Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:036/16
Data do Acordão:04/27/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FERNANDO SAMÕES
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:I - A aferição do pressuposto processual da competência em razão da matéria deve ser equacionada em função da relação jurídica controvertida, tal como é configurada pelo autor, irrelevando, neste plano, o juízo de prognose relativamente ao mérito da causa.
II - Compete ao tribunal comum conhecer da acção proposta pela mutuante contra a mutuária e prestadores de garantia com fundamento no incumprimento de contratos de mútuo e em obrigações assumidas em cartas-conforto, ainda que estas tenham sido emitidas e subscritas por município e empresa municipalizada, por se regerem por normas de direito privado, e mesmo que tenha sido celebrado entre eles um contrato-programa, relativamente ao qual o tribunal não é chamado a pronunciar-se sobre a sua validade, a sua interpretação e/ou a sua execução.
Nº Convencional:JSTA000P27578
Nº do Documento:SAC20210427036
Data de Entrada:10/28/2016
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A COMARCA DE LISBOA, LISBOA, INSTÂNCIA CENTRAL, 1ª SECÇÃO CÍVEL - J 17 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS AUTORA: CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A.
RÉUS: A………., S.A. E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 36/16
*

Acordam no Tribunal dos Conflitos:

I. Relatório

Caixa Geral de Depósitos, S.A., instaurou, em 12/1/2015, no Tribunal da Comarca de Lisboa – então Instância, agora Juízo, Central Cível de Lisboa - acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra:

1. A………., S.A.;

2. CampoMayor XXI, Empresa Municipal;

3. Município de Campo Maior;

4. B………– , S.A.;

5. C…………, S.A.;

6. B'………. – , S.A.;

7. D……….., S.A., todos melhor identificados nos autos, pedindo a condenação solidária dos réus a pagarem-lhe a quantia de 5.310.124,00 €, correspondente ao capital em dívida e juros, vencidos e vincendos, e demais encargos com fundamento nas responsabilidades que assim lhes imputa:

a) À 1.ª ré, pelo incumprimento de contratos de mútuo celebrados com a autora;

b) Aos 2.º e 3.º réus, pelo incumprimento das obrigações contratuais que directamente assumiram perante a autora e pela violação dos seus direitos de crédito;

c) Aos 2.º a 7.º réus, pelas cartas-conforto por si subscritas;

d) Aos 2.º e 3.º réus, subsidiariamente, para o caso de se considerar que não são responsáveis a outro título, por enriquecimento sem causa.

Para tanto, alegou, em síntese, o seguinte:

Por escritura pública de 18/10/2007, a autora concedeu à 1.ª ré um financiamento, na modalidade de abertura de crédito, até ao montante de 4.250.000,00 €, destinado a financiar a aquisição do direito de superfície, bem como a construção do complexo de piscinas da ……… de Campo Maior.

Na mesma data, concedeu ainda à 1.ª ré um financiamento, na modalidade de abertura de crédito em conta-corrente, até ao montante de 250.000,00 €, destinado a suprir necessidades pontuais de tesouraria do projecto de concepção e construção do respectivo Complexo.

A 1.ª ré utilizou todo o capital, sendo o de 4.250.000,00 € até 26/12/2008 e o de 250.000,00 € em 5/1/2009.

Porém, não foram pagos, tendo entrado em incumprimento em 18/1/2010, ascendendo a dívida, em 13/1/2015, ao valor global de 5.310.124,00 €, nele incluindo o capital, juros remuneratórios, juros de mora vencidos, impostos e comissões que discrimina.

Assim, entende que os réus são responsáveis:

A 1.ª ré, enquanto mutuária das quantias mutuadas.

A 2.ª ré, por ter assumido a obrigação de pagamento das quantias mutuadas nas aludidas escrituras em que também teve intervenção e onde assumiu o pagamento da dívida, nomeadamente mediante a consignação de receitas.

O 3.º réu, pelo incumprimento das obrigações que assumiu quanto à transferência de verbas para a 2.ª ré e desta para a autora e pela carta-conforto que emitiu.

As restantes rés, por incumprimento das cartas-conforto que também emitiram.

Ainda que se entenda que a 2.ª ré e o 3.º réu não são responsáveis naqueles termos, sempre responderão, segundo as regras do enriquecimento sem causa, por, uma vez extinto o direito de superfície, o imóvel construído integrar o seu património, o qual foi financiado pela autora, sem que lhe tenha sido pago.

Os réus contestaram, sendo que a 1.ª, a 2.ª e o 3.º invocaram, no que agora releva, a excepção dilatória da incompetência do Tribunal Cível de Lisboa, em razão da matéria, alegando que a competência deverá ser atribuída aos tribunais administrativos, por existirem, nas condições estabelecidas nos contratos de financiamento, aspectos substantivos regidos por normas de direito público, se discutirem questões relativas à validade de actos pré-contratuais sujeitos a tais normas e parte da responsabilidade daqueles dois últimos se fundar em responsabilidade civil extracontratual.

A autora respondeu, pugnando pela improcedência da excepção deduzida.

Seguiu-se despacho saneador, no âmbito do qual a excepção de incompetência material foi julgada procedente, por se ter entendido que se tratava de matéria da competência dos tribunais da jurisdição administrativa, pelo que se absolveram todos os réus da instância.

Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa proferido acórdão a confirmar a decisão recorrida.

