Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:07/23
Data do Acordão:07/05/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E FISCAL
CNPD
ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL
Sumário:I - Compete à Jurisdição Administrativa e Fiscal a competência para conhecer das decisões da CNPD, incluindo as de natureza contra-ordenacional;
II - Tal resulta de se encontrar expressamente prevista no art. 34º, nºs 1 e 2 da Lei nº 58/2019 a competência material dos tribunais administrativos para impugnação de todas as decisões da CNPD, incluindo as de natureza contra-ordenacional;
III - Assim, há que ter em conta essa atribuição expressa de competência, independentemente de a mesma não ter sido contemplada na enumeração constante do art. 4º, nº 1 do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P31173
Nº do Documento:SAC2023070507
Data de Entrada:03/27/2023
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LISBOA - JUIZ 4 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA
AUTOR: A..., UNIPESSOAL, LDA
RÉU: MINISTÉRIO PÚBLICO E COMISSÃO NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 7/23

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A..., Unipessoal, Lda [doravante A...], melhor identificada nos autos, veio, deduzir recurso de impugnação judicial, nos termos do artigo 59º do DL nº 433/82, de 27/10, da Deliberação da CNPD – Comissão Nacional de Proteção de Dados [doravante CNPD], 2022/592, de 07.06.2022, que lhe aplicou, no âmbito do processo de contra-ordenação nº ...30, uma coima no montante de €5.000,00, pela prática de uma infracção prevista e punida nos termos do disposto no artigo 13º-A e alínea f) do nºs 1 e 5, do artigo 14º da Lei nº 41/2004, de 18/8, alterada pela Lei nº 46/2012, de 29/8, por alegado tratamento de dados pessoais para efeitos de marketing, sem consentimento prévio da visada.
Remetidos os autos pela CNPD ao Ministério Público junto do Tribunal Administrativo de Lisboa (TAC de Lisboa) este determinou a sua remessa aos Serviços do Ministério Público do Tribunal Criminal Local, ao abrigo do disposto no artigo 130, nº 2, alínea b) da Lei nº 62/2013, de 26/8.
O Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Criminal de Lisboa fez os autos presentes a esse Tribunal, em 08.10.2022, nos termos do art. 62º, nº 1 do DL nº 433/82, de 27/10.
Por decisão proferida por aquele Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz, em 24.10.2022, foi declarada a incompetência desse Tribunal, em razão da matéria, para apreciação do recurso interposto pela arguida, em síntese, face ao disposto nos arts. 4º, 6º e 34º, nº 2 da Lei nº 58/2019, de 8/8, considerando ser competente para o efeito o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.
Após trânsito, foi o processo remetido ao TAC de Lisboa.

O TAC de Lisboa, por decisão de 12.01.2023, julgou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do recurso de impugnação contra-ordenacional, considerando, em síntese que: “No caso trazido a juízo, conforme acima expresso, a CNPD aplicou uma coima à Recorrente, pela prática de uma infração consubstanciada no alegado tratamento de dados pessoais para efeitos de marketing, sem consentimento prévio da visada, prevista e punida nos termos do n.º 1 do artigo 13.º-A e da alínea f) do n.º 1 e do n.º 5, ambos do artigo 14.º da Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, alterada pela Lei n.º 46/2012, de 29 de agosto, a qual versa sobre a proteção de dados pessoais e privacidade nas telecomunicações.
Resulta, assim, de forma clara, e acompanhando a conclusão a que chegou o Venerando Tribunal dos Conflitos no Acórdão acima referido, que a violação da norma que justificou a aplicação de uma coima não se integra no conceito de matéria de urbanismo ou de normas tributárias – cfr. alínea l) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF -, razão pela qual o objeto do presente processo se encontra subtraído à competência material deste Tribunal administrativo de Círculo de Lisboa, sendo competente, em razão da matéria, para dele conhecer, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Criminal de Lisboa.
Por despacho de 13.03.2023, o TAC de Lisboa suscitou oficiosamente o conflito negativo de jurisdição, ordenando a subida dos autos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 2019, de 4/9, nada tendo sido dito pelas partes.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer em 31.03.2023, no sentido de que a competência material para julgar a impugnação judicial da decisão punitiva em causa deverá ser atribuída aos tribunais administrativos, conforme foi decidido, em situação idêntica, por este Tribunal dos Conflitos por acórdão de 14.07.2022, Proc. nº 013/22.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz 4 e o TAC de Lisboa.
A questão que está em causa nos autos é a de saber qual a jurisdição competente para apreciar a impugnação judicial apresentada pela arguida A... na CNPD, e, remetida pelo Ministério Público ao tribunal em 08.10.2022, respeitante a coima que a CNPD aplicou à arguida, no âmbito do processo de contra-ordenação nº ...30, coima esta no montante de €5.000,00, pela prática de uma infracção prevista e punida nos termos do disposto no artigo 13º-A e alínea f) do nºs 1 e 5, do artigo 14º da Lei nº 41/2004, de 18/8, alterada pela Lei nº 46/2012, de 29/8, por alegado tratamento de dados pessoais para efeitos de marketing, sem consentimento prévio da visada.

