Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01996/14.0BELSB.S1
Data do Acordão:10/13/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Cabe à Jurisdição Administrativa conhecer de uma acção na qual a autora, configurando como um contrato de trabalho em funções públicas o vínculo estabelecido com o Estado Português, nos termos e para os efeitos da alínea d) do n.º 3 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na redacção vigente à data da propositura da acção, formula os pedidos de declaração de nulidade de um pretenso contrato de avença e de declaração de que a relação contratual existente entre as partes “revestiu a natureza jurídica de um contrato de trabalho em função pública”.
Nº Convencional:JSTA000P28427
Nº do Documento:SAC2021101301996
Recorrente:A............
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA – JUÍZO DO TRABALHO DE LISBOA-JUIZ 1
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS-MINISTÉRIO DA DEFESA NACIONAL
Recorrido 2:HOSPITAL DAS FORÇAS ARMADAS
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. AA instaurou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa uma ação administrativa contra o Estado Português – Ministério da Defesa Nacional e o Hospital das Forças Armadas, pedindo que seja:
a) declarado nulo o alegado contrato de avença ou contrato de prestação de serviços em regime de avença celebrado entre o Estado Português (Ministério da Defesa Nacional/Hospital das Forças Armadas) [e a autora] em 1 de Setembro de 1997 e denunciado em 31 de Dezembro de 2013;
b) declarado que a relação contratual que vigorou entre a A. e o Estado Português (Ministério da Defesa Nacional/Hospital das Forças Armadas) durante o referido período de 1 de Setembro de 1997 e denunciado em 31 de Dezembro de 2013 revestiu a natureza jurídica de um contrato de trabalho em função pública;
c) declarada nula e de nenhum efeito a notificação efectuada à A. pelo Chefe do Serviço de Recursos Humanos do Hospital das Forças Armadas que dá como cessada em 31 de Dezembro de 2013 a alegada relação contratual em regime de avença vigente entre aquela e o Estado Português (Ministério da Defesa Nacional/Hospital das Forças Armadas);
d) declarado que tal notificação consubstancia um despedimento ilícito, por inexistência de prévio procedimento disciplinar;
e) declarada a subsistência da relação contratual entre a A. e o Estado Português (Ministério da Defesa Nacional/Hospital das Forças Armadas), com a consequente reintegração da A. no posto de trabalho que detinha à data do despedimento (31 de Dezembro de 2013);
f) condenado o Estado Português (Ministério da Defesa Nacional/Hospital das Forças Armadas) a pagar à A. os créditos salariais vencidos e vincendos, a saber:
1. € 33.565,30, a título de subsídios de férias e de Natal, referentes aos anos 1997 a 2013;
2.€ 9.795,10, a título de juros de mora vencidos até 31 de Julho de 2014, calculados sobre os referidos valores de subsídios de férias e de Natal e datas dos respectivos vencimentos;
3.€ 7.987,86, a título de retribuições vencidas desde a data de despedimento da A. (31 de Dezembro de 2013 até 31 de Julho de 2014);
4.€ 93,37, a título de juros de mora vencidos até 31 de Julho de 2014, calculados sobre os valores das referidas retribuições e datas do respectivos vencimentos;
5. 30.000,00, a título de danos patrimoniais, ponderado o elevado grau de culpabilidade do Estado na situação de permanente consternação e angústia da A., sendo certo que estamos perante um Agente de grande capacidade económica;
6. Retribuições vincendas a partir de 1 de Agosto de 2014, na base de € 1.331,3 l/mês, a que devem acrescer os juros de mora, à taxa legal em vigor a cada momento, calculados a partir das datas dos respectivos vencimentos.
7. Em substituição da sua reintegração a A. opta pela respectiva indemnização, a qual, atenta a gravidade da conduta do Estado e capacidade económica desta versus debilidade económica da A., deve ser determinada pelo Tribunal em montante não inferior a 45 dias da retribuição mensal última da A. (€ 1.331,31) por cada ano completo e fração de antiguidade da A. (16 anos e 3 meses).”.