Ainda irresignada, a autora interpôs recurso de revista e apresentou a respectiva alegação com as seguintes conclusões (expurgadas das referências à revista excepcional e ao seu pressuposto da dupla conforme, por manifestamente irrelevantes (Não havendo lugar a este tipo de revista, sendo o adequado o recurso de revista normal, porquanto se trata de caso em que o recurso é sempre admissível, previsto no art.º 629.º, n.º 2, al. a) do CPC, por ter como fundamento a violação “das regras da competência em razão da matéria”, não sendo, por isso, aplicável o n.º 3 do art.º 671.º do mesmo Código, que ressalva aquele e outros casos em que “o recurso é sempre admissível”, e, por conseguinte, não havendo dupla conforme, nem, consequentemente, revista excepcional, a qual pressupõe a dupla conformidade.)):

“…

5. O tribunal de 1ª instância declarou-se materialmente incompetente, por considerar que, ao abrigo do previsto em normas contidas nas alíneas e) e f) do art. 4.º do ETAF, o tribunal competente é o tribunal administrativo.

6. Após recurso, a Relação de Lisboa, por Acórdão de 3/3/2016, julgou improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida, “embora com fundamentação algo diversa”, afastando a aplicação da alínea e) do art. 4.º do ETAF, e aplicando norma da alínea f) diferente da que foi aplicada pela 1.ª instância.

20. Estando afastada a aplicação (d)a alínea e), pela decisão da Relação, apenas haverá que cuidar dos fundamentos invocados por ambas as instâncias para a aplicação da alínea f).

21. A norma em causa contém 3 normas diferentes, delimitando a competência dos tribunais administrativos atendendo a 3 critérios diferentes: 1.ª – questões relativas a interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo; 2.ª – contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo, ou de, 3.ª – contratos em que pelo menos uma das partes seja entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.

22. A 1.ª instância apenas fez aplicar ao caso concreto a 2.ª norma; a Relação fez aplicar apenas a 1.ª, rejeitando a aplicação de qualquer outra.

23. O acórdão da Relação de Lisboa faz aplicação ao caso não das regras de direito público, mas de outra parte da alínea f) do art. 4.º, nunca antes invocado pela 1.ª instância: «contrato com “objecto possível de acto administrativo”, isto é, aqueles cujos efeitos poderiam também ser alcançados por acto administrativo».

24. Mas a decisão em recurso apresenta ainda outra grande diferença em relação ao antes decidido.

25. De facto, enquanto a anterior decisão convocava apenas a competência do TAF ou TAC para apreciação de todo o litígio, o acórdão recorrido vem convocar a questão da concorrência de competências, pois apenas considera competente o tribunal administrativo para apreciação de um dos pedidos em relação a um concreto Réu.

26. Resta, pois, a seguinte questão a decidir: ao desaforar os presentes autos, a Relação está a atribuir ao tribunal administrativo competência para apreciar pedidos em relação aos quais não se encontra qualquer previsão no art. 4.º do ETAF (ou em outra norma), o que, além de ilegal, é manifestamente inconstitucional.

27. Atente-se em que, das variadas causas de pedir e pedidos formulados pela A. o tribunal apenas considera ser da competência administrativa UM deles, em relação a UM só Réu, entre 7.

….

35. O tribunal a quo declarou-se materialmente incompetente, por considerar que, ao abrigo de norma contida na alínea f) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, o tribunal competente é o tribunal administrativo.

35. Tal decisão encontra-se indevidamente suportada, por indevida compreensão da relação material controvertida, e é ilegal, por incorreta interpretação das normas aplicadas.

36. A decisão recorrida viola, assim, os arts. 211.º da Constituição da República Portuguesa, 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, 64.º do Código de Processo Civil e art. 4.º n.º 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário.

37. A competência do tribunal em razão da matéria afere-se de acordo com a relação material controvertida nos autos – em função do pedido e da causa de pedir -, tal como a mesma é configurada pela Autora, no que se refere aos termos em que propõe a resolução do litígio.

38. A CGD peticiona a condenação solidária dos Réus sempre e só com base nas respetivas responsabilidades pelo incumprimento de contrato de mútuo e garantias dadas ao cumprimento do mesmo.

39. Por tanto, o objeto do litígio – responsabilidade das várias entidades pelo incumprimento do contrato de mútuo – não se enquadra em nenhuma das alíneas do art. 4.º, n.º 1 do ETAF, designadamente não respeitando a questões relativas à validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo.

40. A Recorrente aprovou à 1.ª Ré uma abertura de crédito até € 4.250.000,00 para financiamento da construção do complexo das piscinas cobertas de Campo Maior, e uma abertura de conta-corrente até € 250.000,00 para eventuais necessidades de tesouraria.

41. Tais financiamentos foram acompanhados das seguintes garantias e outras condições específicas: Hipoteca do terreno e benfeitorias necessárias; Consignação das receitas/rendas a receber da CampoMayor, E.M.; Cartas conforto do Município de Campo Maior, da CampoMayor, E.M. e da E..……, SA

42. Quanto aos títulos de responsabilidade dos RR, constantes dos arts. 53.º a 69.º da p.i., a 1.ª Ré é responsável pelo pagamento das quantias mutuadas ao abrigo do disposto no art. 798.º do CCivil. A responsabilidade dos 2.º a 7.ª Rés resulta da não verificação dos compromissos garantidos nas cartas-conforto por si subscritas, visto que a 1.ª Ré demonstrou não deter as condições financeiras para cumprir as obrigações assumidas perante a Autora, ao contrário do que por elas foi garantido.

43. Por tanto, foram apresentados os seguintes pedidos: condenação solidária dos Réus no pagamento à Autora da quantia de 5.310.124,00 €, correspondente ao capital em dívida, juros vencidos e demais encargos, acrescida dos juros entretanto vincendos, à taxa contratualmente prevista, bem como nas respetivas custas, a 1.ª Ré, pelo incumprimento dos contratos de mútuo celebrados com a Autora (art. 798.º do CCivil); os 2.º e 3.º Réus, pelo incumprimento das obrigações contratuais que diretamente assumiram perante a Autora (art. 798.º do CCivil) e pela violação dos seus direitos de crédito (art. 483.º do CCivil); os 2.º a 7.º Réus, pelas cartas-conforto por si subscritas (art. 798.º do CCivil e 101.º do CComercial); a 2.ª Ré e o 3.º Réu, subsidiariamente, para o caso de se considerar que não são responsáveis a outro título, condenados pelo enriquecimento sem causa, sendo o valor do enriquecimento e do empobrecimento correspetivo o valor do crédito da Autora.

