Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01064/18.6BEBRG-A.S1
Data do Acordão:05/05/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Sumário:É da competência da Jurisdição Administrativa e Fiscal a apreciação de uma acção proposta contra um Município na qual o autor, invocando a celebração de contratos emprego – inserção + e o seu despedimento ilícito, pede a condenação do réu na sua reintegração, no pagamento das retribuições que deixou de auferir e de uma indemnização por danos não patrimoniais, por violação do direito à ocupação efectiva.
Nº Convencional:JSTA000P27631
Nº do Documento:SAC2021050501064
Recorrente:TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA - UNIDADE ORGÂNICA 1
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE BRAGA -JUÍZO DO TRABALHO DE BARCELOS-JUIZ 1
Recorrido 1:A...................
Recorrido 2:BARCELOS - MUNICÍPIO
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: TRIBUNAL DOS CONFLITOS

Acordam, no Tribunal dos Conflitos:


1. AA instaurou contra o Município de Barcelos, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, uma «ação administrativa de condenação à prática de atos administrativos devidos, nos termos da lei ou de vínculo contratualmente assumido», pedindo que fosse declarado ilícito o seu despedimento (artigo 38.º do Código do Trabalho) e que o réu fosse condenado na sua reintegração (artigo 389.º do Código do Trabalho), no pagamento das “retribuições que deixou de auferir desde Fevereiro de 2017 até ao trânsito em julgado da sentença” (n.º 1 do artigo 390.º do Código do Trabalho), sem prejuízo do disposto no art. 98.º-N, n.ºs 1 a 3, do CPT, que neste momento computa no valor de 7 322,00€” e de uma indemnização de € 3 000,00 por danos não patrimoniais, por violação do direito à ocupação efectiva (al. b) do n.º 1 do artigo 129.º do Código do Trabalho).

Para o efeito, e em síntese, alegou ter celebrado com o réu, em 31 de Agosto de 2015 e em 31 de Janeiro de 2017 (docs. 1 e 2 juntos com a petição inicial), dois contratos de emprego-inserção +, “no âmbito da medida contrato Emprego – inserção +, cujos destinatários são os desempregados beneficiários do rendimento social de inserção e outros desempregados elegíveis”, “para prestar trabalho socialmente necessário na área de limpeza e conservação dos espaços públicos”; ter recebido uma comunicação do réu, datada de 8 de Fevereiro de 2017, a fazer cessar o contrato, invocando a al. b) do n.º 4 da cláusula 7.ª (“faltar injustificadamente durante cinco dias consecutivos ou dias interpolados”); mas nunca ter faltado injustificadamente, limitando-se a aguardar indicações em casa, conforme lhe ordenou o réu.

O réu contestou. Por entre o mais, veio dizer que “os ‘Contratos emprego-inserção +’ criados pela Portaria 128/2009, de 30 de Janeiro, nunca poderiam criar uma relação de trabalho e muito menos de emprego público”.

O autor replicou.

Findos os articulados, por decisão de 23 de Outubro de 2019 o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga julgou-se materialmente incompetente e absolveu o réu da instância, por entender que resulta da análise do pedido e da causa de pedir que o autor estruturou “o presente litígio como emergente de uma relação laboral entre si e o réu Município, configurando a actuação deste como um ‘despedimento ilícito’ e peticionando a sua reintegração, o pagamento das ‘retribuições que deixou de auferir’ e dos danos morais daí resultantes”, cabendo aos tribunais judiciais a respectiva apreciação. Invocou ainda a jurisprudência do Tribunal dos Conflitos que atribuiu aos tribunais judiciais a competência para conhecer de pedidos de reparação causados por acidentes ocorridos no âmbito de contratos como os que aqui estão em causa.

Na sequência de requerimento do autor, em 3 de Dezembro de 2019, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga proferiu despacho a remeter o processo ao Juízo do Trabalho de Barcelos.

Este Tribunal (Juiz …), todavia, por decisão de 16 de Dezembro de 2019, julgou-se absolutamente incompetente para conhecer da presente ação e absolveu da instância o réu Município de Barcelos.

Para tanto, sustentou, em suma, que o contrato celebrado entre as partes não é fonte de qualquer relação jurídico-laboral ou de emprego, concretizando que “O que há é – salvo sempre o devido respeito por melhor entendimento – uma relação contratual que não é subsumível a uma relação laboral (seja de emprego público ou privado) e, nessa medida, a competência para a sua apreciação cabe na competência residual da jurisdição cível”.

