Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01024/22.2T8AGD.S1
Data do Acordão:11/22/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:É da competência da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de uma acção popular proposta por uma Freguesia contra um particular e um Município na qual a autora pede que se declare que um determinado caminho pertence ao respectivo domínio público, desde a reforma do contencioso administrativo de 2004.
Nº Convencional:JSTA000P30339
Nº do Documento:SAC2022112201024
Recorrente:JUNTA DE FREGUESIA DE VALONGO DO VOUGA
Recorrido 1:ARAMAGUE - FÁBRICA ART. EM ARAME, S.A.
Recorrido 2:MUNICÍPIO DE ÁGUEDA
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:


1. Em 27 de Setembro de 2017, a Freguesia de Valongo do Vouga instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro uma ação popular, sob a forma de ação administrativa, contra Aramague – Fábrica de Artigos Arame, SA e o Município de Águeda, formulando os seguintes pedidos:
a) devem os RR. ser condenados a reconhecer que o caminho público melhor identificado nos números 11.º e ss. desta petição inicial, sito na Freguesia de Valongo do Vouga, pertence ao domínio público da Freguesia A. (mais não fosse e subsidiariamente, por via de usucapião);
b) sempre e em qualquer caso, deve ser ordenado o cancelamento de qualquer registo a favor da Ré Amarague sobre a parcela de terreno que consubstancia o caminho referido anteriormente;
d) deve a Ré Aramague ser condenada a demolir as construções e ou obras erigidas ilegalmente, nomeadamente o muro de vedação, ou que venha entretanto a erigir, e a repor, a suas expensas, o referido caminho no estado em que este se encontrava antes das suas intervenções;
e) devem os Réus ser condenados a abster-se de, por qualquer forma, realizar obras no referido caminho, de emitir ou praticar quaisquer actos que se destinem à apropriação do mesmo, bem como a abster-se de, por qualquer meio, obstar ou dificultar o uso público do referido caminho, nomeadamente o trânsito de pessoas, animais, veículos e coisas, com todas as legais consequências.”.
Por despacho de 17 de Janeiro de 2018, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro determinou a citação dos residentes na freguesia de Valongo do Vouga e a notificação do Ministério Público, nos termos dos artigos 15.º e 13.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, respetivamente.
Citados, os réus contestaram, arguindo excepções e impugnando a factualidade alegada pela autora.
Notificado, o Ministério Público pronunciou-se pela incompetência material da jurisdição administrativa para a decisão da causa.
Para tanto, sustentou que “o litígio ora em causa, na versão exarada pelo A. não envolve a atuação de nenhuma entidade pública ou privada, no exercício de poderes públicos e que versem sobre a qualificação de bens como pertencentes ao domínio público e atos de delimitação destes com bens de outra natureza, antes visando apreciar da natureza e propriedade de um determinado caminho e a inerente violação por particulares de direitos atinentes ao domínio público, sem que se mostre alegado ou impugnado, em concreto, um qualquer comportamento, ativo ou omissivo, adotado por uma entidade pública que tenha concorrido, essencial e decisivamente, para essa violação.
Notificada, a Freguesia de Valongo do Vouga pronunciou-se sobre as excepções invocadas nas contestações e sobre o parecer do Ministério Público, afirmando a competência da jurisdição administrativa para a apreciação do litígio.
Por sentença de 11 de Março de 2022, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro julgou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer dos presentes autos e absolveu os réus da instância.
Para tanto, afirmou que, não existindo qualquer ato administrativo – na medida em que será controvertida, desde logo, a natureza do caminho em causa e, como tal, a questão da respetiva propriedade –, estar-se-á apenas perante um litígio de natureza privada que não se mostra regulado por normas de direito administrativo.
Na sequência de requerimento da autora, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro determinou a remessa dos autos ao Juízo Local Cível de Águeda, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro.
Por sentença de 10 de Maio de 2022, o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Local Cível de Águeda julgou-se materialmente incompetente para conhecer do presente litígio, por considerar que a ação respeita a uma relação jurídica administrativa, entre uma entidade pública e um particular e outra entidade pública, na defesa de um bem/interesse público.
Na decorrência de requerimento da autora, o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Local Cível de Águeda, suscitou junto do Tribunal dos Conflitos a resolução do conflito negativo de competência.