44. Considera o acórdão que a A. demandou o 3.º Réu “com base no incumprimento contratual, decorrendo do 3.ª R se ter comprometido a fazer transferências de verbas, que não fez, para permitir o pagamento das rendas que a 2.ª R devia pagar à 1:º R, assistindo à A o direito à consignação dessas mesmas rendas”.

45. Ora, esta não é “versão dos factos apresentados pela autora”; esta é a justificação última, para que o contrato de mútuo tivesse sido incumprido, o que é irrelevante, assim como para as obrigações decorrentes para os restantes Réus das cartas-conforto, em que asseguravam que a 2.ª Ré teria os meios suficientes para pagar rendas à 1.ª, valores com os quais seriam pagos os empréstimos.

46. Se os valores a aportar à 2.ª Ré resultavam de contratos-programa ou de qualquer outra fonte mostra-se irrelevante para os direitos da A. e para apreciar o incumprimento dos Réus. Ou seja, em causa está apenas o incumprimento do que havia sido assegurado nas cartas conforto e não qualquer incumprimento de qualquer contrato-programa.

47. O tribunal não foi chamado a apreciar, porque nesse sentido não foi deduzido pedido pela A., o contrato-programa, celebrado entre o 3.º e a 2.ª Réus. Tal contrato é apenas referido na p.i. para explicar a razão da confiança da A. na concessão do crédito, confirmar essa que seria abalada caso o 3.º Réu viesse invocar não ser responsável pela dívida e, assim, justifica eventual defesa deste Réu, em manifesto abuso de direito.

48. Partindo de uma errada compreensão da relação material controvertida, errada tem que ser a conclusão do acórdão.

49. E do conjunto de factos que considera provados, o acórdão orienta-se apenas para o supérfluo, orientado para fundar a decisão.

50. Assim, e ao contrário do decidido, desde logo, não há qualquer “relação jurídica estabelecida entre A e R” (3.º Réu), que tenha por objeto, principal ou lateral, quaisquer transferências.

51. Sobre a norma em causa do art. 4.º, n.º 1, al. f) do ETAF, diz a doutrina, salientando a existência de um contrato entre as partes, que “Trata-se aqui dos designados contratos administrativos substitutivos e integrativos que constituem casos em que a Administração em vez de alcançar o efeito jurídico tido em vista através de acto administrativo, ou de o alcançar totalmente por essa via, celebra um contrato com o destinatário desses efeitos, acordando com ele sobre o modo de harmonizar reciprocamente os interesses que cada um tem na situação concreta em causa”.

52. Ainda que existisse tal contrato, que efetivamente não existe, nunca o mesmo poderia ser enquadrado na referida categoria de contrato administrativo substitutivo de ato administrativo, no que se refere aos efeitos em relação à Autora, pois o objeto do contrato não é passível de ato administrativo, por não poder ser definido por ato de autoridade.

53. Ao invés do decidido, são bastas as decisões no sentido de caber aos tribunais comuns a competência para apreciar e decidir as questões dos autos.

54. Como à jurisdição administrativa e fiscal deve ser adjudicada, em exclusivo, competência para a apreciação de ações e de recursos que tenham por objeto “litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais” importa preencher este conceito.

55. Aplicando este conceito ao caso dos autos – relação contratual incumprida – podemos sumariar a posição da Recorrente citando o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 4/6/2013, Proc. 029/13, com especial relevância para o caso dos autos, “A relação jurídica administrativa tem sido definida como aquela que se desenvolve entre um ente público e pessoas privadas sob a égide de normas de direito público, isto é, que regulam a relação de modo diferente de correspondentes relações privadas, por incluírem um poder da parte pública ou sujeição especial, determinadas pela necessidade de conferir especial eficácia à tutela do interesse público. No domínio dos contratos a relação jurídica administrativa surge como aquela que extravasa da regra comum de igualdade de posicionamento e de equilíbrio das prestações, através da concessão à parte pública de poderes de conformar ou alterar aspectos da relação, em especial respeitantes à execução, que excedem do direito comum dos contratos”.

56. Em situação que se pode considerar bastante semelhante à dos autos, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 3/4/2014, Proc. 3798/13.2TBBRG.G1. Também nos autos estamos perante um litígio meramente privado, em que nem a A. nem os RR. atuaram no exercício de qualquer poder público.

57. Trata-se de figuras de direito privado, sujeitas a regras dessa natureza, em que o Município age na veste de sujeito de direito privado, destituído de qualquer ius imperi, não tendo tais negócios jurídicos sido objeto de ato administrativo, nem as partes contratantes o submeteram a um regime de direito administrativo, como decidido no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/9/2014, Proc. 17/14.8TBPPS.C1.

58. Em suma, tratando-se (de) “um litígio de natureza privada, a decidir por aplicação de normas de direito privado, ainda que um dos sujeitos seja uma entidade pública, o tribunal administrativo não é o competente, verificando-se em vez disso a competência dos tribunais comuns” (Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 19/12/2013, Proc. 80/11.3TBEVR.E1).

Termos em que o presente recurso deve ser admitido e merecer provimento e, em consequência, ser revogado o acórdão recorrido”.

As 1.ª e 4.ª a 7.ª rés contra-alegaram pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do julgado.

O recurso foi admitido pela Desembargadora Relatora como de revista, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

No entanto, o Conselheiro Relator a quem a revista foi distribuída, por despacho de 27/9/2016, julgou competente para conhecer do recurso interposto o Tribunal dos Conflitos, nos termos do art.º 101.º, n.º 2, do CPC, e ordenou a remessa dos autos para este Tribunal.

