Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02140/21.3T8PRT.S1
Data do Acordão:10/13/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Nos termos do disposto na al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, cabe à Jurisdição Administrativa e Fiscal a apreciação de uma acção na qual está em causa um litígio entre um particular e uma fundação pública com regime de direito privado relativo à “validade de actos pré-contratuais inseridos em procedimentos administrativos”.
Nº Convencional:JSTA000P28428
Nº do Documento:SAC2021101302140
Recorrente:A........
TAF-TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO PORTO
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DO PORTO-JUÍZO DO TRABALHO DO PORTO-JUIZ 1
Recorrido 1:FACULDADE DE DESPORTO DA UNIVERSIDADE DO
PORTO
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 21 de Dezembro de 2018, AA intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto uma ação administrativa contra a Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, pedindo:
a) A anulação da decisão final que foi proferida pelo júri do concurso para o recrutamento de um professor auxiliar para a área disciplinar ...... da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, proferida em 27 de Setembro de 2018 ("Ata n.º 2/2018") e notificada ao Autor em 1 de Outubro de 2018 (…);
b) A condenação do Réu à prática dos actos administrativos devidos e conducentes ao deferimento da pretensão do Autor, a qual se efectivará mediante a graduação do Autor como candidato posicionado em 1º lugar”.
Para o efeito, e em síntese, impugnou «a decisão final que foi proferida pelo júri do concurso para o recrutamento de um professor auxiliar para a área disciplinar ...... da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto ("Sociologia e Antropologia do Desporto")», «em regime de contrato individual de trabalho por tempo indeterminado», de 27 de Setembro de 2018, que qualificou como um acto administrativo com eficácia externa, lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, e inválido por sofrer dos vícios de falta de fundamentação, de violação do dever de decisão e de erro na avaliação dos candidatos, com a consequente má ordenação.
Citada, a Universidade do Porto contestou, por impugnação e por excepção, sustentando que devia ser absolvida do pedido. Nomeadamente, invocou a ilegitimidade passiva da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto e a ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir.
A contrainteressada BB contestou, excepcionando a ilegitimidade passiva da Faculdade de Desporto e a inimpugnabilidade do acto em discussão, por ser um acto preparatório “do verdadeiro acto administrativo (…) praticado pelo Director da Faculdade de Desporto” e defendendo-se também por impugnação.
Por sentença de 27 de Novembro de 2020, proferida no então processo n.º 3201/18.1BEPRT, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou-se incompetente em razão da matéria para conhecer da causa, absolvendo a ré da instância.
Para o efeito, afirmando que a Universidade do Porto é uma fundação pública com regime de direito privado e salientando que todas as normas aplicadas, bem como o aviso da respectiva abertura, apontam no sentido de o concurso se reger por normas de direito privado, designadamente, pelo Código do Trabalho, concluiu não estar “em causa qualquer relação jurídica de emprego público, ou relativa à sua formação, a que se aplique um regime de direito público que confira algum tipo de administratividade aos actos praticados no seu âmbito.”
Notificado, o autor requereu a remessa dos autos ao Tribunal do Trabalho do Porto.
Remetidos os autos, em cumprimento de despacho proferido em 28 de Janeiro de 2021, a ação foi distribuída ao Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo do Trabalho do Porto – Juiz 1, com o n.° 2140/21.3T8PRT.
Por sentença de 10 de Maio de 2021, após assegurar o contraditório das partes, o Tribunal declarou-se materialmente incompetente e absolveu a ré da instância.
Em síntese, o Tribunal entendeu que, tendo a ré a natureza jurídica de fundação pública de direito privado, estando portanto sujeita, além do mais, aos princípios constitucionais de direito administrativo e aos princípios gerais da actividade administrativa, o acto impugnado consubstancia um acto administrativo; e que, não obstante o concurso no âmbito do qual foi praticado visar o recrutamento de professor auxiliar, em regime de contrato de trabalho por tempo indeterminado, certo é que a aplicabilidade deste regime legal “não afasta a natureza jurídico-administrativa do procedimento” a que obedeceu o concurso, “que se regeu pelas normas do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), como consta do Procedimento Administrativo junto aos autos”.