Inconformado, o autor apelou para a Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães, que, defendendo que “o "trabalho socialmente necessário" tem um enquadramento jurídico próprio, no âmbito da protecção social no desemprego, que nada tem a ver com o estabelecido no Código do Trabalho para o contrato de trabalho ou equiparado”, por acórdão de 25 de Junho de 2020 confirmou a decisão do Juízo do Trabalho de Barcelos – Juiz 1.

Este acórdão veio todavia a ser revogado pelo acórdão de 16 de Dezembro de 2020 do Supremo Tribunal de Justiça, disponível em www.dgsi.pt, que julgou que o litígio dos autos se insere na competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, sendo os tribunais judiciais materialmente incompetentes. Consequentemente, absolveu o réu da instância, nos termos do n.º 1 do artigo 99.º do Código de Processo Civil, e considerou prejudicada a questão de saber se, dentro dos tribunais judiciais, a causa se incluía na competência dos tribunais cíveis ou dos tribunais de trabalho.

Em breve síntese, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que «os contratos de “emprego inserção” e de “emprego-inserção +” disciplinados na Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro, titulam as relações jurídicas entre a entidade promotora – no caso dos autos o Município Réu – e o trabalhador e enquadram a prestação de trabalho levada a cabo, com a definição do complexo de direitos e obrigações das partes.

(…) É líquido que o regime de cessação do contrato de trabalho emergente dos artigos 338.º e ss. do Código de Trabalho nada tem a ver com estes contratos, o que é questão completamente diversa do enquadramento jurídico do acidente de trabalho ocorrido na sua execução, matéria a que se refere o acórdão dos Tribunal dos Conflitos proferido no referido processo n.º 015/17, de 19 de outubro de 2017, e outra jurisprudência daquele Tribunal invocada nos autos. O que se torna evidente é que os contratos em causa, face ao regime que resulta da mencionada Portaria e dos regulamentos emitidos pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional, nos termos do seu artigo 17.º, titulam relações jurídicas enquadradas pelo Direito Administrativo, que por tal motivo devem ser consideradas como relações jurídicas administrativas, o que implica que os litígios emergentes dos mesmos se insiram no âmbito da competência dos Tribunais Administrativos, tal como já resultava do acórdão desta Secção de 14 de novembro de 2001, no que se refere aos acordos de atividade ocupacional».

2. O Juiz .. Juízo do Trabalho de Barcelos suscitou junto do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça a resolução do conflito negativo de jurisdição.

Determinado pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que se seguisse a tramitação prevista na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos), o Ministério Público proferiu parecer, nos termos do n.º 4 do respectivo artigo 11.º, no sentido de caber à jurisdição administrativa a apreciação da acção, concretamente ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

3. Os factos relevantes para a decisão do conflito constam do relatório.

Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido do autor, se os tribunais judiciais – nos quais se integram os tribunais do trabalho e que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Como este Tribunal tem repetidamente recordado, esta forma de delimitação obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. b) do nº 1 deste artigo 4º, cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal” julgar os litígios relativos aos actos da Administração Pública praticados “ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.

Merece especial referência o n.º 4 deste artigo 4.º, cuja al. b) exclui da competência dos tribunais administrativos “a apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público”, “com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”, excepção que está em consonância com a atribuição aos tribunais administrativos e fiscais da competência para apreciar “os litígios emergentes do vínculo de emprego público”, resultante do artigo 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho.

Cumpre todavia ter em consideração que a prestação de trabalho subordinado, como é a que é prestada no âmbito dos contratos de emprego-inserção ou de emprego-inserção +, não implica, nem que se entenda tratar-se de um contrato de trabalho de direito privado, nem que se conclua pela constituição de uma relação de emprego-público, nas modalidades previstas no artigo 6.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas; na verdade, pode tratar-se ainda de uma relação (neste sentido) atípica, havendo então que determinar se o litígio desencadeado se verifica (ou não) no âmbito de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), enunciadas no artigo 4.º do mesmo Estatuto.

Em qualquer dos casos, aferindo-se a competência pela lei vigente à data da propositura da acção, 19 de Abril de 2018 (na réplica, o autor sustentou que a acção se deve considerar proposta anteriormente, ao responder à excepção de prescrição suscitada pelo réu; mas essa questão respeita ao mérito da causa e, portanto, não pode aqui ser considerada), na falta de disposições de direito transitório aplicáveis, é por referência às versões da Lei da Organização do Sistema Judiciário e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais então em vigor que se determina a que jurisdição compete o respectivo julgamento (cfr. artigos 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 38.º, n.º 2, da Lei de Organização do Sistema Judiciário; recorda-se que a Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, que alterou os artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo).