A autora sustentou que a relação contratual que vigorou entre as partes, entre 01/09/1997 e 31/12/2013, revestiu a natureza de contrato de trabalho em funções públicas e não de contrato de avença ou contrato de prestação de serviços, na modalidade de avença, como qualificado pelos Hospitais Militares onde trabalhou; e que foi ilicitamente despedida, não tendo o despedimento sido precedido de processo disciplinar.
Citado, o Hospital da Forças Armadas contestou, invocando a sua ilegitimidade, a cumulação ilegal de pedidos e a nulidade do “pretenso contrato de trabalho”.
O Estado Português contestou. Por entre o mais, invocou a incompetência material do Tribunal Administrativo para conhecer dos pedidos constantes das alíneas a) a d) e parte da f) da petição inicial, por não terem subjacente uma relação jurídica administrativa de emprego público, estando em causa “contratos, de natureza privada, que não iniciam relação de emprego público, nem conferem a qualidade de agente administrativo (artºs 1154.º do CC e 17.º/6.º do DL n.º 41/84)”.
A autora veio defender “a improcedência de todas as excepções invocadas pelos RR.”.
Por sentença de 8 de Fevereiro de 2019, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa julgou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer da causa, atribuindo a competência aos tribunais judiciais.
Para o efeito, sustentou, em síntese, que “pretendendo a Autora exercitar direitos que, em grande parte, se reportam a período anterior a 01/01/2009 em que, segundo invoca, entre as partes vigorava um contrato de trabalho e não um contrato de avença ou de prestação de serviços, na modalidade de avença, não pode deixar de se considerar o Tribunal do Trabalho competente para decidir todas as questões colocadas nestes autos”.
Notificada, a autora requereu a remessa dos autos ao Tribunal do Trabalho de Lisboa.
Por sentença de 09/04/2019, o Juízo do Trabalho de Lisboa – Juiz 1 declarou-se materialmente incompetente para conhecer dos autos, absolvendo o réu da instância.
Para tanto, argumentou, em suma, que estando em causa apurar se a relação entre as partes é de trabalho em funções públicas e quais as consequências da cessação desse contrato, competente para apreciar o litígio será a jurisdição administrativa.
Notificada, a autora suscitou a resolução do conflito negativo de jurisdição.
Determinado pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que se seguisse a tramitação prevista na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos), nos termos do n.º 4 do respectivo artigo 11.º, o Ministério Público proferiu parecer, no sentido de caber à jurisdição administrativa a apreciação da acção.

2. Os factos relevantes para a decisão do conflito constam do relatório.
Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da autora, se os tribunais judiciais – nos quais se integram os tribunais do trabalho e que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. b) do nº 1 deste artigo 4º, cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal” julgar os litígios relativos aos actos da Administração Pública praticados “ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.
Tem especial relevo o n.º 4 deste artigo 4.º, cuja al. b) exclui da competência dos tribunais administrativos “a apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público”, “com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”, excepção introduzida como al. d) do n.º 3 do artigo 4.º pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, e que está em consonância com a atribuição aos tribunais administrativos e fiscais da competência para apreciar “os litígios emergentes do vínculo de emprego público”, resultante do artigo 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho.
Em qualquer dos casos, aferindo-se a competência pela lei vigente à data da propositura da acção, 28 de Agosto de 2014, na falta de disposições de direito transitório aplicáveis, é por referência às versões da Lei que regulava a organização dos Tribunais Judiciais então em vigor (a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, a Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto) e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (a Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, com as alterações decorrentes da Lei n.º 59/2008) que se determina a que jurisdição compete o respectivo julgamento (cfr. artigos 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 24.º, n.º 1, da Lei n. 52/2008, que corresponde ao artigo 38.º, n.º 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário; recorda-se que a Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, que alterou os artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo).
