Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:016/20
Data do Acordão:11/03/2020
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:PRÉ-CONFLITO
RESPONSABILIDADE CIVIL
FUNDO DE RESOLUÇÃO
Sumário:I - A competência da jurisdição administrativa prevista no n.º 2 do art.º 4.º do ETAF tem como pressuposto que se esteja perante litígios “nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade”.
II - Incumbe aos tribunais judiciais o julgamento de uma acção instaurada por um depositante em banco intervencionado, contra tal banco, o seu gestor de conta, o banco de transição e o Fundo de Resolução, sendo pedida a condenação solidária de todos os Réus, em que sejam imputados aos dois primeiros a violação de deveres inerentes ao exercício da actividade bancária ou à mediação de títulos mobiliários, e em que o banco de transição é demandado por se lhe imputar a qualidade de sucessor do banco intervencionado e o Fundo de Resolução apenas na qualidade de titular do capital do banco de transição.
III - Porém, compete à jurisdição administrativa o conhecimento do mesmo pedido, enquanto formulado contra o Banco de Portugal e a CMVM por alegado incumprimento dos deveres de supervisão e de vigilância.
Nº Convencional:JSTA000P26666
Nº do Documento:SAC20201103016
Data de Entrada:07/02/2020
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA – JUÍZO CENTRAL CÍVEL - LISBOA - JUIZ 16 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
RECORRENTE: A…………….. E OUTROS
RECORRIDO: D………………, S.A. E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: CONFLITO N.º 16/20


ACORDAM NO TRIBUNAL DOS CONFLITOS:

1. A………………, B……………….. e C……………., todas residentes em Joanesburgo, República da África do Sul, intentaram, na Instância Central Cível da Comarca de Lisboa, contra o D…………, SA, Banco de Portugal, E……….., SA, Fundo de Resolução, CMVM – Comissão de Mercado de Valores Mobiliários e F……….., acção de condenação com processo comum, pedindo a condenação solidária dos RR. no pagamento da quantia de € 2.448.533,00, acrescida dos juros vencidos no montante de € 491.879,64 (“calculados desde a data da utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias das AA.”) e dos juros vincendos, “calculados desde a data da citação até integral pagamento”. A título subsidiário, pediram a declaração de nulidade do contrato de intermediação financeira, por inobservância da forma exigida, com a consequente condenação solidária dos RR. a restituírem-lhes a quantia de € 2.448.533,00, acrescida dos juros vencidos no montante de € 491.879,64 (“calculados desde a data da utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias das AA”) e dos juros vincendos “calculados desde a data da citação até integral pagamento”.

Foi proferido saneador-sentença, onde se decidiu declarar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide quanto ao R. “D………….. – Em Liquidação”, julgar procedente a excepção da incompetência do tribunal em razão da matéria quanto aos RR. “CMVM – Comissão de Mercado de Valores Mobiliários”, “Fundo de Resolução” e “Banco de Portugal”, absolvendo-os da instância e julgar a acção totalmente improcedente quanto aos RR. “E…………, SA” e F……………., absolvendo-os dos pedidos formulados.

Desta decisão, as AA. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 7/6/2018, lhe negou provimento, confirmando a decisão impugnada “em todas as suas vertentes”.

Deste acórdão, as AA. interpuseram recurso de revista excepcional para o STJ.

O Sr. Conselheiro Relator, por despacho de 5/5/2020, determinou, ao abrigo do art.º 101.º, n.º 2, do CPC, que o requerimento de recurso para o STJ fosse convolado em requerimento recursivo para o Tribunal dos Conflitos.

A Digna Magistrada do MP junto deste Tribunal dos Conflitos emitiu parecer, onde, perfilhando a jurisprudência deste Tribunal, concluiu que o acórdão recorrido deveria ser confirmado na parte em que se julgou incompetente para a apreciação dos pedidos formulados contra os RR. Banco de Portugal e CMVM e revogado na parte em que considerou competentes os tribunais da jurisdição administrativa para a apreciação do pedido formulado contra o Fundo de Resolução.


