Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
323/20.2T8LRA.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
EXONERAÇÃO
DEVEDOR
PAGAMENTO
OBRIGAÇÃO
SUB-ROGAÇÃO
EMPRÉSTIMO BANCÁRIO
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Tendo a autora assumido uma dívida dos réus por contrato entre o novo devedor, o credor e devedores primitivos, com expressa declaração do credor de exoneração dos primitivos devedores, que pagou, cumpriu uma obrigação própria, realizou as prestações devidas extinguindo assim a obrigação pelo cumprimento.

II - Não pode, depois, exigir dos devedores primitivos o que pagou ao credor na sequência da assunção de dívida, com fundamento em sub-rogação, ainda que antes desta haja sido garante do cumprimento dos primitivos devedores.

Decisão Texto Integral:
I – Relatório

I.1 – Questões a decidir

AA, autora, invocando ter garantido e pago uma dívida de natureza comercial que os réus contraíram perante o BNC, S.A, hoje Banco Popular de Portugal, S.A., formulou o pedido de condenação destes a pagarem-lhe a quantia de €1.681.942,53 (um milhão seiscentos e oitenta e um mil novecentos e quarenta e dois euros e cinquenta e três cêntimos), acrescida de juros vincendos, à taxa legal para as operações comerciais, contados sobre €1.200.584,00 (um milhão e duzentos mil e quinhentos e oitenta e quatro euros), desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

A acção veio a ser julgada totalmente improcedente com fundamento na não verificação dos pressupostos legais da sub-rogação invocada pela autora.

A autora interpôs recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, requerendo a revogação da sentença recorrida, apresentando as correspondentes alegações, que terminam com as seguintes conclusões:

A. O tribunal a quo fez uma errada interpretação da lei e da situação dos autos.

B. Inexistem factos não provados.

C. Pese embora os réus, ora recorridos hajam negado a existência do contrato de mútuo suprarreferido (cfr. 28.º; 29.º e 46.º da contestação), alegando não ter sido depositada na sua conta qualquer quantia por parte do BNC — Banco Nacional de Crédito, S.A., hoje denominado Banco Popular Portugal, S.A.., o certo é que tal não corresponde à verdade, de acordo com as informações prestadas nos autos pelo Banco Santander Totta, S.A., em 22.11.2020 (requerimento com a Ref.ª ...65); em 04.01.2021 (requerimento com a Ref.ª ...20) e em 29.01.2021 (requerimento com a Ref.ª ...83).

D.  O mútuo foi dado como provado pelo tribunal a quo, em 6 e 7 dos factos provados.

E.  Assim como foi dado como provado que o mútuo “foi liquidado segundo informação bancária, com data valor de 18 de julho de 2017” (facto provado n.º 27) pela autora, ora recorrente (cfr. e-mails com a referência ...65, de 22.12.2020 e ...83, de 29.01.2021).

F. O direito de sub-rogação traduz a substituição do credor na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento.

G. A sub-rogação pode ser voluntária, quando decorre de manifestação expressa da vontade do credor ou do devedor, designadamente quando, apesar de ser o devedor a cumprir, o faz com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada por terceiro, ou legal, quando opera por determinação da lei, independentemente de declaração do credor ou devedor.

H. Fica sub-rogado nos direitos do credor, o terceiro que cumpra a obrigação alheia quando tiver garantido (previamente) o cumprimento, isto é, quando o cumprimento tenha em vista evitar a execução de garantia que prestou.

I. É o que se passa quando o terceiro tenha garantido o cumprimento do devedor, por ex., constituindo hipoteca ou penhor sobre coisa sua. Nestes casos, embora o terceiro, enquanto proprietário da coisa hipotecada ou empenhada, não esteja obrigado pessoalmente a pagar ao credor, pode fazê-lo, no seu próprio interesse, porquanto, se não cumprir, sujeita-se à respetiva execução, e, na sequência dela, pode sofrer a perda dos bens onerados, ou pode, ver a sua posição agravada em função de eventual indemnização decorrente do não cumprimento.

J. Foi precisamente o que aconteceu nos presentes autos, como, de resto, resulta dos factos provados n.ºs 9, 11, 13, 19, 20, 27, 28 e 29.