2. Determinado pelo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que se seguisse a tramitação prevista na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos), nos termos do n.º 4 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2009, o Ministério Público proferiu parecer no sentido de caber à jurisdição administrativa a competência para conhecer da presente acção popular; concretamente, ao TAF de Aveiro. Citando o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. n.º 023/09, “a propósito de um caso similar”, o Ministério Público sustentou que, «no caso em análise, a Autora é uma pessoa colectiva de direito público, cujas atribuições e competências dos seus órgãos se encontram expressas em normas de direito administrativo e o litígio a dirimir decorre da qualificação de “bem do domínio público” que ela própria, na qualidade de ente público, no exercício de poderes de autoridade, atribui a um caminho da freguesia, perante particulares e outra entidade pública na prossecução dos interesses públicos que constitucionalmente lhe incumbe (art.º 235.º, n.º 2 da Lei Fundamental)».

3. Os factos relevantes para a decisão do conflito constam do relatório.
Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da autora, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
O Estatuto dos Tribunais Administrativo e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, após várias modificações, foi alterado pela Lei 114/2019, que entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo.
Tratando-se de uma alteração respeitante à competência material da jurisdição administrativa e fiscal – nomeadamente, modificou os artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, preceitos dos quais resulta o critério geral de delimitação da jurisdição administrativa –, a aplicação no tempo dessa alteração não atinge as acções pendentes, de acordo com o disposto no artigo 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. O mesmo princípio consta, aliás, do n.º 2 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, preceito incluído no Título V, relativo aos Tribunais Judiciais, e que prevê duas excepções, nas quais a lei nova é de aplicação às acções pendentes: a extinção do tribunal onde a acção foi proposta e a atribuição de competência a tribunal incompetente.
Em qualquer dos casos, aferindo-se a competência pela lei vigente à data da propositura da acção, 27 de Setembro de 2017, na falta de disposições de direito transitório aplicáveis, é por referência às versões da Lei da Organização do Sistema Judiciário e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais então em vigor que se determina a que jurisdição compete o respectivo julgamento (cfr. artigos 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 38.º, n.º 2, da Lei de Organização do Sistema Judiciário).
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção).
Significa esta forma de aferição da competência, como por exemplo se observou no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 20/18, que “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…».”.
A mesma orientação se retira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, ww.dgsi.pt, processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1: “Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes, quer do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes”.4. No caso dos autos
À data da propositura da ação, a redação do n.º 1 do artigo 1.º do ETAF, resultante do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, era a seguinte: “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”. Não obstante não conter a menção aos “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (como sucede atualmente), certo é que a al. o) do n.º 1, do artigo 4.º, para o qual remetia aquele art. 1.º, contemplava expressamente as relações jurídicas administrativas e fiscais.
Sobre a noção de “relação jurídica administrativa”, escreveu José Carlos Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 53): “na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.
Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.