Como uniformemente se tem observado, nomeadamente na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção).

Significa esta forma de aferição da competência, como por exemplo se observou no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 20/18, que “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…».”.

A mesma orientação se retira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, ww.dgsi.pt, processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1: “Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes, quer do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes”.

4. No caso dos autos, a relação invocada traduz-se na celebração de dois contratos denominados "Contrato Emprego-lnserção+", contratos esses que foram celebrados no âmbito da Medida Contrato Emprego-lnserção+, destinada a desempregados beneficiários do Rendimento Social de Inserção e outros desempregados, nos termos da Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro, regulamentada pelo Despacho n.º 1573-A/2014, de 30 de Janeiro, do Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14/11/2001, www.dgsi.pt, processo n.º 01S888, proferido numa ação cujo objecto respeitava ao invocado “despedimento ilícito” de dois trabalhadores que se encontravam a coberto de um "acordo de atividade ocupacional'', regulado pela Portaria nº 192/96, de 30 de Maio, pronunciou-se nos seguintes termos:

Conclui-se, assim, que, através do "acordo de actividade ocupacional" a que se reporta o n.º 6.º da citada Portaria n.º 192/96, o trabalhador não coloca a sua força de trabalho à disposição da respectiva entidade promotora, nem esta adquire o poder de dispor da força de trabalho desse trabalhador, mediante o pagamento de uma retribuição, pelo que tal acordo não pode ser qualificado juridicamente como um contrato de trabalho, o qual pressupõe que o trabalhador coloque a sua força de trabalho à disposição da entidade patronal, adquirindo esta o poder de dispor da força de trabalho daquele, mediante o pagamento de uma retribuição. Por outro lado, atendendo aos objectivos que os programas ocupacionais visam prosseguir, verifica-se que, ao contrário do que sucede no contrato de trabalho, a sua celebração não tem subjacente o interesse de ambas as partes —os trabalhadores destinatários daqueles programas e as entidades promotoras –, sendo antes aqueles acordos celebrados apenas no interesse daqueles trabalhadores e em benefício da colectividade.

Não tendo tais acordos a natureza jurídica de um contrato de trabalho, os tribunais do trabalho são materialmente incompetentes para conhecer dos litígios deles emergentes. Tal competência pertence à jurisdição administrativa, como se defende no parecer do Ministério Público, pois a pretensão dos autores insere-se, como se viu, no âmbito do sistema de segurança social, maxime no âmbito da acção social.

A Portaria n.º 192/96 foi revogada pela Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro, que regulamenta as medidas «Contrato emprego-inserção» e «Contrato emprego-inserção+», através das quais é desenvolvido trabalho socialmente necessário.

Esclarece-se no preâmbulo da Portaria n.º 128/2009 que “O contrato emprego-inserção e o contrato emprego-inserção+ integram-se no conjunto destas medidas, considerando que, ao permitirem aos desempregados o exercício de actividades socialmente úteis, promovem a melhoria das suas competências sócio-profissionais e o contacto com o mercado de trabalho. A experiência havida ao longo dos anos permite verificar o impacte positivo dos apoios públicos ao desenvolvimento de trabalho socialmente necessário por parte de desempregados, enquanto estes aguardam por uma alternativa de emprego ou de formação profissional.”.

Nos termos do artigo 2.º da Portaria n.º 128/2009 (alterada e republicada pela Portaria n.º 20-B/2014, de 30 de Janeiro, que entrou em vigor no dia 31 de Janeiro de 2014), “Considera-se trabalho socialmente necessário a realização, por desempregados inscritos no Instituto do Emprego e da Formação Profissional, I. P. (IEFP, I. P.), de atividades que satisfaçam necessidades sociais ou coletivas temporárias”.

Segundo o artigo 3.º, são objectivos do trabalho socialmente necessário:

a) Promover a empregabilidade de pessoas em situação de desemprego, preservando e melhorando as suas competências socioprofissionais, através da manutenção do contacto com o mercado de trabalho;

b) Fomentar o contacto dos desempregados com outros trabalhadores e atividades, evitando o risco do seu isolamento, desmotivação e marginalização;

c) A satisfação de necessidades sociais ou coletivas, em particular ao nível local ou regional.”.