K. Nos termos da última parte do n.º 1 do artigo 592.º do C.C., fica, também, sub-rogado nos direitos do credor, o terceiro que cumpra a obrigação alheia, quando por outra causa estiver diretamente interessado na satisfação do crédito.

L.  Exige-se um interesse direto, que a doutrina vem entendendo como sendo um interesse patrimonial e próprio, excluindo-se os casos em que o cumprimento se realize no exclusivo interesse do devedor ou por mero interesse «moral» ou «afetivo» do «solvens».

M.  Esse interesse direto do próprio terceiro, verificar-se-á sempre que, com o cumprimento, o terceiro pretenda evitar a perda ou limitação dum direito que lhe pertence ou mesmo quando o «solvens» apenas pretende acautelar a consistência económica do seu direito, podendo, de um modo geral, dizer-se que tem interesse direto quem é ou pode ser atingido na sua posição jurídica pelo não cumprimento e pretenda, precisamente evitar essas consequências.

N.  Face ao que ficou demonstrado, no caso dos autos estão reunidos os requisitos da sub-rogação, desde logo porque o cumprimento da obrigação dos réus, ora recorridos, partiu da iniciativa da autora, ora recorrente (factos provados n.ºs 19, 22, 23, 27).

O.  Esse “cumprimento” foi efetivado no interesse direto e próprio da autora, ora recorrente (terceira garante), com vista a evitar males e prejuízos maiores para si, especialmente, para conseguir obter a extinção das garantias referidas em 19, 22 e 23 dos factos provados.

P. Constituindo o pagamento (parcial) que a autora, ora recorrente, suportou um cumprimento interessado da obrigação dos réus, ora recorridos, resulta indubitável que aquela não pode deixar de ser sub-rogada e receber destes, a quantia de €1.200.584,00, acrescida de juros de mora peticionados.

Q.  A sub-rogação legal é a que resulta diretamente da lei.

R. Quando a sub-rogação se encontra prevista na lei é desnecessária qualquer declaração do credor ou do devedor, para que o solvens fique sub-rogado no direito de crédito satisfeito, passando a ocupar a posição do credor originário. Essa substituição da pessoa do credor decorre ope legis da satisfação do crédito, ocorrendo a sub-rogação por “vontade” da lei e não pela vontade manifesta nesse sentido pelo credor ou pelo devedor.

S.  Assim, deverá ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que, julgando a ação procedente por provada, condene os réus no pedido.

T.  A douta sentença recorrida violou, assim, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 592.º, n.º 1 e 593.º do C. C.

U.  No presente recurso, nas suas alegações, a recorrente discute apenas questões de direito.

V.  O valor da causa é superior à alçada da Relação.

W.  Pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 678.º do Código de Processo Civil, requer-se que o mesmo (per saltum) suba diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça.

Os Réus em suporte da decisão recorrida apresentaram contra-alegações que terminam com as seguintes conclusões:

I. O Réus/Recorridos entendem que, na mui douta sentença, no que concerne à improcedência do pedido, por o mesmo não emergir de uma sub-rogação legal, foi, efetivamente, feita a apreciação proporcional, cabal e adequada da factualidade apresentada e bem assim do Direito, conduzindo à venerada justiça.

II. Os factos provados e a prova carreada nos autos não é suficiente para procedência do pedido, e causa de pedir da Autora/Recorrente.

III.  Inexiste qualquer indício que sequer permita aferir, com o rigor e segurança jurídica que se impõe, que existe uma obrigação contraída pelos Réus, em que estes se obriguem a pagar qualquer montante ou cumprir qualquer obrigação perante a Autora (ou qualquer outra entidade).

IV. Não foi dado por provado que os Réus/Recorridos tenham incumprido as obrigações a que estavam adstritos por via do contrato de mútuo celebrado em 30.11.2004, sendo também falso que, por via do alegado incumprimento, a Autora tenha efectuado uma adenda ao contrato de penhor, subscrição de letra em branco, constituído procurações irrevogáveis, constituído registo e depósito de instrumentos financeiros e de intermediação financeira.