4. No caso dos autos, a autora, pessoa colectiva pública, começa por referir que a presente ação popular tem essencialmente por objeto a defesa de um bem do domínio público local, integrado na sua circunscrição, afirmando que “exerce, pelo presente processo, o direito de acção popular nomeadamente em defesa dos interesses do ambiente, do ordenamento territorial e do domínio público local, dos quais é directamente titular no âmbito das respectivas atribuições e na prossecução dos interesses públicos que constitucionalmente lhe incumbe tutelar (cfr. art. 235.º, n.º 2 da CRP).”.
Alega que a ré se apropriou, ocupou e destruiu ilegalmente um caminho que integra indiscutivelmente o domínio público da freguesia autora, “dada a utilidade pública do mesmo para todos e respectiva afectação pública, servindo inequivocamente interesses colectivos”.
Salienta que em consequência da descrita atuação, o caminho da freguesia autora “já não permite, por exemplo, a circulação de carros de bombeiros, em caso de incêndio ou de qualquer emergência”, deixando, assim, de poder satisfazer aqueles interesses coletivos de significativo valor que o caminho público satisfazia.
Trata-se assim de uma acção na qual, objectiva e subjectivamente, está em causa a mesma questão essencial que foi tratada no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. n.º 023/09, nos seguintes termos:
Ora, é, a nosso ver, o que acontece [versar sobre uma relação jurídica administrativa] com os litígios que envolvam, pelo menos, uma entidade pública ou uma entidade privada no exercício de poderes públicos e que versem sobre a qualificação de bens como pertencentes ao domínio público e actos de delimitação destes com bens de outra natureza, que antes da reforma do contencioso administrativo de 2004, se encontravam expressamente excluídos do âmbito da jurisdição administrativa (cf. artº4º, nº1 e) do ETAF/84), mas que depois daquela reforma passaram a integrar o âmbito da jurisdição.
Aliás, diríamos que é esse o seu campo próprio, atento a natureza pública do bem objecto dessa relação jurídica e o consequente estatuto de direito público (administrativo) desse bem, também denominado «estatuto de dominialidade».
Portanto, se bem que tais questões não estejam expressamente referidas no nº1 do artº4º do ETAF, o certo é que deixaram de integrar as alíneas deste preceito que respeitam à delimitação negativa da jurisdição e que integram os seus nº2 e 3.
E não existindo, hoje, qualquer outra norma que as exclua do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, elas cairão, necessariamente, no âmbito da cláusula geral do artº1º nº1 do ETAF, verificados os demais pressupostos da relação jurídica administrativa.
Neste sentido se tem pronunciado a melhor doutrina, que aqui acompanhamos.
Assim e por exemplo, diz a este propósito Vieira de Andrade: «Julgamos que o desaparecimento desta exclusão ao implicar a aplicação da cláusula geral, vai trazer para os tribunais administrativos a competência para conhecer da impugnação dos actos de qualificação dominial, que são actos administrativos, quer se trate de actos de classificação, quer de afectação (vide M. Caetano, Manual II, 8ª ed., p. 850 e segs)., bem como as acções relativas a questões de delimitação do domínio público com outros domínios que são questões de direito administrativo. Na realidade sempre se entendeu que um dos privilégios inerentes à propriedade pública, em comparação com a propriedade privada, é o poder da Administração de delimitar unilateralmente o domínio público (cf. M. Caetano, obra citada, p. 856).
As razões de exclusão, no anterior ETAF, estavam ligadas à ideia de que tudo o que respeitava à propriedade devia ser julgado perante os tribunais judiciais, por desconfiança relativamente aos tribunais administrativos e pela pressuposição da limitação dos seus poderes – são por isso razões que deixaram de justificar o desvio relativamente ao critério substancial de definição do âmbito da jurisdição administrativa.» Vide, obra citada, p. 150. No mesmo sentido, Ana Raquel Gonçalves Moniz, in O domínio Público: o critério e o regime jurídico da dominialidade. Almedina, 2006, p.531 e segs
No mesmo sentido, se pronunciam Mário Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha, ao referirem que «De um modo geral pertence hoje ao âmbito da jurisdição administrativa a apreciação de todos os litígios que versem sobre matéria jurídico administrativa e cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à competência dos tribunais judiciais (artº1º, nº1 do ETAF e artº213, nº3 da CRP). (…) Isto inclui, por exemplo, (…) as questões de delimitação de bens do domínio público, que até aqui eram excluídas pelo artº 4º anterior. «Tal matéria, que estava expressamente excluída da justiça administrativa no anterior ETAF (cf. alínea e) do nº1 do artº4º), não é agora objecto de qualquer “desaforamento” legislativo, devendo entender-se que os litígios emergentes de actos de qualificação dominial e de delimitação do domínio público, sendo administrativos, reingressam por força da cláusula geral do seu artº 1º, nº1, no âmbito da competência dos tribunais administrativos» Vide, obra citada, in “Introdução”, a p.18.
Também Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira são da mesma opinião in CPTA e ETAF anotados, vol. I, Almedina, reimpressão da edição de Nov. de 2004, p.35/36.