Concluiu estar em causa uma relação jurídico-administrativa – “a apreciação do procedimento concursal para selecção de um professor auxiliar, no âmbito do qual foi proferida a decisão que o aqui autor visa impugnar e que consubstancia um acto jurídico unilateral praticado no exercício do poder administrativo, por entidade pública, com repercussões numa situação individual e concreta, tratando-se de um acto administrativo” – e não “a apreciação de qualquer litígio emergente ou decorrente de um contrato individual de trabalho celebrado com uma pessoa colectiva de direito público, este sim excluído da competência da jurisdição administrativa, nos termos do disposto no art.° 4.°, n.° 4, al. b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais”.
Remetidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça para resolução do conflito negativo de jurisdição, foi determinado pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que se seguisse a tramitação prevista na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos).
Nos termos do n.º 4 do respectivo artigo 11.º, o Ministério Público proferiu parecer, no sentido de caber ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto a competência para o julgamento da acção, por não estar em causa “o contrato de trabalho a estabelecer entre a Universidade do Porto e o candidato que vier a ficar colocado em primeiro lugar no procedimento concursal aberto para recrutamento de um professor auxiliar”, mas antes “ a impugnação desse mesmo procedimento concursal, ou seja, o conjunto de normas impostas pela Universidade do Porto aos candidatos ao referido lugar”; “ora, essas normas têm natureza administrativa”.

2. Os factos relevantes para a decisão do conflito constam do relatório.
Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da autora, se os tribunais judiciais – nos quais se integram os tribunais do trabalho e que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. b) do nº 1 deste artigo 4º, cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal” julgar os litígios relativos aos actos da Administração Pública praticados “ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.
Tem especial relevo o n.º 4 deste artigo 4.º, cuja al. b) exclui da competência dos tribunais administrativos “a apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público”, “com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”, excepção introduzida como al. d) do n.º 3 do artigo 4.º pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, e que está em consonância com a atribuição aos tribunais administrativos e fiscais da competência para apreciar “os litígios emergentes do vínculo de emprego público”, resultante do artigo 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho.
Em qualquer dos casos, aferindo-se a competência pela lei vigente à data da propositura da acção, 21 de Dezembro de 2018, na falta de disposições de direito transitório aplicáveis é por referência à versão do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (a Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, com as alterações decorrentes do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro) que se determina a que jurisdição compete o respectivo julgamento (cfr. artigos 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 38.º, n.º 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário; recorda-se que a Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, que alterou os artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo).
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, que se reitera, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção).
Significa esta forma de aferição da competência, como por exemplo se observou no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 20/18, que “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…».”.
A mesma orientação se retira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, ww.dgsi.pt, processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1: “Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes, quer do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes”.

3. Como se viu, o artigo 4.º, n.º 4, alínea b), do ETAF, vigente já à data da propositura da ação, excluiu do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”. O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto considerou este preceito relevante para o efeito de a competência dos tribunais administrativos e fiscais – “(…) em face do que este Tribunal é materialmente incompetente para conhecer do presente litígio, desde logo, por efeito da alínea b), n.º 4, do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais”, afirmação da qual discordou o Juízo do Trabalho do Porto, por entender que a situação em causa se reconduz a uma “relação de natureza jurídico-administrativa, e por isso da competência dos tribunais administrativos e fiscais – cfr. art.º 11º da Constituição e artigos 1.º e 4.º, n.º 1, al. a) do ETAF".
Acresce que, nos termos do citado art. 4.º, n.º 1, alínea e), compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”. Conforme explica José Carlos Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 109), esta alínea e), que veio alargar o ”âmbito da jurisdição administrativa relativamente à cláusula geral de definição substancial” desse âmbito – apreciação de litígios emergentes das relações jurídicas administrativas (op. cit., pág. 106 e segs.) –, relativamente a contratos.

4. A Universidade do Porto é uma fundação pública com regime de direito privado (art. 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 96/2009, de 27 de Abril).