V. Mas mais importante, é o facto de resultar confessado, e provado, que a Autora/Recorrente assinou, em 30.05.2011, livre e expressamente o contrato de assunção de dívida com caracter liberatório, no qual exonerou os terceiros contraentes – neste caso os Réus – de quaisquer responsabilidades relativa ao referido contrato de mútuo. E fê-lo por uma única razão, porque nessa mesma data lhe foram transmitidos pelos Réus (através da sociedade P..., S.A.) imóveis que asseguraram o pagamento de quaisquer montantes que ainda permanecessem por regular por via da compra e venda de participações da sociedade P..., S.A.

VI. Adicionalmente, a Autora não alega, nem prova, o credor pignoratício tivesse executado tal penhor, que existisse incumprimento, que a Autora tivesse sido devidamente interpelada e mais importante que tivesse pago directamente qualquer montante a este título em data anterior ou contemporânea com a assunção liberatória de dívida – e não o fez porquanto inexistiu qualquer incumprimento por parte dos Réus. Aliás, o alegado pagamento ocorreu em 18.07.2017 – ou seja mais de seis anos após a assunção de dívida.

VII. Por via do contrato de assunção de dívida, outorgado em 30.05.2011, a exequente assumiu a totalidade da dívida dos executados perante o o Banco Popular (anteriormente BNC – Banco Nacional de Crédito, SA (cláusula primeira do contrato de assunção de dívida). A referida assunção teve ainda carácter liberatório, exonerando os executados de quaisquer responsabilidades inerentes ao contrato de mútuo (Cláusula quinta do contrato de assunção de dívida).

VIII. Nos termos da cláusula sétima do referenciado contrato de assunção de dívida a Autora e os Réus, bem como as restantes partes envolvidas, declararam: “que nada mais foi convencionado, directa ou indirectamente, relacionado com a matéria do presente contrato, para além do que fica escrito nas suas cláusulas.” Assim, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 595.º, n.º 2 do CC, a referida transmissão de dívida tem carácter manifestamente liberatório – o Banco liberou expressamente da dívida os antigos devedores (Réus).

IX. Com a exoneração concedida aos antigos devedores, a Recorrente passou a ser a única obrigada a responder por dívida própria.

X. A entidade bancária e a própria Autora/Recorrente, de forma inequívoca e incontestada, libertaram/desoneraram os executados de uma obrigação – libertação/desoneração expressa e sem reservas. Tanto assim, o é que o próprio credor bancário não emitiu qualquer declaração de sub-rogação – não o tendo feito porque a existir pagamento este foi feito por quem estava primeiramente obrigado/compelido a fazê-lo e não por um terceiro (pagamento de uma dívida própria).

XI. De forma clara e inequívoca os autos mostram – alegação da Autora e documentos – é que a mesma começou por ser uma garante especial, de natureza real, da dívida dos devedores ora executados, através de penhor, e depois passou a devedora, por ter assumido a dívida dos executados.

XII. O contrato de assunção de dívida, no qual a Recorrente baseia o seu direito à sub-rogação, constitui uma transmissão singular de dívida, na qual foram intervenientes o credor Banco, os executados e a exequente – havendo inequívoca ratificação do credor e consentimento do antigo devedor.

XIII. Com a exoneração concedida aos antigos devedores, a Recorrente passou a ser a única obrigada a responder por dívida própria. Cabendo salientar que, conforme decorre do contrato de assunção de dívida (acordo subjacente ao direito arrogado) não eram os Réus os devedores, mas antes a própria Autora devedora ao Banco da quantia exequenda.

XIV. Não pode ocorrer sub-rogação, voluntária ou legal, quando é o próprio devedor a efetuar o pagamento. A Autora não é um terceiro, mas antes devedora, conforme decorre do contrato de assunção de dívida – e nessa medida, não há qualquer substituição face aos executados.

XV. Não há a sub-rogação legal, porquanto Autora e devedora assumem, por referência ao contrato de assunção de dívida a mesma qualidade, não se afigurando tal posição passível de se enquadrar como terceiro. Resulta inequívoca a fundamentação de que os ora Recorridos ficaram desonerados pelo Banco, passando a exequente a ser a única devedora de dívida própria e não alheia, não gozando assim de qualquer sub-rogação legal.