Tais contratos cessam (artigo 11.º) nos seguintes termos:

1 - O contrato cessa no termo do prazo ou da sua renovação, bem como quando o beneficiário:

a) Obtenha emprego ou inicie, através do IEFP, I. P., ou de qualquer outra entidade, ação de formação profissional;

b) Recuse, injustificadamente, emprego conveniente ou ação de formação profissional;

c) Perca o direito às prestações de desemprego;

d) Perca o direito às prestações de rendimento social de inserção, salvo o disposto no artigo 22.º-A da Lei n.º 13/2003, de 21 de maio, alterada e republicada pelo Decreto-Lei n.º 133/2012, de 27 de junho, nomeadamente nas situações de alteração de rendimentos decorrente da atribuição da bolsa mensal prevista no n.º 3 do artigo 13.º do presente diploma;

e) Passe à situação de reforma.

2 - A entidade pode proceder à resolução do contrato se o beneficiário:

a) Utilizar meios fraudulentos nas suas relações com aquela ou com o IEFP, I. P.;

b) Faltar injustificadamente durante cinco dias consecutivos ou interpolados;

c) Faltar justificadamente durante 15 dias consecutivos ou interpolados;

d) Desobedecer às instruções sobre o exercício de trabalho socialmente necessário, provocar conflitos repetidos ou não cumprir as regras e instruções de segurança e saúde no trabalho.

3 - A entidade deve ainda proceder à resolução do contrato se o beneficiário não cumprir o regime de faltas das ações de formação nele previstas.

(…)”

5. Colocando-se numa perspectiva não totalmente coincidente com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Novembro de 2001, atrás citado, quanto às relações entre o trabalhador e a entidade promotora do contrato, mas concluindo igualmente que não se trata de um contrato de trabalho privado, mas antes de um contrato que se insere no âmbito da segurança social, o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 19 de Outubro de 2017, www.dgsi.pt, proc. n.º 015/17, veio julgar que a competência para julgar acidentes sofridos pelo trabalhador cabia aos tribunais judiciais, apesar de “a relação que liga o trabalhador sinistrado ao Município” então em causa ter “elementos de natureza administrativa”:

As medidas disciplinadas na Portaria n.º 128/2009, de 30 de janeiro, enquadram-se no direito constitucional à Segurança Social, com assento no artigo 63.º da Constituição da República, sendo medidas de política ativa de emprego e são complementares aos instrumentos de proteção social, no caso o Rendimento Social de Inserção, realizando os objetivos definidos no artigo 3.º daquela Portaria (…).

5 - De acordo com os elementos decorrentes do processo, o sinistrado quando se encontrava no exercício das suas funções, ao descer de um andaime, torceu o pé esquerdo, do que resultaram as lesões clínicas igualmente documentadas nos autos que produziram incapacidade para o trabalho, não decorrendo dos autos quais são as consequências definitivas das mesmas.

As funções em causa eram desempenhadas nos termos de um contrato de inserção-emprego+ celebrado com o Município ….. que enquadrava e dirigia o trabalho prestado pelo sinistrado e que assumia a responsabilidade pelo pagamento de parte da contrapartida paga ao sinistrado pelo trabalho desempenhado.

Mau grado o trabalho em causa se insira no âmbito das medidas de inserção que enquadram a situação inerente à atribuição do Rendimento Social de Inserção de que o sinistrado beneficiava, a bolsa que o mesmo auferia não se confunde com a prestação do rendimento social, tendo autonomia face à mesma, sendo uma verdadeira contrapartida do trabalho prestado.

O Município é o destinatário do trabalho em causa, que enquadra e dirige, assumindo igualmente parte da contrapartida devida ao sinistrado pelo trabalho prestado.

Pode o acidente dos autos ser considerado um acidente de trabalho, nos termos da Lei n.º 98/2009, concretamente à luz dos artigos, 3.º que se refere ao âmbito da lei e da noção conceito de acidente de trabalho que resulta dos artigos 8.º e 9.º daquela Lei?

A resposta é claramente afirmativa.

Na verdade, o evento sofrido pelo trabalhador dos autos preenche o conceito de acidente descrito no n.º 1 do artigo 8.º daquela lei que refere que «é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução da capacidade de ganho ou a morte».

Por outro lado, independentemente da natureza da relação estabelecida entre o Município e o Trabalhador, dúvidas não restam de que a situação dos autos se insere no n.º 1 do artigo 3.º da Lei que refere que o «regime previsto na presente lei abrange o trabalhador por conta de outrem de qualquer atividade, seja explorada ou não com fins lucrativos».