Entendeu o Juízo Local Criminal de Lisboa que, face ao disposto nos arts. 4º, 6º e 34º, nºs 1 e 2 da Lei nº 58/2019, de 8/8 era competente para conhecer o recurso de contra-ordenação o TAC de Lisboa, por as referidas normas violadas serem normas de direito administrativo.

Remetido o processo ao TAC de Lisboa, este, por sua vez, considerou-se igualmente incompetente, em razão da matéria nos termos supra transcritos.
Vejamos.
É, desde já, de definir que em causa nos autos está a Deliberação da CNPD, 2022/592, de 07.06.2022, que aplicou à A..., no âmbito do processo de contra-ordenação nº ...30, uma coima no montante de €5.000,00, presente em juízo, nos termos do art. 62º do DL nº 433/82, em 08.10.2022.
Na referida data encontrava-se já em vigor a Lei nº 58/2019, de 8/8, em cujo art. 34º se prescreve o seguinte:
1 – Qualquer pessoa, de acordo com as regras gerais de legitimidade processual, pode propor ações contra as decisões, nomeadamente de natureza contraordenacional, e omissões da CNDP, bem como ações de responsabilidade civil pelos danos que tais atos ou omissões possam ter causado.
2 – As ações propostas contra a CNDP são da competência dos tribunais administrativos (…)”.
A competência para apreciar os recursos em matéria contra-ordenacional foi-se alterando, pertencendo sempre essa competência à jurisdição comum [Lei nº 67/98, de 26/10, que previu que a competência era do tribunal da concorrência, regulação e supervisão – art. 112º, nº 1, al. g) da LOSJ; depois a Lei nº 23/2018, de 5/6, que incluiu no art. 112º, nº 1 da LOSJ a ERC mas não a CNDP, pelo que, após 04.08.2018 (data da sua entrada em vigor), passaram a ser materialmente competentes os juízos locais criminais para o conhecimento dos recursos de contra-ordenação de decisões da CNPD].
Porém, com a Lei nº 58/2019, no seu art. 34º, este paradigma de atribuir a competência para a apreciação dos recursos contra-ordenacionais como o aqui em causa aos tribunais da jurisdição comum terá sofrido uma alteração.
É o que se afigura resultar do disposto no nº 1 do art. 34º que abrange na qualificação como “ações” o recurso de impugnação judicial das decisões de natureza contra-ordenacional da CNDP, regulado nos termos dos artigos 59º e seguintes do DL nº 433/82, apesar de, verdadeiramente, tal recurso não ser instaurado “contra” a CNDP, que nele não é uma verdadeira parte.
Esta terminologia resultará do disposto nos artigos 78º e 79º do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27.04.2016, onde, indistintamente, se faz referência ao “direito à ação judicial” e ao “recurso”, como formas processuais similares admissíveis – referindo-se que “todas as pessoas singulares ou coletivas têm direito à ação judicial contra as decisões juridicamente vinculativas das autoridades de controlo que lhes digam respeito.”; e que “os recursos contra as autoridades de controlo são interpostos nos tribunais do Estado-Membro em cujo território se encontrem estabelecidas.
Assim, tal terminologia não constitui impedimento a que deva concluir-se que o legislador pretendeu inequivocamente, atribuir aos tribunais administrativos a competência material quer para as acções interpostas contra a CNPD, quer para os recursos de impugnação das respectivas decisões contra-ordenacionais. Aliás, se essa intenção não foi declarada expressamente na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 120/XIII/3ª, que conduziu à aprovação da Lei nº 58/2019, revela-se da consulta dos trabalhos parlamentares, verificando-se que, nomeadamente, a CNDP propôs que se excepcionasse do nº 2 do art. 34º as “ações de impugnação das deliberações sancionatórias, cuja competência jurisdicional se afere nos termos da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto”.
Ora, o legislador manteve a redacção do art. 34º que constava da proposta de lei.