XVI. A assunção de dívida é consubstanciada pela aceitação por parte de um terceiro (assuntor) do pagamento de uma obrigação (pecuniária) de um devedor perante o correspondente credor. A assunção pressupõe claramente uma alteração da pessoa do devedor (entre o antigo devedor e o assuntor), mantendo-se inalterada a posição do credor – pois quando a este não há qualquer transmissão. Com efeito a assunção de divida prevê a continuidade do conteúdo da obrigação, da identidade do credor, apenas se registando a alteração do devedor.

XVII. Por outro lado, a sub-rogação traduz a substituição do credor no exercício de um direito a uma prestação, ou seja, um terceiro assegura o cumprimento que caberia ao devedor. Este terceiro só poderá fazê-lo caso haja atribuição expressa dessa vontade por parte do credor/devedor, ou até por quem possa ter garantido tal cumprimento.

XVIII. Está claramente excluída a possibilidade de ser o próprio devedor (assuntor) a assumir tal obrigação, porquanto este não assume o papel de terceiro na equação, mas antes de parte (cabendo só a si o cumprimento da obrigação que assumiu e a que se vinculou).

XIX. Deste modo, inexistindo qualquer declaração expressa da vontade de sub-rogar, seja do credor, seja do devedor, e não estando no âmbito da sub-rogação legal, não pode a Recorrente socorrer-se deste instituto, por não aplicável. Acolher a posição assumida pela Recorrente constituiria a incerteza jurídica no enquadramento das figuras da assunção liberatória e da sub-rogação, com a consequente confusão entre terceiro – credor – assuntor.

                                                          *

I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

A recorrente interpôs recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, previsto no art.º 678º do Código de Processo Civil.

Estamos em face do recurso de uma decisão final que absolveu os R.R. do pedido, numa acção com valor de 1.681.942,53 € e onde apenas estão em causa questões de direito. A subida do recurso ao Supremo Tribunal de Justiça foi oportunamente solicitada pela recorrente

Nada obsta, pois, à admissibilidade do presente recurso.


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I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:

1. A A. ao liquidar um empréstimo bancário que os réus tinham contraído ficou sub-rogada nos direitos do credor bancário?                                                             


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I.4 - Os factos

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

1 - Em 10 de Outubro de 2001 entre DD como primeiro outorgante, a A. como segunda outorgante, e os RR. como terceiros outorgantes, foi acordado e assinado pelas partes o designado “contrato promessa de cessão de quotas” cujo seu integral conteúdo na parte abaixo não indicada aqui se reproduz.

2 - Por tal contrato, os primeiros e segundo outorgantes prometeram ceder as quotas de que eram proprietários em diversas sociedades, aos terceiros outorgantes.

3 - O pagamento do valor das cessões seria efectuado conforme as partes discriminaram no chamado anexo I.

4 - Em tal anexo I (aqui totalmente reproduzido) foi fixado o valor das cessões em € 4.065.011,00 acrescido de juros de mora de € 586.530,00 em pagamento a realizar-se durante 12 anos na forma aí indicada.

5 - No dia 20 de Novembro de 2002 foi reduzida a escrito em Cartório Notarial ..., o pelas partes designado “cessões de quotas e alteração de pacto” cujo seu integral conteúdo aqui se reproduz:



*****














6 . Por contrato que as partes designaram de “mútuo”, celebrado por escrito particular em 30 de Novembro de 2004, os RR BB e mulher, CC declararam contrair junto do Banco Nacional de Crédito, S.A., um “empréstimo”, no montante de €2.800.000,00 (dois milhões e oitocentos mil euros).

7 . O referido “empréstimo” que segundo o acordado se destinaria a “apoio à tesouraria”, deveria ser reembolsado pelos ditos BB e mulher, CC em 48 prestações trimestrais e sucessivas, de capital e juros, ou seja, no prazo de 12 anos.

8. O Valor de € 2.8000,000,00 foi creditado em 30 de Novembro de 2014 na conta com o NIB ...55, renumerada para o NIB  ...97, conta solidária titulada pelos RR.

9. Para garantia do pagamento do “empréstimo” indicado em 6, na mesma data, a A. e o seu falecido marido autorizaram, através de carta por si assinada, “o débito da nossa conta de depósitos à ordem n.º ...80, para constituição do D. P. n.º P-...5, de €2.800.000,00, que servirá de garantia como penhor de crédito do empréstimo n.º ...41”.

