc. n.º 3941/20.5T8STB-A.E1.S1), que se retomarão de seguida.

 Desde logo, pelo facto de o embargante recorrente ter tido intervenção no negócio subjacente, podendo, por isso, ter conhecimento do estado da sua execução e podendo acompanhar o desenrolar dos acontecimentos. Podia, assim, ter cumprido voluntariamente a obrigação face ao incumprimento, evitando a execução da livrança. Por outro lado, se o recorrente tinha conhecimento dos riscos assumidos com o aval prestado, o mero decurso do tempo e a inércia do portador não podem servir de fundamento para que se exima à sua responsabilidade.

  Acresce que fazer depender o vencimento da livrança do incumprimento da obrigação subjacente, para além de não resultar do pacto de preenchimento, beneficiaria os devedores inadimplentes e impossibilitaria a tentativa de renegociação da dívida que ocorre, em regra, na prática bancária.

  De facto, como é comumente sabido, as negociações com entidades bancárias em caso de incumprimento são, em regra, morosas, tendo em consideração, não só os valores envolvidos, como também a complexidade dos negócios em causa e a circunstância de os mesmos envolverem, como é o caso, diversas entidades. Ademais, as próprias entidades bancárias têm interesse na resolução extrajudicial do litígio, de forma a evitar o registo de perdas ou de imparidades. Todos estes aspectos podem determinar – e, em regra, determinam – um atraso no preenchimento da livrança, não sendo, de todo, imputáveis ao portador da mesma.

 Por outro lado, como se salientou no dito acórdão de 21-04-2022, fazer depender a data de vencimento da livrança da dissolução da sociedade subscritora equivaleria a fazer depender da vontade da própria subscritora do título a data de vencimento, para o que bastaria promover a dissolução da sociedade devedora, com total subversão das normas legais que regem as letras e livranças.

 Ademais, a simples verificação da dissolução administrativa da sociedade subscritora não implica, por si só, a conclusão de que a portadora da livrança actuou abusando do seu direito, sendo que, como se realçou no acórdão de 21-04-2022, cuja fundamentação vimos seguindo de perto, em raciocínio que aplica também ao caso dos presentes autos:

 «Tão pouco existem sinais de que se configure um abuso do direito (…), quer dizer, simplificadamente, de que o facto de o recorrido não ter exercido o direito imediatamente a seguir à dissolução/extinção da sociedade subscritora tenha criado no recorrente, pelas circunstâncias que rodearam essa inacção, a confiança que o mesmo já não viria a ser exercido e de que por essa razão o seu exercício agora não seja admissível».

Atento o exposto, não tendo sido acordado entre as partes uma data-limite para o preenchimento da livrança e não resultando a fixação de tal data do princípio da boa-fé, consideramos que não se revela como abusivo o preenchimento da livrança nas circunstâncias descritas nos autos, seja na vertente de violação do pacto de preenchimento, seja na vertente de abuso do direito ao livre preenchimento da livrança.

 Aqui chegados, perante a conclusão de que não existiu preenchimento abusivo, constando da livrança como data de vencimento 15-01-2020, e tendo a acção executiva sido instaurada em 17-03-2020, há que concluir pela não verificação da excepção de prescrição.


8. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.


Custas pelo recorrente.


Lisboa, 7 de Junho de 2022


Maria da Graça Trigo (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira

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[1] Relatado pela Senhora Conselheira Catarina Serra, aqui 1.ª Adjunta, e votado pelo Senhor Conselheiro Paulo Rijo Ferreira, aqui 2.º Adjunto.