Com o objectivo de “estancar a multiplicação do «Estado paralelo» (…) e submeter a um controlo mais rigoroso a criação de novas fundações por parte do Estado, Regiões Autónomas, autarquias locais, outras pessoas coletivas da administração autónoma e demais pessoas coletivas públicas”, a Lei Quadro das Fundações, aprovada pela Lei n.º 24/2012, de 9 de Julho, veio impedir “o Estado, as Regiões Autónomas, as autarquias locais, as outras pessoas coletivas da administração autónoma e as demais pessoas coletivas públicas (…) de criar ou participar em novas fundações públicas de direito privado”, dispondo que as “fundações públicas de direito privado já criadas e reconhecidas” ficassem “sujeitas ao regime das fundações públicas de direito público, com algumas especificidades” (Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 148/X, disponível em www.parlamento.pt, correspondente à Lei n.º 24/2012), objectivo que veio traduzir-se no disposto no n.º 1 o artigo 57.º da Lei Quadro (1 - O Estado, as Regiões Autónomas, as autarquias locais, as outras pessoas coletivas da administração autónoma e as demais pessoas coletivas públicas estão impedidos de criar ou participar em novas fundações públicas de direito privado.)
A Lei Quadro não se aplica, todavia, às “instituições de ensino superior públicas com autonomia reforçada a que se refere o capítulo VI do título III da Lei n.º 62/2007, de 10 de Setembro” (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior – n.º 8 do artigo 6.º da Lei n.º 24/2012 – ou seja, às “instituições de ensino público superior de natureza fundacional”, como é o caso da ré (cfr. n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-lei n.º 96/2009, de 27 de Abril, diploma que instituiu a Universidade do Porto como fundação pública de direito privado).
A Lei n.º 62/2007 estabelece o regime jurídico das instituições de ensino superior, regulando designadamente a sua constituição, as suas atribuições e respectiva organização, o funcionamento e competência dos seus órgãos e, ainda, a tutela e fiscalização pública do Estado, no quadro da sua autonomia (artigo 1.º, n.º 1).
Pese embora a possibilidade de actuação segundo as regras do direito privado que a transformação em fundação pública de direito privado implica (n.º 2 do citado artigo 1.º), “nomeadamente no que respeita à sua gestão financeira, patrimonial e de pessoal, com as ressalvas estabelecidas nos números seguintes” (n.º 1 do artigo 134.º do Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior), a natureza pública da fundação implica a sujeição aos “princípios constitucionais respeitantes à Administração Pública, nomeadamente a prossecução do interesse público, bem como os princípios da igualdade, da imparcialidade, da justiça e da proporcionalidade” (n.º 2).

5. O pedido de anulação formulado nesta acção tem como causas de pedir vícios que o autor atribui ao procedimento de concurso e à decisão do respectivo júri; o pedido de condenação à prática de acto administrativo devido assenta nessa anulação.
Não se trata, portanto, de um litígio entre o autor e a ré que decorra de um contrato de trabalho, não valendo assim a exclusão da jurisdição administrativa e fiscal constante da al. b) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
O aviso de abertura do concurso define como “disposições legais aplicáveis” as que constam do Regulamento de Celebração de Contratos de Trabalho de Pessoal Docente da Universidade do Porto ao Abrigo do Código do Trabalho (Despacho n.º 1567/2013, Diário da República n.º 18/2013, Série II, de 25 de Janeiro de 2013).
Este Regulamento “apresenta o conjunto de normas gerais a utilizar na Universidade do Porto (…) para a contratação de pessoal docente contratado em regime de contrato de trabalho regulado pelo código do trabalho (Lei n.º 7/2009 de 12 de fevereiro) e legislação complementar” (art. 1.º).
A propósito de questão similar à dos autos (ainda que referente a procedimento de seleção para contratação de pessoal médico), o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 11 de Janeiro de 2017, www.dgsi.pt, proc .n.º 020/20014, pronunciou-se neste sentido:
“Seguramente que não estamos perante um litígio emergente de uma relação contratual existente, hipótese para a qual a al. d) do n.º 3 do art.º 4.º do ETAF forneceria resposta imediata, mas perante um litígio respeitante ao seu procedimento de formação.(…)
É na natureza deste procedimento que reside a divergência.