10. Mais declararam que “esta carta é válida até assinatura do contrato de penhor de crédito a emitir pelo BNC”.

11. Por contrato assinado e datado de 30 de Novembro de 2004 cujo seu integral conteúdo, na parte não citada, aqui se reproduz, a A. e o seu falecido marido constituíram a favor do Banco Nacional de Credito, o designado “penhor de crédito” relativo a um depósito a prazo de €2.800.000,00 “em garantia do pontual cumprimento de quaisquer obrigações assumidas por BB e mulher, CC perante o BNC Banco Nacional de Credito, S.A., obrigações e responsabilidades essas provenientes de contrato de mútuo no montante de €2.800.000,00”.

12. Por via do aludido contrato, a A. e o seu falecido marido renunciaram “à faculdade de levantar o citado depósito a prazo, enquanto não se mostrarem satisfeitos os créditos do Banco”.

13. Por contrato assinado e datado de 25 de Janeiro de 2006, cujo seu integral conteúdo, na parte não citada, aqui se reproduz, a A. e o seu falecido marido, deram de penhor ao Banco Nacional de Crédito a “sua carteira de títulos colocada sob administração do Banco, abrangendo o penhor de títulos, créditos e outros valores compreendidos em cada momento na referida carteira (…) para garantia do bom cumprimento de responsabilidades de credito” assumida pelos ditos BB e mulher, CC “no montante de €2.800.000,00, celebrado com o Banco, em 30/11/2004, bem como dos juros remuneratórios, da cláusula penal pela mora e das despesas judiciais”.

14. Em 04 de Novembro de 2010 entre o Banco Popular de Portugal S.A. e os RR. foi celebrada e assinada a “adenda ao contrato de mútuo celebrado entre” aqueles RR. e o antecessor do Banco Popular com o seguinte conteúdo:

Pela presente adenda, acordam os contraentes em introduzir um período de carência ao contrato de mútuo celebrado por escrito particular em 30 de Novembro de 2004, com o Banco e ainda, alterar o número 1 da cláusula QUARTA do citado contrato, nos seguintes termos:

Quarta

1 - O empréstimo terá dois períodos distintos de amortização e um período de carência nos moldes a seguir indicados:

a) – O empréstimo será amortizado em vinte e três prestações trimestrais e sucessivas de capital e juros até 30/08/2010, vencendo-se a primeira prestação no terceiro mês após a celebração deste contrato;

b) – De 30/08/2010 a 28/02/2011 o empréstimo terá um período de carência de seis meses, durante o qual só se vencerão juros, os quais serão cobrados trimestralmente, e cujo vencimento da primeira prestação ocorrerá em 30/11/2010;

c) – Decorrido que seja o prazo de carência indicado na alínea anterior, o empréstimo será reembolsado em vinte e três prestações trimestrais e sucessivas de capital e juros, cujo vencimento da primeira prestação deste segundo período de reembolso terá lugar a 30/05/2011.

2 - As restantes condições referentes ao contrato supra identificado manter-se-ão em vigor, bem como a titulação e todas as garantias prestadas, pelo que as presentes alterações não constituem novação da dívida”

15. DD veio a falecer em 15 de Novembro de 2009.

16. Em 02 de Dezembro de 2009, por escritura pública, habilitaram-se como herdeiros do acima indicado:

- A A. AA; - EE;

- FF;

- GG.

17. Por escritura pública de 24 de Fevereiro de 2011, a A. comprou a GG o quinhão hereditário que a este cabia na herança de DD.

18. Por escritura pública de 25 de Março de 2011, a A. comprou a EE o quinhão hereditário que a esta cabia na herança de DD.

19. A 30 de Maio de 2011 o capital em débito e relativo ao “empréstimo” acima aludido era de acordo com informação bancária de € 1.624.365,93.

20. No dia 30 de Maio de 2011, entre o Banco Popular Portugal S.A.; a A. por si e na qualidade de herdeira de DD e de adquirente dos quinhões hereditários de EE e GG na herança daquele; BB e CC; FF na qualidade de herdeira de DD, foi reduzido a escrito e assinado - aqui se reproduzindo tal documento na parte a seguir não mencionada - o denominado “Contrato de Assunção de Dívida”, cujo seu conteúdo, na parte não citada, aqui se reproduz, mediante o qual a A. declarou pretender assumir a dívida dos terceiros contraentes (os ditos RR. BB e mulher, CC), perante o banco credor, emergente do “mútuo” identificado supra, confessando-se devedora das quantias em dívida ao banco à data da celebração do contrato resultantes da “assunção de dívida”.