No caso dos autos o Município era o destinatário do trabalho prestado e responsável pelo mesmo, pelo que não pode dizer-se que as funções em causa não fossem desempenhadas «por conta» daquele Município.

Mesmo que se considerasse que não existia nos autos uma situação de subordinação relevante, o que não é o caso, o conceito de acidente de trabalho sempre enquadra os acidentes sofridos na execução de trabalhos espontaneamente prestados, conforme decorre da alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º daquela Lei.

Importa contudo que se afirme que não é essencial ao conceito de acidente de trabalho que as tarefas no contexto do qual o acidente ocorre sejam prestadas no âmbito de uma relação de trabalho subordinado, titulada por um contrato de trabalho.

Caracterizado o evento como um acidente nos termos do artigo 8.º da Lei, e enquadrada a situação em cujo âmbito o acidente ocorre, no âmbito do n.º 1 do artigo 3.º daquele diploma, ou seja, que as tarefas executadas o sejam «por conta de outrem» isso, em princípio isso basta para que se possa considerar o acidente como um acidente de trabalho, a abranger pela Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.

(…) 6 - O Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, hoje resultante da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, é parte integrante do regime do contrato de trabalho consagrado no Código do Trabalho.

(…) Apesar de o sinistrado se encontrar ao serviço de uma autarquia local, o sinistro dos autos não pode considerar-se um acidente em serviço, nos termos do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro.

Na verdade, as funções assumidas pelo sinistrado, dada a sua atipicidade, não podem considerar-se «funções públicas», nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 2.º do referido Decreto-lei, uma vez que não se inserem na realização das atribuições do Município.

Por outro lado, a relação de trabalho que ligava o sinistrado ao Município não integra um vínculo de trabalho em funções públicas, tal como ele hoje decorre da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho.

(…) O acidente dos autos não pode pois considerar-se abrangido pelo Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública.

(…) Na verdade, o processo dos acidentes de trabalho, disciplinado nos artigos do 99.º ss. do Código de Processo de Trabalho é um instrumento de natureza processual que visa a garantia do direito à assistência e justa reparação das vítimas de acidentes de trabalho, consagrado no n.º 1, alínea a) do artigo 59.º da Constituição da República.

Mais do que declarar os direitos do trabalhador vítima de acidente de trabalho, o processo foi concebido como instrumento da realização efetiva do direito à reparação das consequências do acidente, objetivo do qual o Estado não se pode dissociar.

(…) No fundo, o que o presente processo visa é a garantia do direito à reparação das consequências de um acidente sofrido por um trabalhador no desempenho das suas funções, ou seja de um normal acidente de trabalho.

O acidente em causa preenche todas as condições para ser considerado como um acidente de trabalho, nos termos da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, e dada a relação do regime destes acidentes com o regime jurídico do contrato de trabalho, por força do disposto no art. 4.º, n.º 4, alínea b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, conforme acima se referiu, a competência para conhecer do presente processo deve ser atribuída aos tribunais judiciais.

Termos em que se decide resolver o presente conflito de jurisdição atribuindo a competência para conhecer do presente processo aos Tribunais Judiciais”.

Esta extensa transcrição explica-se pela circunstância de a jurisprudência do Tribunal dos Conflitos ser constante no sentido de considerar, em matéria de acidentes de trabalho ocorridos no âmbito de contratos de "emprego-inserção +", que a competência para conhecer das respetivas ações cabe aos tribunais do trabalho, como se pode verificar no seu acórdão de 6 de Fevereiro de 2020, www.dgsi.pt, processo n.º 037/19:“No sentido da atribuição da competência em razão da matéria à jurisdição comum em situações que, como já referido, apresentam fortes semelhanças com a que aqui se nos apresenta, estando em causa situações decorrentes da execução de «contratos emprego-inserção+», podem convocar-se também os acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 25-01-2018, proferido no processo 053/17 (Relatora: Cons. Maria Benedita Urbano), de 31-01-2019, proferido no processo 040/18 (Relatora: Cons. Maria João Vaz Tomé), e de 28-02-2019, proferido no processo 042/18 (Relator: Cons. Abrantes Geraldes), todos disponíveis nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt.

Perante esta uniforme e consolidada jurisprudência, aderindo à argumentação aí condensada, há que atribuir a competência material para apreciar a acção ao Juízo do Tribunal do Trabalho de Penafiel da Comarca do Porto-Este.

