Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02941/21.2T8ALM.S1
Data do Acordão:01/18/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:I - A presente oposição, enquanto se dirige contra a cobrança coerciva de fornecimento de água, respeita à prestação de serviços essenciais, na acepção da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho.
II - Não obstante tratar-se do fornecimento por uma entidade pública, no exercício das atribuições que legalmente lhe são deferidas, e estar em causa uma taxa unilateralmente fixada como contrapartida do serviço, a competência para conhecer a oposição encontra-se subtraída à jurisdição administrativa e fiscal pela al. e) do n.º 4.º do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que foi acrescentada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, lei posterior ao n.º 1 do artigo 151.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário.
III - Compete, portanto, aos Tribunais Judiciais a correspondente apreciação, tendo em conta a respectiva competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei n.º 62/2013).
Nº Convencional:JSTA000P29062
Nº do Documento:SAC2022011802941
Recorrente:A.........
Recorrido 1:SEIXAL-MUNICÍPIO
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 21 de Dezembro de 2020, deu entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada a oposição que AA deduziu ao processo de execução fiscal (n.º 96/2020) que o Município do Seixal requereu contra si para cobrança coerciva de dívidas referentes a consumos de água, e que fora remetido à Câmara Municipal respectiva.
Fundamentou a oposição na prescrição da dívida exequenda e na caducidade do “direito de propositura da acção”, concluindo que a execução deve ser julgada improcedente.
Por decisão de 8 de Fevereiro de 2021, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, considerando tratar-se de um litígio destinado à cobrança coerciva de dívidas provenientes do fornecimento de serviços públicos essenciais, excluído do âmbito da justiça administrativa e fiscal, nos termos do artigo 4.º, n.º 4, alínea e), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, julgou-se incompetente em razão da matéria para conhecer da causa, atribuindo a competência aos tribunais comuns e indeferindo liminarmente a oposição. Para o efeito, considerou determinantes “a acção (pedido e causa de pedir), tal como foi proposta pela Oponente” e a data em que a oposição foi deduzida, quando já estava em vigor a citada al. e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aditada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro.
Remetidos os autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo de Execução de Almada – Juiz 1, por despacho de 23 de Julho de 2021, o tribunal julgou-se materialmente incompetente para a sua tramitação e decisão, que considerou ser da competência exclusiva dos Tribunais Tributários, nos termos do art. 151.º, n.º 1, do Código do Procedimento e do Processo Tributário (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro), e absolveu a exequente da instância.

2. Tendo sido requerida em 28 de Outubro de 2021, pelo Ministério Público, a resolução do conflito negativo de jurisdição, o processo foi remetido ao Tribunal dos Conflitos. Por despacho do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Novembro de 2021, foi determinado que se seguissem os termos resultantes da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos).
As partes e o Ministério Público foram notificadas deste despacho.
O Município do Seixal pronunciou-se do sentido de ser da competência do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada a apreciação da oposição, por ser “sobre os tribunais tributários que recai a competência para a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas provenientes de abastecimento público de água”.
O Ministério Público emitiu parecer, no sentido de que é aos tribunais judiciais que compete a apreciação da oposição: “(…) é muito importante saber, nestes casos, em que data a acção foi proposta, dado que a Lei n.º 114/2019, de 12/9 apenas entrou em vigor em 12/11/19. Os presentes autos tiveram origem na execução fiscal n.º 96/2020, iniciada em 26/10/2020, que corria termos no Município do Seixal, sendo que a executada se opôs à execução em 11/12/2020. Foi considerando como tribunal competente o TAF de Almada que a executada, em 26/10/2020, veio deduzir oposição, nos termos do artigo 203.º, n.º 1, alínea a) e 204.º, n.º 1, do CPPT. Não sofre dúvidas, porém, que o procedimento de cobrança das dívidas de fornecimento de água foi instaurado depois de 12/11/19. Por isso, a competência para a sua apreciação caberá aos tribunais judiciais”.

3. Os factos relevantes para a decisão do conflito constam do relatório.
Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para a apreciação da presente oposição, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelo artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais; dentro destes, o artigo 49º define a competência dos tribunais tributários.
Os tribunais administrativos, “ não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº 508/94, de 14.07.94, in Processo nº 777/92; e AC TC nº 347/97, de 29.04.97, in Processo nº 139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. b) do nº 1 deste artigo 4º, cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal” julgar os litígios relativos aos actos da Administração Pública praticados “ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal de Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção.

4. A al. e) do n.º 4.º do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que foi acrescentada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, veio excluir do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva” (al. e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais). Da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII, da qual veio a resultar a Lei n.º 114/2019, consta expressamente que se “Esclarece (…) que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”
A Lei 114/2019 entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo.
Vale assim o princípio de direito transitório sectorial afirmado no n.º 1 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), também constante, aliás, do artigo 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, segundo o qual a competência se afere pela lei vigente à data da propositura da acção, e que admite duas excepções, nas quais a lei nova é de aplicação às acções pendentes: a extinção do tribunal onde a acção foi proposta e a atribuição de competência a tribunal incompetente (assim, a título de exemplo, cfr. os acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 20 de Janeiro de 2021, www.dgsi.pt, processo n.º 01574/20.5T8CSC.S1, ou de 24 de Fevereiro de 2021, www.dgsi.pt, processo n.º 01573/20.7T8CSC.S1)
Tratando-se de uma alteração do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais respeitante à competência material da jurisdição administrativa e fiscal, a aplicação no tempo dessa exclusão não atinge portanto as acções pendentes; mas aplica-se às acções instauradas depois da sua entrada em vigor.