21. No mesmo acordo o Banco Popular Portugal, S.A. declarou “aceitar a presente assunção de divida com carater liberatório, exonerando assim, os terceiros contraentes de quaisquer responsabilidades inerentes ao referido contrato de mútuo”.

22. No mesmo dia entre o Banco Popular Portugal, S.A., a A e FF, foi celebrado a designada “adenda ao contrato de penhor” cujo seu integral conteúdo aqui se reproduz.

23. A A. subscreveu ainda uma livrança em branco a favor do Banco Popular Portugal, S.A.

24. No dia 30 de Maio de 2011 a A. no Cartório Notarial ..., subscreveu a favor do Banco Popular Portugal, S.A., a designada “procuração” cujo seu integral conteúdo aqui se reproduz.

25. No dia aludido em 23 FF subscreveu no Cartório Notarial ..., a favor do Banco Popular Portugal, S.A., a designada “procuração” cujo seu integral conteúdo aqui se reproduz.

26. No dia 30 de Maio de 2011 em Cartório Notarial ... compareceram como primeiros outorgantes os RR. enquanto representantes da sociedade “P.…, S.A.” e como segunda outorgante a A., tendo os primeiros outorgantes em nome da sua representada dito que vendiam à segunda outorgante, pelo preço recebido de € 358.791,54 dois prédios, registados na ... Conservatória do Registo Predial ..., respectivamente sob os números mil quatrocentos e quarenta e duzentos e noventa respectivamente.

27. Por escritura pública de 23 de Setembro de 2011, a A. comprou a FF o quinhão hereditário que a esta cabia na herança de DD.

28. O “mútuo” indicado em 6 e alvo da “assunção de dívida” indicada em 19, foi liquidado segundo informação bancária, com data-valor de 18 de Julho de 2017, sendo que após a referida “assunção de dívida” a conta associada a tal “empréstimo” passou a ser uma conta titulada pela A. a qual tem actualmente o nº ...20.

29. O empréstimo aludido em 6 foi feito de modo a os RR. garantirem à A. e falecido marido o pagamento do valor da cessão de quotas referido em 1 a 5.

30. O montante indicado em 8 depois de passar na conta dos RR. ficou depositado na conta dos AA., constituindo esse valor um penhor a favor do banco, e à medida que os RR. fossem mensalmente liquidando ao banco o valor das prestações a que se obrigaram por via do aludido empréstimo, tais valores eram entregues à A. e falecido marido.

Inexistem factos não provados.

II - Fundamentação

1. Sub-rogação

A matéria de facto dá nota de um primeiro contrato celebrado pela autora, e seu cônjuge e réus, em 10 de Outubro de 2001 denominado contrato promessa de cessão de quotas.

O valor das cessões foi de € 4.065.011,00 acrescido de juros de mora de € 586.530,00 em pagamento a realizar-se durante 12 anos.

No dia 20 de Novembro de 2002 foi celebrada a escritura pública de “cessões de quotas e alteração de pacto” pela leitura da qual se percebe que a autora, seu cônjuge e a sociedade B..., SGPPS eram os únicos sócios da sociedade S..., Ld.ª” onde existiam 5 quotas 1 pertencente à autora, outra ao seu cônjuge e as 3 restantes à sociedade B..., SGPPS.

O réu era gerente da sociedade S.…, Ld.ª, e da sociedade P.…, L. dª, e, presidente do conselho de administração da B.…, SGPPS.

Segundo a escritura, os sócios da S.…, Ld.ª – autora, seu cônjuge e B.…, SGPPS – venderam as suas quotas aos réus e à sociedade P.…, LD.ª.

Apesar de na referida escritura pública constar que os vendedores já haviam recebido o preço das cessões, para pagamento do preço da cessão de quotas, os réus em 30 de Novembro de 2004 contraíram junto do B.…, S.A., um “empréstimo”, no montante de €2.800.000,00 (dois milhões e oitocentos mil euros) que deveria ser por estes reembolsado em 48 prestações trimestrais e sucessivas, de capital e juros, ou seja, no prazo de 12 anos.