A Digna Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal teve vista no processo e pronunciou-se pela competência dos tribunais administrativos.

Perante a informação prestada pela recorrente de que tinha instaurado, em 31/12/2016, após a interposição do presente recurso, “nova acção junto do TAC de Lisboa, contra os mesmos RR e com os mesmos pedidos e causa de pedir”, foi solicitada certidão da petição inicial dessa acção, bem como informação sobre o estado da mesma, nomeadamente se já tinha sido proferido despacho saneador, pedido de informação que foi renovado, por várias vezes, pelo Relator, entretanto jubilado, quanto à prolação do despacho em falta e, em caso afirmativo, o envio de cópia certificada do mesmo.

Esse despacho acabou por ser proferido em 12/1/2021, onde consta que foi julgada procedente a excepção dilatória de litispendência, com a consequente absolvição dos demandados da instância (da acção administrativa n.º 1/16.7BELSB).

Apesar de ainda não ter transitado em julgado tal decisão (pelo menos, à data da conclusão do projecto – 21/1/2021), não há motivos, a nosso ver, para retardar mais a decisão deste conflito.

Cumpre, pois, apreciar e decidir o mérito do presente recurso.

A única questão que importa aqui dirimir consiste em saber qual é a jurisdição materialmente competente para conhecer da acção donde emanou o presente conflito “preventivo”.

II. Fundamentação

1. De facto

O acórdão recorrido (à semelhança da 1.ª instância) considerou provados os seguintes factos:

1) A 2ª ré, “CampoMayor XXI, Empresa Municipal”, é uma empresa pública municipal, cujo objeto é o desenvolvimento, implementação, construção, gestão e exploração das áreas de desenvolvimento urbano prioritárias, requalificação urbana e ambiental, construção e gestão de habitação social, a construção de vias municipais e a construção, gestão e exploração de equipamentos desportivos, turísticos, culturais e de lazer, conforme consta a fls. 22/23 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido;

2) Por deliberação maioritária de 25.05.2006, a criação da 2ª ré foi autorizada pelo 3º réu, “Município de Campo Maior”, assim como o seu objeto social e a transferência em numerário de € 50.000,00 para a constituição do capital social, conforme consta a fls. 23vº/24 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido;

3) O 3º réu aprovou ainda um contrato-programa a celebrar com a 2ª ré com o “objetivo da realização dos investimentos de rentabilidade não demonstrada”, conforme consta a fls. 24vº/28 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido, onde consta, para além do mais, “(…). Cláusula 3ª: 1. Para cumprimento das obrigações assumidas pela CampoMayor XXI-Empresa Municipal neste contrato, que se traduzem na realização de um investimento de rentabilidade não demonstrada, tendo em atenção que de acordo com o referido estudo económico financeiro relativo à constituição da Campo Mayor XXI-Empresa Municipal, as rendas de exploração não cobrem a totalidade dos custos envolvidos na criação, implementação, desenvolvimento, construção, instalação, gestão e conservação das infraestruturas desportivas, o Município de Campo Maior apoiará financeiramente a CampoMayor XXI-Empresa Municipal, mediante verbas previstas no orçamento, nos montantes previstos no Plano de Atividades anexo. 2. Consequentemente o Município de Campo Maior transferirá, através dos procedimentos legais e orçamentais necessários para tanto, para a CampoMayor XXI-Empresa Municipal, os seguintes montantes anuais, num prazo de 20 anos: (…). 3. No caso de os montantes referidos no número anterior se revelarem insuficientes, o Município de Campo Maior compromete-se a reforçar as referidas verbas, até atingir o montante que se vier a apurar ser o da efetiva cobertura de todos os custos previstos no citado Plano de Atividades da CampoMayor XXI-Empresa Municipal. 4. A CampoMayor XXI-Empresa Municipal poderá consignar os valores referidos nos dois números anteriores da presente cláusula, para cobertura e reembolso dos financiamentos que vierem a ser obtidos para a realização e exploração das infraestruturas desportivas. (…);

4) A escritura de constituição da 2ª ré foi celebrada a 07.07.2006;

5) “Pretendendo a Câmara Municipal proceder à construção de piscina municipal coberta”, foi aprovada deliberação, em reunião camarária de 05.07.2006, no sentido de adquirir um imóvel para tal fim, conforme consta a fls. 29/30 dos autos, aquisição que veio a ser formalizada em 14.02.2007, por escritura de compra e venda lavrada pelo notário privativo, tendo o 3º réu adquirido um prédio rústico denominado “………”, pelo valor de € 374.099,00, destinado à construção da piscina municipal coberta;

6) Após o loteamento de tal imóvel em dois lotes de terrenos, aprovado pelo Alvará nº 2 de 23.05.2007, destinados à “construção de equipamento” e aprovação das respetivas obras de urbanização, foi outorgada, em 06.07.2007, e levada a registo a escritura de doação do 3º réu à 2ª ré do lote 1, com área de 5.388m2, descrito na CRPredial de Campo Maior sob o nº 3052 e inscrito na matriz da freguesia de São João Batista sob o art.º 3236, para construção, instalação e funcionamento do complexo de piscinas, conforme consta a fls. 30vº/32 os autos;

7) Por deliberação camarária de 04.10.2006 foi aprovada, por maioria, a parceria entre a 2ª ré e um parceiro privado, através da participação daquela no capital de “uma sociedade anónima a constituir, na percentagem de 49% do capital social, correspondente a € 24.000,00 a concretizar através de entrada em dinheiro ficando a restante percentagem de 51% para parceiro privado, podendo este subdividir a sua quota por empresas onde detenha posição de controlo, sendo sempre esta subdivisão previamente autorizada pelo parceiro minoritário”, conforme consta a fls. 32vº/33 dos autos;