Adianta-se que se afiguram evidentes as notas de administratividade neste procedimento pré-contratual. Na verdade, a exigência de um procedimento formalizado previamente à contratação, ainda que mediante contrato de direito privado, e os princípios que o legislador manda observar nesse procedimento concursal (lato sensu) são impostos pela natureza pública do empregador. Na verdade, a Administração Pública, ainda quando autorizada a agir na obtenção dos ditos “recursos humanos” por meios jurídicos de direito privado, não tem o grau de autonomia dos restantes empregadores na selecção e recrutamento. Mesmo para estabelecer relações regidas pelo direito laboral comum, a lei estabelece com frequência um procedimento destinado a tornar efectivo o conjunto de regras de direito público a que deve obedecer. Com efeito, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, aplicam-se ao estabelecimento de relações de trabalho na Administração Pública, independentemente da natureza pública ou privada da vinculação, as regras do art.º 47.º, n.º 2, da Constituição, que impõe a igualdade de condições no acesso ao emprego, a publicitação da oferta de emprego e a garantia de imparcialidade na apreciação dos candidatos, assegurada pela fundamentação da decisão de contratar (cfr. ac. do TC n.º 61/2004 e jurisprudência nele citada). É para garantia do respeito por esta vinculação fundamental da Administração no acesso ao emprego público e não como instrumento de mera salvaguarda do direito geral dos trabalhadores à igualdade no acesso ao mercado do trabalho (cfr. Art.º 24.º do Cod. do Trabalho) que o legislador torna obrigatório o procedimento de recrutamento e selecção em causa.
Assim, o litígio a que a acção respeita insere-se na relação jurídica de direito administrativo que no âmbito deste procedimento concursal (lato sensu) se estabelece entre o ente público obrigado à abertura do procedimento em razão dessa qualidade e os candidatos que se apresentem (uma relação potencialmente poligonal) e não na relação contratual de direito privado entre cada trabalhador médico e o estabelecimento público em que serve.
Tanto basta para concluir que as resoluções dos litígios respeitantes aos procedimentos de seleção para contratação de pessoal médico em regime de contrato individual de trabalho cabem no âmbito da jurisdição administrativa ao abrigo das als. a) e e) do n.º 1, não sendo dela excluídos pela al. d) do n.º 3, do art.º 4.º do ETAF (red. então vigente, actualmente al. d) do n.º 4 do art.º 4).
E não convence a objecção de que também os contratos privados podem ser precedidos de concurso ou de um procedimento mais ou menos formalizado de escolha do contraente. Isso é exacto, mas nesses casos a opção pelo procedimento concursal resulta juridicamente de uma manifestação da autonomia privada do contraente, segundo a avaliação que faça do que lhe é mais vantajoso, e não de uma imposição legal cuja observância é imposta ao ente público nessa qualidade de empregador público e para salvaguarda de um interesse diferenciado do interesse imediato de provisão com “recursos humanos” (os princípios fundamentais do emprego público).
Como se recordou já, também aqui está em causa a impugnação do procedimento de concurso e da deliberação do júri e não um conflito emergente de contrato de trabalho. Aliás, note-se que no âmbito de tal procedimento o ora autor foi notificado para, querendo, exercer o seu direito de audiência prévia, ao abrigo do disposto no art. 121.º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo.

6. Assim, e porque está fundamentalmente em causa um litígio relativo à “validade de actos pré-contratuais inseridos em procedimentos administrativos” (José Carlos Vieira de Andrade, op. cit., pág. 109), a sua apreciação cabe à jurisdição administrativa e fiscal, nos termos do disposto na al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais; concretamente, ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (artigo 8.º do DL 174/2019, de 13 de dezembro, e 19.º, n.º 1, do CPTA).
Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

Lisboa, 13 de Outubro de 2021. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora) - Teresa de Sousa - Henrique Araújo.