O montante de €2.800.000,00 (dois milhões e oitocentos mil euros) foi creditado na conta bancária dos réus em 30 de Novembro de 2004existe um lapso de escrita no ponto 8 da matéria de facto ao referir 2014 - e, depois transferido para a conta bancária da autora.

Na mesma data a autora e seu cônjuge autorizaram utilização do montante de €2.800.000,00 para constituição de um depósito a prazo. Para prestarem garantia ao empréstimo obtido pelos réus junto do banco constituíram a favor do banco um “penhor de crédito” relativo esse depósito a prazo, renunciando à faculdade de movimentar tal depósito enquanto não estivesse pago o empréstimo dos réus.

Em 25 de Janeiro de 2006 deram ainda de penhor ao banco, em garantia do mesmo empréstimo, a sua carteira de títulos que ficou sob administração do banco.

O cônjuge da autora faleceu em 2009.

Em 04 de Novembro de 2010 os réus renegociaram a forma de pagamento do empréstimo e obtiveram um período de carência.

No dia 30 de Maio de 2011 a autora e a sua filha, por si e na qualidade de herdeiras do cônjuge daquela celebraram com o banco e os réus um contrato de assunção da dívida dos réus perante o banco proveniente do dito empréstimo, e, o banco declarou aceitar a assunção da dívida e exonerou os réus de todas as responsabilidades inerentes ao empréstimo.

Nesse mesmo dia venderam à autora dois imóveis pertencentes à empresa P.…, LD.ª.

Em 18 de Julho de 2017 a autora pagou totalmente o empréstimo bancário antes mencionado.

Na acção a autora pretende que os réus sejam condenados a pagar-lhe o valor do empréstimo bancário que contraíram em 30 de Novembro de 2004 na parte que foi por ela pago a partir do momento em que assumiu a dívida, deduzido do valor dos imóveis que os réus lhe venderam em 30 de Maio de 2011, acrescido de juros, por considerar que ao proceder ao pagamento desse empréstimo ficou sub-rogada nos direitos do credor bancário, nos termos do disposto nos artigos 592 e 593 do código civil.

Deparamo-nos com uma relação negocial complexa, ou, nas palavras do tribunal recorrido, não completamente esclarecida.

Face à matéria de facto provada a autora em 30 de Maio de 2011 passou a ser a devedora do que faltava pagar do empréstimo bancário e, quando o devedor paga a dívida extingue uma obrigação que é sua, pelo cumprimento, nos termos do disposto no art.º 762.º do código civil.

A assunção de dívida aqui ocorreu por contrato entre o novo devedor e o credor e devedores primitivos. Os réus foram expressamente exonerados do cumprimento da obrigação de pagar o empréstimo por declaração expressa nesse sentido do banco mutuante, como previsto no art.º 595.º do código civil. As relações negociais estabelecidas nessa altura entre a autora e os réus que a

 conduziram a assumir-se como devedora de uma dívida que aparentemente não era sua, e, com a qual tinha apenas a posição de garante do cumprimento, podem justificar que tenha direito de haver dos antigos devedores parte, ou a totalidade do que pagou ao banco em cumprimento desse mútuo, mas não foram alegados nem provados factos que possam conduzir a essa solução.

O fundamento jurídico para poder ser exigido tal reembolso, com estes factos provados, não pode, porém, ser a sub-rogação legal.

O direito de sub-rogação traduz a substituição do credor na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento.

A autora enuncia correctamente que a sub-rogação pode ser voluntária, quando decorre de manifestação expressa da vontade do credor ou do devedor, designadamente quando, apesar de ser o devedor a cumprir, o faz com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada por terceiro, ou legal, quando opera por determinação da lei, independentemente de declaração do credor ou devedor.

Fica sub-rogado nos direitos do credor, o terceiro que cumpra a obrigação alheia quando tiver garantido (previamente) o cumprimento, isto é, quando o cumprimento tenha em vista evitar a execução de garantia que prestou.