8) Em dezembro de 2006, foi acordado entre “B'……..-, S.A.” (6ª ré), “C………., S.A.” (5ª ré), e “B………-, S.A” (4ª ré) e “F………., Ldª”, como primeiros contraentes e a 2ª ré, como segunda contraente, um acordo de cooperação técnica, económica e financeira, visando constituir “uma parceria sob a forma de sociedade”, com a finalidade de “viabilizar o complexo de piscinas mediante a conjugação da iniciativa privada com os meios e ativos do Município e da segunda contraente”, conforme consta a fls. 40/52 dos autos;

9) Em 29.12.2006 foi outorgada escritura do contrato de sociedade da 1ª ré, “A………., S.A” pelos representantes da 2ª ré e dos parceiros privados, conforme consta 53/60 dos autos;

10) A 1ª ré é uma sociedade que tem por objeto a implementação, construção e manutenção de infraestruturas e de equipamentos sociais, desportivos e de lazer e prestação de serviços relacionados com a atividade, sendo detida em 49% pela 2ª ré e em 51% pelos parceiros privados, encontrando-se registada na competente conservatória, conforme consta a fls. 53/60 e a fls. 60vº/61 dos autos;

11) Em 29.12.2006 foi celebrado um contrato promessa de arrendamento, nos termos do qual a 1ª ré prometeu arrendar à 2ª ré e esta prometeu tomar de arrendamento as piscinas que a 1ª ré viesse a construir, pelo prazo de 20 anos, sendo o total de rendas no valor de € 8.592.000,00, conforme consta a fls. 61vº/63 dos autos;

12) Com data de 23.05.2011, a 1ª ré enviou à autora, e esta recebeu, a carta cuja cópia consta a fls. 63vº/64 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido, onde consta, para além do mais, “Reiterando o que em contactos pessoais já demos conta, informamos V. Exª que após a comunicação supra identificada, e como base nos pressupostos nela transmitidos, esta sociedade aprovou com a CampoMayor XXI-EM um modelo de contrato de exploração que permitirá dotar a sociedade dos meios necessários à regularização das responsabilidades emergentes das operações de crédito contratadas, bem como a liquidação dos atrasos verificados até março de 2011. (…)”;

13) Nos termos do referido contrato de cessão de exploração do complexo de piscinas cobertas de Campo Maior com promessa de transmissão, cuja cópia consta a fls. 64vº/67 dos autos, prevê-se que a 1ª ré ceda à 2ª ré a exploração do complexo de piscinas de Campo Maior, pelo prazo de 30 anos contra o pagamento de € 8.675.000,00, sendo que findos os 30 anos de exploração das piscinas, a 1ª ré se obriga a transmitir à 2ª ré a propriedade plena destas, livre de quaisquer ónus ou encargos, e com todos os equipamentos, licenças e direitos, sem recebimento de qualquer contrapartida;

14) Em 18.10.2007 foi celebrada escritura de constituição de direito de superfície do lote 1 sito em “……..” entre a 2ª ré e a 1ª ré, e a favor desta, por prazo de 20 anos, pelo qual esta última pagou o valor de € 175.000,00, destinando-se o direito de superfície à conceção, construção e exploração de um complexo de piscinas, sendo a sociedade superficiária a responsável pela obtenção do financiamento integral de todos os trabalhos e serviços objeto deste contrato, conforme consta a fls. 68vº/69 dos autos;

15) Na sequência de pedido apresentado a 05.02.2007 pela 1ª ré, conforme consta a fls. 70vº/71 dos autos, e negociações subsequentes, a autora aprovou um financiamento à 1ª ré, nos seguintes termos, a esta comunicados por fax de 20.03.2007, cuja cópia consta a fls. 72 dos autos: Operação de longo prazo: abertura de crédito até € 4.250.000,00, (…); Operação de tesouraria: abertura de conta-corrente até € 250.000,00, (…); Plafond para garantias bancárias a favor da DGI-DSReembolso de Iva, até ao montante de € 800.000,00, (…); Garantias e outras condições específicas: Hipoteca do terreno e benfeitorias necessárias; Consignação de receitas/rendas a receber da CampoMayor XXI-EM; Compromisso de efetuar as transferências/compensações provenientes da CampoMayor XXI, EM, através da conta na Caixa; Carta conforto do Município de Campo Maior; Garantia bancária de boa execução da obra correspondente a 10% do seu valor, de 5% no mínimo e desde o início da obra; Existência de licença de construção e aprovação do projeto; Ownership clause da CampoMayor XXI, EM e da E………, S.A.; Afetação das verbas de reembolso do Iva à amortização de financiamento ou redução, na proporção dos montantes aprovados;

16) Em 18.04.2007, em reunião ordinária da Câmara Municipal de Campo Maior, foi deliberado, por maioria, aprovar a carta de conforto do 3º réu, relativamente à concessão pela autora de um empréstimo no montante de € 4.250.000,00 à 1ª ré para financiamento da construção das piscinas e infraestruturas acessórias de Campo Maior, conforme consta a fls. 73vº/74 dos autos;

17) A 2ª ré enviou à autora, e esta recebeu, a declaração constante a fls. 75 dos autos, onde consta, para além do mais, “(…). CampoMayor XXI, Empresa Municipal, (…) tem integral conhecimento das seguintes operações a celebrar entre essa Instituição e a Cliente: (…). A Empresa Municipal declara e garante a essa Instituição, para os devidos efeitos, que a Cliente é solvente e dispõe de condições financeiras que lhe permitem cumprir integralmente as suas obrigações, designadamente as emergentes dos referidos contratos. A Empresa Municipal detentora do capital social da Cliente A……….., compromete-se a não diminuir e a não onerar as suas participações sociais na Cliente, atualmente num total de 40%, enquanto subsistirem as obrigações emergentes dos contratos supra identificados. A Empresa Municipal reconhece, por último, que as declarações e compromissos contidos na presente carta constituem elemento determinante para a formação da vontade da Caixa Geral de Depósitos, S.A., no sentido da celebração dos referidos contratos. (…)”;