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, que se reitera, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção).
Significa esta forma de aferição da competência, como por exemplo se observou no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 20/18, que “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…».”.
A mesma orientação se retira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, ww.dgsi.pt, processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1: “Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes, quer do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes”.
Com efeito, “saber como se qualifica a relação invocada pela autora, e se os efeitos que a autora pretende são ou não fundamentados, são questões que respeitam ao mérito da causa e à procedência ou improcedência da acção; interpretar o contrato invocado e retirar dessa interpretação consequências quanto à identificação do tribunal competente significa inverter a relação pressupostos/questão de fundo (acórdão do Tribunal dos Conflitos” (acórdão do Tribunal dos Conflitos de 24 de Fevereiro de 2021, www.dgsi.pt, proc. n.º 03143/19.3T8GMR.S1).

3. No caso dos autos, a autora configurou o vínculo estabelecido com o réu Estado Português como um contrato de trabalho em funções públicas, alicerçando os seus pedidos nessa alegação. E tanto assim é que, além do mais, pediu precisamente o reconhecimento de que a relação contratual que vigorou entre si e o Estado Português (Ministério da Defesa Nacional/Hospital das Forças Armadas), entre 01/09/1997 e 31/12/2013, revestiu a natureza jurídica de um contrato de trabalho em funções públicas.
Na verdade, conforme referido na sentença proferida no Juízo do Trabalho de Lisboa – Juiz 1:
no caso concreto, a autora não invoca qualquer litígio emergente de um contrato individual de trabalho. O que a autora diz é que celebrou sob a veste de um contrato de avença um contrato de trabalho em funções públicas (sublinhado nosso) e que no âmbito deste contrato foi despedida. Ou seja, a autora não configura o litígio como um contrato individual de trabalho, mas expressamente como um contrato de trabalho em funções públicas e pugna precisamente para que o tribunal declare que o contrato que celebrou com a ré seja qualificado como um contrato de trabalho em função pública e que a cessação deste contrato consubstancia um despedimento ilícito de um contrato de trabalho em funções públicas, devendo por isso ser-lhe paga uma indemnização e as retribuições em falta”.
Assim, afigura-se que a relação material controvertida, tal como configurada pela autora, corresponde à vigência entre as partes de um contrato de trabalho em funções públicas, nos termos e para os efeitos da alínea d) do n.º 3 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na redacção vigente à data da propositura da acção
Como se escreveu no já citado acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 24 de Fevereiro de 2021, “(…) a autora configura o vínculo estabelecido com a ré como uma relação laboral de direito público, alicerçando os seus pedidos nessa alegação; pede, desde logo, que se reconheça que esse vínculo é de emprego público. Tanto basta para que a apreciação desta acção caiba no âmbito da jurisdição administrativa (…)”.
Poderiam invocar-se outros acórdãos do Tribunal dos Conflitos que, pronunciando-se sobre o tema dos contratos de trabalho celebrados com entidades públicas, conferiram aos tribunais do trabalho da jurisdição comum a competência para dirimir os conflitos deles emergentes. Vejam-se, a título exemplificativo, o Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 11/04/2019, processo n.º 045/18 e o Ac. Tribunal dos Conflitos, de 04/02/2016, processo n.º 041/15, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. A verdade, todavia, é que, ainda que aparentemente similares, as relações contratuais ali invocadas não foram caracterizadas pelas partes como sendo de emprego público, mas, antes, qualificadas como sendo contratos individuais de trabalho.


4. Nestes termos, julga-se competente para a presente acção a Jurisdição Administrativa e, em particular, o Juízo Administrativo Social de Lisboa (artigos 44º-A, n.º 1, b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, 2.º, n.º 1, b) do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro, 1.º, a) da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio, e 19.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).
Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

Lisboa, 13 de Outubro de 2021. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora) – Teresa de Sousa - Henrique Araújo.