Assim, tendo em atenção o disposto no art. 9º do Código Civil, sendo de reconstituir o pensamento legislativo a partir dos textos parlamentares, tendo em conta as circunstâncias em que a lei foi elaborada, e que o legislador não desconhecia as consequências da redacção que contemplou naquele artigo 34º – a de atribuir aos tribunais administrativos a competência em matéria de recursos contra-ordenacionais das deliberações sancionatórias da CNPD -, sendo de presumir que consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, é de concluir que pretendeu, efectivamente, atribuir aos tribunais administrativos a competência material não só para as acções interpostas contra a CNPD, como igualmente para a apreciação de recursos de impugnação de decisões de aplicação de coimas proferidas pela mesma.
É certo que tal competência não resulta expressamente prevista no art. 4º, nº 1 do ETAF, nas suas diversas alíneas (estando essa competência contra-ordenacional já comtemplada quanto a impugnações em contra-ordenações respeitantes a matéria de urbanismo – 1ª parte da alínea l), daquele nº 1, do art. 4º).
No entanto, como referem Mário Aroso de Almeida e C.A. Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, 4ª ed., «O âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é identificado, no artigo 212.º, n.º 3 da CRP, por referência aos meios processuais que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes de relação jurídicas administrativas e fiscais.» (pág. 17). E que «A matéria da delimitação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é regulada pelo ETAF no seu artigo 4.º. Na ausência de determinação expressa em sentido diferente, contida em lei avulsa, valem pois, nessa matéria, os critérios estabelecidos no artigo 4.º do ETAF. A verdade, porém, é que o regime decorrente deste artigo é objeto de múltiplas derrogações resultantes de legislação especial.» [estando os Autores a referir-se a desvios ao regime do artigo 4º que devendo pertencer à jurisdição administrativa e fiscal dela foram afastadas, nomeadamente, a impugnação judicial de decisões de aplicação de coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social (sendo que com a alteração introduzida pelo DL nº 214-G/2015, a alínea l) do art. 4º, nº 1, introduziu no âmbito da jurisdição administrativa o ilícito de mera ordenação social “por violação de normas de direito administrativo em direito de urbanismo”)] – cfr. págs. 19 e 20.
Referindo-se às autoridades reguladoras independentes admitem os Autores que «… a determinação da competência contenciosa para conhecer dos litígios que a sua atividade possa gerar suscita outro tipo de dificuldades». «Dentro deste enquadramento geral, a determinação da competência contenciosa em relação a atos administrativos praticados por essas entidades carece de ser analisada casuisticamente em função do estabelecido no respetivo estatuto orgânico, quer por via do regime jurídico que se estiver definido para o seu funcionamento, quer por efeito de regras de competência que se encontrem expressamente previstas.» - págs. 25 e 26.
Ora, encontrando-se expressamente prevista no art. 34º, nºs 1 e 2 da Lei nº 58/2019 a competência material dos tribunais administrativos para impugnação de todas as decisões da CNPD, incluindo as de natureza contra-ordenacional, há que ter em conta essa atribuição expressa de competência, independentemente de a mesma não ter sido contemplada na enumeração constante do art. 4º, nº 1 do ETAF (cfr. neste sentido o recente acórdão deste Tribunal dos Conflitos sobre esta matéria, de 14.07.2022, Proc. nº 013/22).

Pelo exposto, acordam em julgar que a competência para a referida impugnação judicial cabe aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, concretamente ao TAC de Lisboa – Juízo Administrativo Comum.
Sem custas.

Lisboa, 5 de Julho de 2023. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.