18) A “B…….., S.A.”, a “C………, S.A.”, a “G………., Ldª” e a “D…….., Ldª” enviaram à autora, e esta recebeu, a declaração constante a fls. 76 dos autos, onde consta, para além do mais, “…vêm comunicar a V.Exªs, a pedido da A…………, S.A”, (…), que têm integral conhecimento das seguintes operações a celebrar entre essa Instituição e a Cliente: (…). Mais comunica que tem perfeito e integral conhecimento dos demais termos e condições a que vão estar sujeitas aquelas operações e a estabelecer nos respetivos contratos cujo teor é, igualmente do seu integral conhecimento. As Sociedades declaram e garantem a essa Instituição, para os devidos efeitos que a Cliente é solvente e dispõe de condições financeiras que lhe permitem cumprir integralmente as suas obrigações, designadamente as emergentes dos referidos contratos. As sociedades detentoras do capital social da Cliente A……, comprometem-se a não diminuir e a não onerar as suas participações sociais na Cliente, atualmente num total de 51, enquanto subsistirem as obrigações emergentes dos contratos supra identificados. As sociedades reconhecem, por último, que as declarações e compromissos contidos na presente carta constituem elemento determinante para a formação da vontade da Caixa Geral de Depósitos, S.A., no sentido da celebração dos referidos contratos. (…)”;

19) Por escritura pública datada de 18.10.2007, a autora concedeu à 1ª ré um financiamento, na modalidade de abertura de crédito, até ao montante de € 4.250.000,00, destinado a financiar a aquisição do referido direito de superfície, bem como a construção do complexo de piscinas da …….. em Campo Maior, conforme consta a fls. 81/93 dos autos, onde consta, para além do mais, “(…). A) A Sociedade adquiriu à CampoMayor XXI, por escritura pública lavrada no presente Cartório, imediatamente anterior a esta, o direito de superfície sobre o prédio urbano (…) destinado à construção do “Complexo de Piscinas Municipais de Campo Maior” (…); b) Por contrato promessa de arrendamento celebrado em 29.12.2006 a CampoMayor XXI prometeu tomar de arrendamento à sociedade o referido Complexo; c) A Sociedade entregou nesta data carta conforto emitida pelo Município de Campo Maior, na sequência de prévia deliberação da respetiva Câmara Municipal”, tendo ainda declarado a 2ª ré na referida escritura “ter o maior interesse na concessão deste empréstimo e na conclusão daquele Complexo e declara que tudo fará para que o serviço da dívida do empréstimo seja regular e pontualmente cumprido, obrigando-se, nomeadamente a transferir as rendas, a pagar à Sociedade pelo arrendamento daquele Complexo, por crédito na conta de depósito à ordem associado ao empréstimo”, mais tendo sido declarado na referida escritura pública que o contrato programa relativo ao desenvolvimento do projeto supra, no qual estão devidamente consagradas as rendas atrás referidas encontra-se aprovado na Assembleia Municipal decorrida em 25.05.2006”;

20) Por escritura pública datada de 18.10.2007, a autora concedeu à 1ª ré um financiamento, na modalidade de abertura de crédito em conta-corrente, até ao montante de € 250.000,00, destinado a suprir necessidades pontuais de tesouraria no âmbito do projeto de conceção e construção do complexo de piscinas da …….. em Campo Maior, conforme consta a fls. 94/106 dos autos, onde consta, para além do mais, “(…). A) A Sociedade adquiriu à CampoMayor XXI, por escritura pública lavrada no presente Cartório, imediatamente anterior a esta, o direito de superfície sobre o prédio urbano (…) destinado à construção do “Complexo de Piscinas Municipais de Campo Maior” (…); b) Por contrato promessa de arrendamento celebrado em 29.12.2006 a CampoMayor XXI prometeu tomar de arrendamento à sociedade o referido Complexo; c) A Sociedade entregou nesta data carta conforto emitida pelo Município de Campo Maior, na sequência de prévia deliberação da respetiva Câmara Municipal”, tendo ainda declarado a 2ª ré na referida escritura “ter o maior interesse na concessão deste empréstimo e na conclusão daquele Complexo e declara que tudo fará para que o serviço da dívida do empréstimo seja regular e pontualmente cumprido, obrigando-se, nomeadamente a transferir as rendas, a pagar à Sociedade pelo arrendamento daquele Complexo, por crédito na conta de depósito à ordem associado ao empréstimo”, mais tendo sido declarado na referida escritura pública que o contrato programa relativo ao desenvolvimento do projeto supra, no qual estão devidamente consagradas as rendas atrás referidas encontra-se aprovado na Assembleia Municipal decorrida em 25.05.2006”;

21) Na mesma data e no mesmo Cartório a autora concedeu à 1ª ré um terceiro financiamento na modalidade de emissão de garantias bancárias, a favor da DGI-destinado a assegurar o reembolso de Iva, até ao montante de € 800.000,00, conforme consta a fls. 111/117 dos autos;

22) Todos os referidos financiamentos foram garantidos por hipoteca do direito de superfície sobre o lote de terreno para construção, sito em “…….”, lote 1, descrito na Conservatória de Registo Predial de Campo Maior sob o nº 3052, freguesia de São João Baptista e inscrito na respetiva matriz sob o art.º 3236, conforme consta a fls. 107/110 dos autos, hipotecas levadas a registo na competente Conservatória;

23) O capital de € 4.250.000,00 e de € 250.000,00 foi totalmente utilizado pela 1ª ré;

24) Na operação a longo prazo, a 1ª libertação de verbas ocorreu em 18.10.2007 e a última em 26.12.2008, ficando o capital totalmente utilizado nessa data;

25) O capital da operação de conta corrente foi totalmente utilizado em 05.01.2009, com a 1ª e única libertação;

26) Os empréstimos supra mencionados entraram em incumprimento em 18.01.2007.