É o que se passa quando o terceiro tenha garantido o cumprimento do devedor, por ex., constituindo hipoteca ou penhor sobre coisa sua. Nestes casos, embora o terceiro, enquanto proprietário da coisa hipotecada ou empenhada, não esteja obrigado pessoalmente a pagar ao credor, pode fazê-lo, no seu próprio interesse, porquanto, se não cumprir, sujeita-se à respectiva execução, e, na sequência dela, pode sofrer a perda dos bens onerados, ou pode, ver a sua posição agravada em função de eventual indemnização decorrente do não cumprimento.

Porém esta não é a situação dos autos. A autora não procedeu ao pagamento do empréstimo na sua qualidade de garante, em situação de incumprimento por parte do devedor ou para evitar perder os bens que havia dado em garantia. Não estamos face a uma situação em que a prestação efectuada pelo terceiro perante o credor opera a transferência do crédito do credor para esse terceiro.

A situação dos autos é de extinção da obrigação pelo cumprimento realizado pelo devedor.

A autora a partir da assunção da dívida, cumpriu uma obrigação própria, realizou as prestações devidas extinguindo assim a obrigação pelo cumprimento.

A sub-rogação, regulada no capítulo da transmissão de créditos e dívidas no código civil, artigos 598.º a 594º, é uma transferência de créditos do credor para o terceiro, pessoa diversa do devedor, que cumpre a obrigação, operando uma modificação subjectiva da relação obrigacional. A obrigação fica cumprida perante o credor, mas transita para a esfera jurídica do terceiro que cumpriu a obrigação persistindo, agora perante ele/terceiro a obrigação do devedor de realizar a prestação efectuada pelo terceiro ao credor.

Também na assunção de dívida, regulada no art.º 595.º e seguintes de código civil, um terceiro obriga-se perante o credor a efectuar a prestação devida pelo devedor, com ela se operando a mudança da pessoa do devedor sem alteração da obrigação. Trata-se de uma transmissão singular de dívida, uma transmissão da obrigação de prestar, sem perda de identidade desta operando, também, uma modificação subjectiva da relação obrigacional, neste caso substituindo o devedor pelo assuntor da dívida que assume a qualidade de devedor.

Na situação presente no contrato de assunção de dívida foram partes o credor, o assuntor, aqui autora/recorrente, e o devedor primitivo. Tal contrato configura uma assunção liberatória de dívida dado o credor haver emitido expressa declaração liberatória do primitivo devedor, aqui réus/recorridos.

Primeiro verificou-se uma transmissão singular da dívida para a autora, por razões e nas circunstâncias que o processo desconhece porque a autora as não alegou.

Provavelmente terá havido uma causa para que a autora/recorrente tivesse assumido a dívida dos réus e só com a respectiva invocação poderá a recorrente, eventualmente, ter direito a ser paga pelos recorridos de parte ou da totalidade daquilo que pagou em cumprimento do empréstimo em discussão, mas essa causa nunca foi expressa nem constitui objecto do presente litígio.

A partir desse momento deixou de ter a qualidade de garante do cumprimento e passou a ter a qualidade de devedora o que arreda completamente a possibilidade de ser, quanto à mesma dívida, simultaneamente, um terceiro relativamente ao cumprimento da obrigação. A autora ao assumir singularmente a dívida, com a exoneração do devedor primitivo, pelo credor, passou a ser o devedor e, não mais o terceiro que paga a dívida para não perder o seu depósito a prazo, ou a sua carteira de títulos.

Não existe qualquer declaração expressa seja do credor seja do devedor que possam fundamentar a sub-rogação voluntária.

A autora invoca a situação de sub-rogação legal, art.º 592º do código civil que não é aplicável por a autora relativamente ao cumprimento da obrigação, a partir do momento em que assumiu a dívida, ter perdido a qualidade de terceiro relativamente ao cumprimento da obrigação, esta requisito imprescindível para a verificação da sub-rogação.

Os factos provados não são subsumíveis ao disposto no art.º 592º do código civil o que inviabiliza a análise dos concretos efeitos da sub-rogação que não ocorre.

Improcede, pois, o recurso.

III – Deliberação

Pelo exposto acorda-se em negar a revista e confirmar a sentença recorrida.

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Custas pela autora, atento o seu total decaimento.

                                               *

Lisboa, 07 de Junho de 2022

Ana Paula Lobo (relatora)

Manuel Tomé Soares Gomes

Maria da Graça Trigo