5. Os presentes autos tiveram a sua origem nos Autos de Execução Fiscal Administrativa n.º 96/2020, instaurados, em 26 de Outubro de 2020, pelo Município do Seixal, junto do respetivo serviço de execução fiscal, para cobrança coerciva de dívidas referentes a consumos de água.
Posteriormente, como se recordou já, a executada veio deduzir oposição à execução fiscal.
Nos termos do artigo 149.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, “Considera-se, para efeitos do presente Código, órgão da execução fiscal o serviço da administração tributária onde deva legalmente correr a execução ou, quando esta deva correr nos tribunais comuns, o tribunal competente.”
Segundo os n.ºs 1 e 2 do artigo 150.º, “1 - É competente para a execução fiscal a administração tributária. 2 - A instauração e os atos da execução são praticados no órgão da administração tributária designado, mediante despacho, pelo dirigente máximo do serviço.
De acordo com o disposto no artigo 151.º, “1 - Compete ao tribunal tributário de 1.ª instância da área do domicílio ou sede do devedor originário, depois de ouvido o Ministério Público nos termos do presente Código, decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, e a reclamação dos atos praticados pelos órgãos da execução fiscal. 2 - O disposto no presente artigo não se aplica quando a execução fiscal deva correr nos tribunais comuns, caso em que cabe a estes tribunais o integral conhecimento das questões referidas no número anterior.
Finalmente, releva especialmente o disposto no n.º 1 do artigo 103.º da LGT (Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro), que atribui ao “processo de execução fiscal” “natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos atos que não tenham natureza jurisdicional.
Ora, tendo em conta que a presente oposição respeita à execução fiscal administrativa requerida contra a executada, considera-se, nomeadamente para o efeito de saber qual é a lei aplicável à determinação da jurisdição competente, que a acção foi proposta em 26 de Outubro de 2020, data na qual foi instaurada a execução fiscal, e que é anterior à entrada em vigor da Lei n.º 114/2019. Interessa, portanto, a versão das normas relevantes do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em vigor em 26 de Outubro de 2020.

6. Apreciando a questão de saber se a competência para apreciar oposições deduzidas contra execuções fiscais movidas por entidades públicas (ou concessionadas) também destinadas à cobrança de taxas devidas por consumo de água, mas instauradas antes da entrada em vigor da Lei n.º 114/2019, cabia aos Tribunais Judiciais ou aos Tribunais Administrativos e Fiscais, em particular aos Tribunais Tributários, o Tribunal dos Conflitos concluiu no sentido na não aplicação da exclusão hoje contida na al. e) do n.º 4 do artigo 4.º. Entendeu (cfr., a título de exemplo, o acórdão de 20 de Janeiro de 2021, www.dgsi.pt, proc. n.º 1574/20.5T8CSC.S1), em síntese, que tais oposições se inseriam em relações de natureza administrativa, já que um dos seus sujeitos era uma entidade pública que actuava com vista à prossecução de um interesse público cometido por lei e respeitavam à cobrança coerciva de taxas, contrapartida pelos serviços prestados, cujas quantias haviam sido unilateralmente definidas.
Considerou, assim, que a respectiva apreciação competia à jurisdição administrativa e fiscal (al.d) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e, especificamente, aos tribunais tributários (al. d) do n.º 1 do aro 49.º, também do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).

7. Este Tribunal dos Conflitos também já teve a oportunidade de afirmar que está em causa, nestas situações, “A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais” (cfr. al. e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), condição necessária à sua inclusão na citada al. e) do n.º 4 do artigo 4.º.
Assim, no acórdão de 13 de Setembro de 2021, www.dgsi.pt, escreveu-se:
“(…) a Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, consagra as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à proteção do utente. Entre os serviços públicos abrangidos encontra-se o serviço de fornecimento de água (n.º 2, alínea a), do mesmo diploma). Coloca-se então a questão de saber se deve entender-se que, nesta acção, está ou não em causa um litígio correspondente à prestação de serviços públicos essenciais, na acepção da Lei n.º 23/96. Ora, no acórdão de 17 de Fevereiro de 2021 do Supremo Tribunal Administrativo, disponível em www.dgsi.pt, proc. n.º 01685/18.7BEBRG, entendeu-se que «a ligação à rede pública de saneamento, como acto prévio ao serviço a prestar, não assume a qualificação de serviço público essencial, daí não lhe ser aplicável a Lei n.º 23/96, de 26 de Julho» e que «uma coisa é a ligação ao sistema público de saneamento, facturada uma única vez ao utilizador, ocorrida antes do início da utilização, outra, a prestação do serviço de recolha de águas residuais que são facturadas aos utilizadores, de forma periódica (artigo 67.º do Dec. Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto – que estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos) (…)”.

8. Conclui-se, portanto, que a presente oposição, enquanto se dirige contra a cobrança coerciva de fornecimento de água, respeita à prestação de serviços essenciais, na acepção da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho. Não obstante tratar-se do fornecimento por uma entidade pública, no exercício das atribuições que legalmente lhe são deferidas, e estar em causa uma taxa unilateralmente fixada como contrapartida do serviço, a competência para conhecer a oposição encontra-se subtraída à jurisdição administrativa e fiscal pela citada al. e) do n.º 4.º do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que foi acrescentada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, lei posterior ao n.º 1 do artigo 151.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário.
Compete, portanto, aos Tribunais Judiciais a correspondente apreciação, tendo em conta a respectiva competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013).
Refira-se, ainda, que a competência dos Juízos de Execução previsto no artigo 129.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário se viu ampliada pela Lei n.º 114/2019.

9. Nestes termos, julga-se que a apreciação da presente oposição cabe à Jurisdição dos Tribunais Judiciais; concretamente, ao Juízo de Execução ... do Tribunal Judicial da Comarca ... (n.º 1 do artigo 89.º do Código de Processo Civil).

Sem custas (artigo 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

Lisboa, 18 de Janeiro de 2022. – Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.