2. De direito

Importa começar por lembrar que, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial consolidado, a aferição do pressuposto processual da competência, nomeadamente da competência em razão da matéria, deve ser equacionada em função dos contornos da pretensão deduzida tal como se encontra configurada na petição inicial. (Cfr., entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91; Miguel Teixeira de Sousa, Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, pág. 36; e Acs. do STJ de 12/1/94, 2/7/96 e de 3/2/97, no BMJ, respectivamente, n.ºs 433, pág. 554, 459/444 e 364/591, de 5/2/2002, na CJ – STJ -, ano X, tomo I, pág. 68, de 18/3/2004, no processo n.º 04B873, de 13/5/2004, no processo n.º 04A1213, de 10/4/2008, no processo n.º 08B845, de 22/10/2015, processo n.º 678/11.0TBABT.E1.S e de 14/12/2017, processo n.º 3653/16.4T8GMR.G1.S1, estes cinco últimos disponíveis em www.dgsi.pt; do Tribunal dos Conflitos, de 20/10/2011, proferido no conflito n.º 13/11, e de 8/11/2018, conflito n.º 20/18, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.)

Assim, a competência do tribunal determina-se pelo pedido do autor e pela causa de pedir em que o mesmo se apoia, expressos na petição inicial, já que ela não depende nem da legitimidade das partes nem da procedência da acção, irrelevando, por isso, o juízo de prognose que se possa fazer relativamente ao mérito da causa.

Dispõe o art.º 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.

Estabelece-se aqui o princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais, uma vez que ela se estende a todas as áreas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais.

Tal princípio encontra também consagração no art.º 64.º do CPC, segundo o qual “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

Preceito idêntico consta do art.º 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/8 (Lei de organização do sistema judiciário - LOSJ), ao dispor que “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

Por sua vez, o art.º 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa estabelece que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

O âmbito da jurisdição administrativa e fiscal está previsto no art.º 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), anexo à Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, que o aprovou, sendo aqui aplicável a redacção dada pela Lei 59/2008, de 11 de Setembro, por ser a vigente na data em que a acção foi instaurada (12/1/2015) e porque não têm aplicação as alterações posteriores (cfr. art.º 38.º da LOSJ e art.º 5.º do ETAF). Segundo o n.º 1 do citado art.º 4.º, “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto.

e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;

f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;

…”

Este artigo surge na sequência da definição genérica consagrada no art.º 1.º, o qual previa, no seu n.º 1, que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”

Importa, assim, saber o que deve entender-se por “relação jurídica administrativa”.

José Carlos Vieira de Andrade (in “A Justiça Administrativa”, 16.ª edição, pág. 53, citado no acórdão deste Tribunal n.º 35/18) adianta que parece prudente “partir do entendimento do conceito constitucional de «relação jurídica administrativa», no sentido estrito tradicional de «relação jurídica de direito administrativo» com exclusão, nomeadamente das relações de direito privado em que intervém a Administração”.

E continua o mesmo autor: “apenas têm que se considerar relações jurídicas públicas (segundo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”. (...) A utilização de um critério material de delimitação pressupõe (...) um conjunto de relações onde a Administração é, tipicamente ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público - é por isso que se justifica um sistema de regras e de princípios diferentes das normas de direito privado, que formam uma ordem jurídica administrativa; será aí que se justificará a existência de uma ordem judicial diferente da ordem dos tribunais judiciais.”. (Ob. Cit., págs. 53-54.)

Também Fernandes Cadilha (in Dicionário de Contencioso Administrativo, 2006, pág. 117/118, citado no mesmo acórdão) refere que “por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjetivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjetiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, interadministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou interorgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa coletiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado, as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica”.

Deste modo, a interpretação das diferentes alíneas do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF deve ser feita tendo presente o aludido conceito de relação jurídica administrativa.

No caso sub judice, interessa-nos particularmente a alínea f), do n.º 1, do artigo acabado de citar, na redacção vigente à data da propositura da acção, acima transcrita, pois foi com base nela que a Relação deferiu a competência aos tribunais administrativos, com a consequente incompetência do tribunal comum, assim confirmando a decisão recorrida. Isto, porque entendeu que, ao demandar o 3.º réu com base em incumprimento contratual decorrente do facto de se “ter comprometido a fazer transferências de verbas, que não fez, para permitir o pagamento das rendas que a 2.ª R devia pagar à 1.ª R, assistindo à A o direito à consignação dessas mesmas rendas”, estava em causa, na própria alegação da autora, “a responsabilidade do 3.º R por não ter feito as transferências de verbas a que se comprometeu”, o que lhe dá “um cariz nitidamente administrativo” e faz com que “a relação estabelecida entre A e R, neste nível, não poderá… deixar de ser entendida como uma relação jurídica de cariz administrativa e não uma mera relação jurídica de natureza civilística”, relação esta que “era susceptível de ter sido estabelecida no âmbito de contrato administrativo, embora o não tenha sido”. Analisar a vinculação do réu perante a autora a fazer essas transferências e a razão do apontado incumprimento, “implicará, desde logo, a convocação de regras de direito administrativo”, pelo que, neste ponto, “a relação estabelecida entre a A e o 3.º R é uma relação jurídica administrativa e não civil”. Conclui, assim, que, ao imputar responsabilidade contratual, por incumprimento das ditas transferências, está “delineado um contrato com «objecto passível de acto administrativo», o que é bastante para entender que a “competência para a acção deve caber aos tribunais administrativos”.

Com o devido respeito por tal douto entendimento, não o sufragamos.

Com efeito, nesta acção, a autora pede a condenação solidária dos réus no pagamento da quantia de 5.310.124,00 €, correspondente ao capital, alegadamente, em dívida e juros, vencidos e vincendos, e demais encargos, invocando, para tanto, o incumprimento das obrigações emergentes de dois contratos de mútuo que celebrou com a 1.ª ré (a sociedade comercial “A………, S.A.), e cujo cumprimento, segundo alegado, se mostra assegurado pela 2.ª ré e pelo 3.º réu, designadamente através de transferências de receitas para a conta da mutuária e de cartas-conforto, emitidas por aqueles réus e pelas restantes 4.ª a 7.ª rés.

Tais contratos de mútuo encontram-se integralmente submetidos a um regime de direito privado, pelo que não se vislumbra qualquer fundamento para atribuir a competência para o conhecimento da presente acção aos tribunais administrativos, atento o disposto nas várias alíneas do art.º 4.º, n.º 1, do ETAF.

Também é de afastar a possibilidade de fundar a responsabilidade da 2.ª ré e do 3.º réu pelo incumprimento dos contratos, no âmbito de uma relação jurídico-administrativa, tal como acima a definimos.

Contrariamente ao afirmado no acórdão recorrido, a responsabilidade contratual da 2.ª ré e a transferência de verbas para a autora, depois de obtidas pelo 3.º réu, não se funda em contrato com “objecto passível de acto administrativo”, nem era o seu incumprimento que estava em causa mas simplesmente o incumprimento dos contratos de mútuo.

Muito embora tenha sido celebrado um contrato-programa entre a 2.ª ré e o 3.º réu, o tribunal não é chamado a pronunciar-se sobre a sua validade, a sua interpretação e/ou a sua execução, o que, desde logo, conduz ao afastamento da previsão legal da al. f), do n.º 1, do art.º 4.º do ETAF.

Relativamente às cartas-conforto, emitidas para garantia do cumprimento das obrigações assumidas pela mutuária, e com base nas quais foram demandados nesta acção, além doutras, o Município e a 2.ª ré, empresa municipal, “trata-se de uma figura de direito privado, que se rege por normas de direito privado, independentemente da natureza do emitente, sujeita portanto à jurisdição comum”.(Cfr. citado acórdão n.º 35/18, disponível em www.dgsi.pt e Vieira de Andrade, ob. cit., pág. 55, nota 60, referindo que “um contrato de garantia do cumprimento de obrigações assumidas num contrato de administrativo terá independência relativamente ao contrato-base e, enquanto contrato privado, continuará a estar sujeito à jurisdição comum.”
Neste sentido, podem consultar-se os acs. do Tribunal dos Conflitos de 4.6.2013, proc. 29/13 e o ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 3.4.2014, proc. 3798/13.)
No sentido vindo de expor, decidiu este Tribunal dos Conflitos no seu acórdão n.º 35/18, de 23/5/2019, disponível em www.dgsi.pt, já referenciado, que versou sobre um caso idêntico ao destes autos, com o qual concordamos e que aqui adoptámos e seguimos, feitas as devidas adaptações.

Deste modo, a relação material controvertida, tal como é caraterizada pela autora, não se inscreve em nenhuma das alíneas do n.º 1, do art.º 4.º, do ETAF, nomeadamente na al. f), invocada no acórdão recorrido.

Por conseguinte, a competência para apreciar as pretensões da autora, deduzidas a título principal, atinentes ao pagamento da quantia em dívida, em virtude do alegado incumprimento dos contratos de mútuo, cabe aos tribunais judiciais, e não à jurisdição administrativa.

Quanto ao pedido subsidiário formulado, em que se pede a condenação da 2.ª ré e do 3.º réu, com base no enriquecimento sem causa, não se tratando de uma relação jurídica administrativa, como se viu, seria igualmente de afastar, também nesta parte, a competência dos tribunais administrativos.

Ainda assim, não podemos deixar de afirmar que a decisão sobre a competência em razão da matéria é aferida em função do pedido principal e não do pedido subsidiário, como se decidiu no acórdão do Tribunal dos Conflitos n.º 9/14, de 14/9/2017 e se repetiu no citado acórdão n.º 35/18.

O recurso merece, pois, provimento.

Sumário:

1. A aferição do pressuposto processual da competência em razão da matéria deve ser equacionada em função da relação jurídica controvertida, tal como é configurada pelo autor, irrelevando, neste plano, o juízo de prognose relativamente ao mérito da causa.

2. Compete ao tribunal comum conhecer da açção proposta pela mutuante contra a mutuária e prestadores de garantia com fundamento no incumprimento de contratos de mútuo e em obrigações assumidas em cartas-conforto, ainda que estas tenham sido emitidas e subscritas por município e empresa municipalizada, por se regerem por normas de direito privado, e mesmo que tenha sido celebrado entre eles um contrato-programa, relativamente ao qual o tribunal não é chamado a pronunciar-se sobre a sua validade, a sua interpretação e/ou a sua execução.

III. Decisão

Pelo exposto, acorda-se em, concedendo provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e em declarar competente a jurisdição comum, em concreto, o Juízo Central Cível de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, para preparar e julgar a presente acção.


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Sem custas (art.º 96.º do Decreto n.º 19243 de 16.01.1931).


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Lisboa, 27 de Abril de 2021

Nos termos do art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de Maio, atesto que o presente acórdão foi aprovado com voto de conformidade dos Ex.mos Juízes Conselheiros Adjuntos que compõem este colectivo e que não podem assinar.

Conselheiro Dr. Fernando Augusto Samões (Relator, que assina digitalmente)

Conselheiro Dr. António Pires Henrique da Graça

Conselheiro Dr. Jorge Artur Madeira dos Santos

Conselheiro Dr. Manuel José Pires Capelo

Conselheiro Dr. Carlos Luís Medeiros de Carvalho

Conselheira Dr.ª Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (Adjuntos)