2. O acórdão recorrido, confirmando a decisão de 1.ª instância, entendeu que cabia aos tribunais da jurisdição administrativa, e não aos tribunais judiciais, a competência para conhecer da acção quanto aos RR. CMVM, Banco de Portugal e Fundo de Resolução, atento ao disposto no art.º 4.º, n.º 1, al. f), do ETAF e ao facto de se estar perante pessoas colectivas de direito público.
Sendo esta a decisão impugnada pelas AA. no presente recurso interposto para este tribunal, é apenas sobre ela que nos iremos pronunciar, seguindo aquela que tem sido a orientação jurisprudencial deste Tribunal dos Conflitos, reiterada em numerosos acórdãos (cf., v.g., além dos que à frente serão citados, os Acs. de 23/3/2018 – Conflitos nºs. 056/17 e 050/17, o de 8/11/2018 – Conflito n.º 020/18, o de 13/12/2018 – Conflito n.º 033/18 e os de 14/2/2019 – Conflitos nºs. 031/18 e 046/18), designadamente no proferido em 6/2/2020, no Conflito n.º 022/19, que, para decidir um caso em tudo idêntico ao dos presentes autos, referiu:
“(…).
Percorrendo a petição inicial verifica-se (pedido principal) que o Autor fez fundar a sua pretensão indemnizatória contra os Réus D…………, SA, E…………., SA e F………….. em factos que diz integrarem uma violação de deveres pré-contratuais inerentes à relação bancária que vinha vigorando entre o Autor e o primeiro desses Réus, e ainda na assunção da obrigação de reembolso por parte do segundo desses Réus.
No que respeita ao Réu Fundo de Resolução, a razão da sua responsabilização vem exclusivamente fundada na circunstância de ser o detentor do capital social do E………….., SA.
Relativamente ao Réu Banco de Portugal a pretensão do Autor vem fundada em factos que o Autor diz integrarem uma violação de deveres de supervisão, numa garantia de solvência, estabilidade e segurança do D…………., SA e numa assunção da obrigação de reembolso.
Finalmente no que respeita à Ré Comissão de Mercado de Valores Mobiliários consegue-se perceber que a respetiva responsabilização é feita fundar na violação de deveres de supervisão.
No que tange ao pedido subsidiário de declaração de nulidade (que, face ao que se lê dos artigos 112.º e 113.º da petição, parece vir dirigido apenas contra o 1.º Réu e a 6.ª Ré), funda-se o mesmo na alegada circunstância subjacente à aplicação dos capitais em causa não ter existido um contrato celebrado por escrito.
Ora, perante o objeto da causa assim delineado, resulta que a jurisdição competente para apreciar a pretensão do Autor contra os Réus Banco de Portugal e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários é a administrativa e fiscal. Estes Réus são pessoas coletivas de direito público – como resulta do art.º 1.º da Lei Orgânica do primeiro (Lei n.º 5/98, de 31 de janeiro, sucessivamente alterada), e do art.º 3.º, n.º 1 do regime anexo à Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto, lei-quadro das entidades reguladoras) e dos Estatutos (DL n.º 5/2015, de 8 de janeiro) da segunda – e a responsabilidade extracontratual que lhes vem imputada emerge, direta e imediatamente, do exercício das suas atribuições legais de prossecução do interesse público, regulada por normas de direito administrativo, atributivas de prerrogativas de autoridade. Ou seja, nesta parte estamos claramente perante um litígio emergente de uma relação jurídica de natureza administrativa.
Parafraseando, a propósito, o que se lê do acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 14 de fevereiro de 2019 (processo n.º 46/18 disponível em www.dgsi.pt), que incidiu sobre caso igual ao vertente, podemos dizer que “relativamente às entidades públicas BdP e CMVM, dada a configuração da acção feita pelo A., suscita-se, claramente, a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público, radicando os danos que, alegadamente, o mesmo sofreu e que fundam os direitos que pretende exercer (…) em actos cometidos no exercício de funções públicas ou na prossecução de um interesse público, uma vez que, sem a invocação de qualquer relação contratual com eles estabelecida, se fundamentam na falta de cumprimento de deveres – essencialmente de supervisão – que sobre eles impendiam, tendo em conta as funções determinadas pela lei”.
É certo, entretanto, que o art.º 62.º da Lei Orgânica do Banco de Portugal dispõe que “Sem prejuízo do disposto no artigo 39.º, compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que o Banco seja parte, incluindo as acções para efectivação da responsabilidade civil dos titulares desses órgãos para com o Banco”. E o Recorrente convoca esta norma, pretendendo prevalecer-se da mesma.
Todavia, como se refere no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 14 de fevereiro de 2019 (processo n.º 31/18, disponível em www.dgsi.pt), que incidiu também sobre caso igual ao vertente, é de entender que a dita norma se tem de haver como tacitamente revogada pelo atual Estatuto dos Tribunais Administrativos. Também no acórdão ainda do Tribunal dos Conflitos de 6 de junho de 2019 (processo n.º 41/18, disponível em www.dgsi.pt) se decidiu de forma a recusar a vigência à supra referida norma.
Efetivamente, esse Estatuto veio dispor, sem restrições, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal apreciar os litígios que tenham por objeto questões relativas à responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público. E é sabido que foi objetivo do legislador, tal como decorrente da exposição de motivos da proposta de lei que esteve na base da Lei n.º 13/2002, regular de forma diferente a matéria, suprimir os regimes especiais e prevenir conflitos de jurisdição.
No que respeita à competência para apreciar a pretensão dirigida contra o Réu Fundo de Resolução, que é também uma pessoa coletiva de direito público (art.º 153.º-B do RGICSF e art.º 2.º, n.º 1 do respetivo Regulamento, aprovado pela Portaria n.º 420/2012, de 21 de janeiro), já a definição da competência será porventura menos linear.
Contudo, desde que é certo que este Réu vem demandado unicamente enquanto detentor do capital social do E…………., S.A., cremos que é de seguir a orientação reiteradamente assumida na jurisprudência deste Tribunal em casos similares ao presente. E essa orientação vai no sentido de que a competência recai sobre os tribunais judiciais, como se pode retirar dos acórdãos de 22/03/2018 (proc. n-º 056/17), de 22/03/2018 (proc. n.º 050/17), de 17/05/2018 (proc. n.º 052/17), de 7/06/2018 (proc. n.º 061/17), de 8/11/2018 (proc. n.º 020/18), de 13/12/2018 (proc. n.º 033/18), de 19/06/2019 (proc. n.º 05/19) e de 19/06/2019 (proc. n.º 05/19), todos acessíveis em www.dgsi.pt. Não pode deixar de ser mantido este entendimento, tendo presente, além do mais, o disposto no n.º 3, do art.º 8.º do Código Civil.
(…)”.
Nestes termos, deve o acórdão recorrido ser revogado na parte em que considera competentes os tribunais da jurisdição administrativa para conhecerem o pedido formulado contra o Fundo de Resolução e confirmado na parte em que julga procedente a excepção da incompetência material quanto aos RR. CMVM e Banco de Portugal.

3. Pelo exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, decidindo:
a) Revogar o acórdão recorrido na parte em que absolveu da instância o R. Fundo de Resolução, declarando-se a competência dos tribunais judiciais para o conhecimento dos pedidos contra este formulados;
b) Confirmar o acórdão recorrido na parte em que absolveu da instância os RR. Banco de Portugal e CMVM – Comissão do Mercado de Valores Mobiliários por serem os tribunais administrativos os competentes para a apreciação dos pedidos contra estes formulados.
Sem custas.


Lisboa, 3 de Novembro de 2020

O Relator consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A, do DL n.º 10-A/2020, de 13-03, aditado pelo art.º 3.º, do DL n.º 20/2020, de 1-05, têm voto de conformidade com o presente acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, Conselheiros Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado, Maria Benedita Malaquias Pires Urbano, Maria Rosa Oliveira Tching, José Augusto Araújo Veloso e Joaquim António Chambel Mourisco.

Fonseca da Paz