6. Esta conclusão, coincidente com o entendimento perfilhado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido neste processo, como atrás se referiu, revela o entendimento de que a atribuição aos tribunais do trabalho da competência para conhecer das ações referentes a acidentes de trabalho ocorridos no decurso de contratos de "emprego-inserção +" não assenta no pressuposto de que se está perante uma relação de trabalho subordinado, titulada por um contrato de trabalho privado, não colidindo portanto com o entendimento de que é aos tribunais administrativos que cabe a apreciação dos pedidos formulados pelo autor AA contra o Município de Barcelos.

Com efeito, o litígio em causa na acção, que o autor qualificou expressamente como «ação administrativa de condenação à prática de atos administrativos devidos, nos termos da lei ou de vínculo contratualmente assumido», desenrola-se entre um particular e um Município e deve ser qualificado como um litígio “emergente de relações jurídicas administrativas”, na acepção adoptada pelo artigo 1,º do Estatuto do Tribunais Administrativos e Fiscais e densificada no respectivo artigo 4.º, uma vez que está em causa um contrato disciplinado por normas de Direito Administrativo.

Como escreveu José Carlos Vieira de Andrade, referindo-se à versão aqui aplicável dos referidos preceitos legais (A Justiça Administrativa – Lições, 8ª Edição, Almedina 2006, pág. 49), atribuiu-se aos tribunais administrativos, “nos termos constitucionais, a competência para administrar a justiça «nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas» e concretiz(ou)-se exemplificativamente esse âmbito, em termos positivos e negativos (artigos 1.º e 4.º do ETAF).” A pág. 55 e segs., observou: «A consideração da dimensão substancial revela-se na medida em que a justiça administrativa tem, por determinação constitucional, uma matéria própria: integra os processos “que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas. Esta noção de “relação jurídica administrativa”, para efeitos de delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa, deve abranger a generalidade das relações jurídicas externas ou intersubjectivas de carácter administrativo, seja as que se estabeleçam entre os particulares e os entes administrativos, seja as que ocorram entre sujeitos administrativos”.

Assim se entendeu, por exemplo, no (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Março de 2019, www.dgsi.pt, processo n.º 2468/15.1T8CHV-A.G1.S1): “Do exposto, pode concluir-se, na senda de Gomes Canotilho e Vital Moreira, que para podermos afirmar que estamos ante uma relação jurídica administrativa temos de isolar dois elementos: (i) por um lado, um dos sujeitos há-de ser uma entidade pública ou se for privada deve atuar como se fosse pública; e (ii) por outro lado, os direitos e os deveres que constituem a relação hão-de emergir de normas legais de direito administrativo ou referir-se ao âmbito substancial da própria função administrativa. Será, pois, à luz do conceito de relação administrativa acima delineado que as diversas alíneas do artigo 4.º do ETAF devem ser lidas e interpretadas, posto que, conforme se deixou dito, face aos artigos 212.º, n.º 3, da CRP, e 1.º, n.º 1, do referido Estatuto, essencial para que a competência seja deferida aos tribunais administrativos é que o litígio se insira no âmbito de uma relação dessa natureza, o mesmo é dizer numa relação onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público” – interesse público que, no caso dos contratos de emprego-inserção +, resulta expressamente explicitado nos preâmbulos da Portaria n.º128/2009 e do Despacho n.º 1573-A/2014.

Poder-se-á objectar que, não obstante estarem em causa contratos disciplinados por normas de Direito Administrativo, os pedidos formulados pelo autor são expressamente referidos a normas do Código do Trabalho e que, por isso, o critério atrás enunciado de que a competência se afere pelos elementos identificadores da acção – em especial pelo pedido formulado – não conduz à conclusão de que a competência cabe aos tribunais administrativos.

No entanto, a interpretação de tais referências ao Código do Trabalho, entendidas no contexto global da petição inicial, não conduz senão à conclusão de que o autor considera que, com base nos contratos que invoca como integrantes da causa de pedir, juntamente com a cessação por iniciativa do Município, pode obter a condenação do réu em prestações reguladas no Código do Trabalho.

7. Nestes termos, julga-se competente para a presente acção o Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (artigos 44º-A, b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, 6.º, a) do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro, 1., e) da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio, e 19.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ).

Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

A relatora atesta que a adjunta, Senhora Vice-Presidente do STA, Conselheira Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa, votou favoravelmente este acórdão, não o assinando porque a sessão de julgamento decorreu em videoconferência.

Lisboa, 5 de Maio de 2021

MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA