Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:026/20
Data do Acordão:04/06/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO.
DIREITO DE PROPRIEDADE.
TRIBUNAIS JUDICIAIS.
Sumário:A competência para conhecer de acção em que a pretensão principal que os AA. enunciam visa o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio misto identificado, “como únicos e exclusivos donos”, e a consequente declaração de nulidade do registo a favor de um terceiro, cabe na esfera dos Tribunais Judiciais.
Nº Convencional:JSTA000P29205
Nº do Documento:SAC20220406026
Data de Entrada:10/29/2020
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DO MONTIJO 3º JUÍZO E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE ALMADA UO1
AUTOR: A………... E OUTRA
RÉU: …………, SA E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 26/20

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A............ e C…………, identificados nos autos, intentaram no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada (TAF de Almada), acção administrativa comum de reconhecimento de direitos contra o Banco …………, SA, D…………, Unipessoal, Lda, E…………, Fazenda Nacional - DGCI e Conservador(a) da Conservatória do Registo Predial do Montijo, formulando os seguintes pedidos:
“a) Reconhecer o direito de propriedade dos AA., como únicos e exclusivos donos do prédio supra identificado;
b) Declarar nulo o registo e a propriedade do R. B............ em relação ao princípio da prioridade do registo de propriedade dos ora AA., reconhecendo-os como terceiros de boa fé, tanto para efeitos do negócio jurídico como para efeitos registais, do prédio misto supra descrito, e que desconheciam quaisquer ónus ou encargos que impendiam sobre o imóvel, devendo ser nulo o registo a favor do R. B…………;
c) Todos os RR. serem condenados a indemnizar os AA., pelos prejuízos causados e pelos prejuízos que se venham a verificar (…) em quantia a liquidar em execução de sentença;
d) Serem os RR. condenados em custas, procuradoria e demais legal (…)”.
Em síntese, os AA alegam terem adquirido o prédio identificado por negócio a título oneroso, titulado por escritura pública, e que sobre o referido prédio foi efectuado um registo de hipoteca e, posteriormente, um registo de penhora a favor do R B…………, que o veio a adjudicar em processo de execução fiscal. Argumentam que a circunstância de o prédio estar no sistema de registo duplamente descrito pela via da abertura de nova descrição (duplicação originária) levou a que no momento da aquisição os AA não conhecessem a existência de um encargo (hipoteca) sobre o dito prédio e que, “pelo princípio da prioridade do registo procederam ao registo da sua aquisição anteriormente ao registo da penhora por parte do R B…………, SA., mas ainda que assim não fosse, nem por isso, a penhora prevaleceria sobre a aquisição, pois desconheciam os ora AA, sem culpa sua, o vício que constitui o fundamento e a base legal da nulidade (…) do registo de venda do prédio (…) por venda judicial adjudicado ao ora Réu B………… em execução fiscal (…)”, reconhecendo-se assim a sua boa fé como terceiros adquirentes.
Os RR contestaram e, além do mais, o R B…………, SA apresentou pedido reconvencional e o Ministério Público, citado em representação da Fazenda Nacional – DGCI, arguiu a incompetência material do Tribunal.
O TAF de Almada, por sentença de 10.03.2020, decidiu julgar verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria considerando que “da análise da petição inicial (…) o que os Autores pretendem é a tutela judicial do direito de propriedade, isto é, o reconhecimento de uma relação do domínio privado, invocando uma alegada duplicação de descrições prediais e consequente incompatibilidade de situações tabulares. A tutela judicial do direito de propriedade não se insere no âmbito do conceito de relação jurídica administrativa, sendo certo que são matérias de direito privado as de saber se o direito real invocado pelos Autores existe e é oponível ao réu Banco …………, S.A.. Não está, pois, aqui em causa, de forma direta e imediata, qualquer relação de natureza administrativa, pelo que se mostra excluída a competência da jurisdição administrativa para apreciar o pedido (principal) formulado pelos Autores e, bem assim, os demais pedidos, consequentes ou acessórios daquele”.
Em acção anteriormente intentada no Tribunal Judicial do Montijo [Proc. n.º 2915/11.1TBMTJ], com as mesmas partes e idêntica no seu objecto, pedido e causa de pedir, foi proferida sentença em 08.08.2013 a julgar aquele tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer da acção. Entendeu o Tribunal Judicial do Montijo que “está em causa a responsabilização quer de funcionário público por danos alegadamente provocados no exercício da sua actividade profissional ao serviço de uma pessoa colectiva de direito público, quer de uma pessoa colectiva de direito público”.
Suscitada oficiosamente, no TAF de Almada, a resolução do conflito, foram os autos remetidos ao Tribunal dos Conflitos.
Já neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º. da Lei n.º 91/2019 e nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência material para julgar a acção deverá ser atribuída aos tribunais da jurisdição comum.
2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial do Montijo e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211º, nº 1, da CRP). Disposição esta que, à data da propositura da acção, era reproduzida no art. 18º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro) e, actualmente, no art. 40º, nº 1, da LOSJ.
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo nº 3 do art. 212º da CRP, em que se estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data de propositura da acção é a que aqui releva, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro) replicava no art. 1º, nº 1, essa genérica previsão que era concretizada no art. 4º, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nº 1) e negativa (nºs 2 e 3).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 1.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Analisados os termos e teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio regulado por normas de direito privado. Com efeito, a pretensão principal que os AA. enunciam na presente acção visa o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio misto identificado, “como únicos e exclusivos donos”, e a consequente declaração de nulidade do registo a favor do B………….
Não estamos, portanto, perante um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa por a questão não envolver uma qualquer actuação ou conduta que resulte disciplinada ou regida por normas de direito administrativo ou fiscal. Estão aqui em causa questões de direito privado, direito de propriedade e registo predial, sendo certo que “O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário” (art. 1º do Código do Registo Predial).
Ora, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc.º 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19, de 02.03.2021, Proc. 062/19 e de 02.12.2021, Proc. 03802/20.8T8GMR.G1.S1, todos consultáveis in www.dgsi.pt).
A apreciação do pedido indemnizatório mostra-se dependente do que vier a ser decidido quanto ao pedido principal, trata-se pois de um pedido que, na economia da acção não tem autonomia, “sendo uma mera decorrência da pretensa violação do direito de propriedade e que, por isso, não relevam para a determinação da competência material do tribunal” (cfr. Ac. Tribunal dos Conflitos de 23.01.2020, Proc. 041/19 e jurisprudência nele citada).
Deste modo, a competência material para conhecer a presente acção cabe aos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca do Montijo [Juízo Local Cível do Montijo].

Sem custas.

Lisboa, 6 de Abril de 2022. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.