(…) Trata-se, pois, de apreciar uma relação jurídica em que um dos sujeitos é uma pessoa colectiva pública e o respectivo objecto, de acordo com a causa petendi, está sujeito a um estatuto especial de direito público administrativo, pelo que, quer do ponto de vista da tutela jurídica subjectiva, quer do ponto de vista da tutela jurídica objectiva, de que se falará a seguir, tem, sem dúvida, natureza administrativa.
(…) Por outro lado (…) a acção popular é e sempre foi, essencialmente, um meio processual do contencioso objectivo administrativo.
Na verdade, se bem que possa também ser utilizada numa dimensão cível (cf. artº12º, nº2 e 22 e segs. da citada Lei 83/95) e até numa dimensão penal (cf. o seu artº25º), é na dimensão administrativa que a acção popular tem o seu campo principal de intervenção, pois é no âmbito das relações entre a Administração e os administrados que a acção popular faz mais sentido, desde logo, pelos valores constitucionalmente protegidos que se visam defender através dessa acção, vg, a saúde pública, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural, os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais (cf. artº52, nº3 da CRP/97 e artº1º, nº1 e 2 da Lei nº83/95, de 31.08). Aliás, a dimensão administrativa é aquela que está mais presente na Lei 83/95, que inclui designadamente a respectiva tutela procedimental (artº4º a 11º e o artº12º, nº1 da citada Lei nº83/95). Cf. a este propósito, José Figueiredo Dias, in Tutela Ambiental e Contencioso Administrativo, p. 213
A confirmar essa natureza essencialmente administrativa da acção popular está ainda o artº 9º, nº2 do CPTA, preceito que respeita à legitimidade activa para acções populares administrativas para defesa dos valores referidos no artº 52º, nº3 da CRP/97 e nos artº 2º e 12º, nº1 da Lei nº 83/95, o qual veio ainda alargar o campo de incidência da acção popular ao incluir, no elenco de interesses difusos, os valores ou bens relativos ao urbanismo e ao ordenamento do território e conferir uma genérica capacidade de iniciativa processual ao MP neste domínio, que a referida lei não previa.
(…) Aliás, o principal contributo da acção popular foi ultrapassar as deficiências de uma tutela jurisdicional dos valores referidos no artº 52º, nº3 da CRP e alargar a legitimidade para defesa desses valores, servindo-se da noção de interesse difuso.
A novidade que a figura do interesse difuso traz à tutela jurisdicional é proporcionar uma tutela numa perspectiva supra-individual e não apenas baseada na defesa de posições jurídicas subjectivas, daí que, como se fez constar do citado nº2 do artº9º do CPTA, tal acção possa ser intentada «independentemente de (o autor) ter interesse pessoal na demanda».
Também, por isso, não faz sentido, recusar a competência dos tribunais administrativos para uma acção popular, com fundamento em que não está em causa um acto de autoridade, como parece ser entendimento do tribunal a quo, embora não claramente explicitado, ao salientar a fls. 345, que «Na presente acção não há qualquer acto administrativo subjacente».
O que releva hoje na delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa é, como referimos, a relação jurídica administrativa e ela não é necessariamente bilateral, assumindo hoje dimensões multipolares.
Por outro lado, as múltiplas faces da relação jurídica administrativa não se fazem só sentir no aspecto subjectivo, mas também no aspecto objectivo, pelo que se bem que o contencioso administrativo vise, primacialmente, a tutela de posições jurídicas individuais (contencioso administrativo subjectivo), não deixa de assegurar também a tutela da legalidade, do interesse público e dos interesses difusos (contencioso administrativo objectivo), e, não raro, os interesses assegurados por uma e outra tutela são convergentes.
Assim sendo e visando a presente acção a defesa de um bem, alegadamente, do domínio público local, que se integra na área de circunscrição territorial da Junta de Freguesia, aqui Autora, a competência para a presente acção é dos tribunais administrativos, quer do ponto de vista da tutela subjectiva, quer do ponto de vista da tutela objectiva (artº1º do ETAF e artº9º, nº2 do CPTA conjugado com o artº2º, nº1 e 12º, nº1 da Lei 82/85).”.
Esta extensa transcrição justifica-se porque nos presentes autos está também em causa a defesa de um bem que a autora, pessoa coletiva de direito público, afirma pertencer ao domínio público local e ser necessário à satisfação de interesses colectivos de significativo valor; e, ainda, porque é o mesmo o regime jurídico substancialmente aplicável a ambos os casos. Trata-se pois, também aqui, de uma relação jurídica administrativa, cuja apreciação compete à jurisdição administrativa e fiscal, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na redacção aplicável, decorrente do Decreto-Lei n.º 214-G/015, de 2 de Outubro.
Tal como se escreveu no acórdão de 20 de Janeiro de 2021 www.dgsi.pt, proc. n.º 01904/20.0T8VFR.S1, também aqui se trata «de uma acção “relativa (…) a questões de delimitação do domínio público com outros domínios, que são questões de direito administrativo” (José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, Lições, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág.119).»

5. Nestes termos, julgam-se competentes para a presente acção os Tribunais Administrativos e Fiscais; concretamente, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro (n.º 1 do artigo 44.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e artigo 17.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).


Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro).

Lisboa, 22 de novembro de 2022. – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.