Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:045750/21.3YIPRT-L1-S1
Data do Acordão:01/31/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:PROCESSO NÃO CLASSIFICADO
Sumário:I - Para que se possa entender que é à jurisdição administrativa que compete o julgamento de uma acção na qual uma sociedade gestora de resíduos de embalagens, a quem foi atribuída uma licença para a gestão do correspondente sistema integrado de gestão, pede o cumprimento de um contrato celebrado com uma sociedade comercial que se dedica à indústria e comércio de materiais de embalagem e produtos afins, é necessário que se encontrem preenchidas as condições exigidas cumulativamente pela al. e) do n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
II - Não resulta da lei que os contratos como aquele que está em causa nos autos tenham de ser “celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública”, como exige a al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, para que caiba à jurisdição administrativa a apreciação de questões relativas à sua execução.
III - Assim como não resultaria tal imposição do disposto no Código dos Contratos Públicos, por não se verificarem os requisitos para que a autora possa ser qualificada como entidade adjudicante – cfr. artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos, maxime o respectivo n.º 2.
IV - Compete aos tribunais judiciais o julgamento da presente acção.
Nº Convencional:JSTA000P30586
Nº do Documento:SAC20230131045750
Recorrente:NOVO VERDE – ENTIDADE GESTORA DE RESÍDUOS DE EMBALAGENS, S.A.
Recorrido 1:SILVEX, INDÚSTRIA DE PLÁSTICO E PAPÉIS, S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Tribunal dos Conflitos

Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 13 de Maio de 2021, Novo Verde – Entidade Gestora de Resíduos de Embalagens, S.A., requereu junto do Balcão Nacional de Injunções uma injunção contra Silvex, Indústria de Plástico e Papéis, S.A., pedindo o pagamento de € 115.701,54 (€ 113.176,79 de capital, € 2.331,75 de juros de mora vencidos, € 40 de custos de cobrança da dívida e € 153 de taxa de justiça paga), acrescido dos juros de mora vincendos até integral pagamento.
Alegou, em suma, que entre requerente e requerida foi celebrado um contrato de adesão ao Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Embalagens, nos termos do qual a requerida transferiu para a requerente a sua responsabilidade pela gestão e destino final dos resíduos de embalagens que coloca no mercado nacional, mediante o pagamento de uma prestação financeira anual à requerente, em montantes definido nos termos do Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de Dezembro, da Licença e do Contrato.
Apesar de interpelada, porém, a requerida não liquidou duas facturas correspondentes à quarta tranche da prestação financeira anual devida no ano de 2020.
Citada, a requerida Silvex,, S.A., opôs-se à pretensão da requerente (impugnando os factos) e deduziu reconvenção, opondo a compensação de créditos e pedindo a condenação da requerente nos montantes que indica.
A requerente replicou.
Notificadas para se pronunciarem sobre a competência material para a apreciação da causa, conforme determinado pelo despacho de 14 de Março de 2022 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Cível de Cascais – Juiz ..., tribunal para onde foi remetido o processo para distribuição, a requerente sustentou serem competentes os tribunais comuns e a requerida os tribunais administrativos.
A 28 de Março de 2022, no despacho saneador-sentença, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Cível de Cascais – Juiz ... declarou-se materialmente incompetente para conhecer da presente ação, atribuindo a competência à jurisdição administrativa.
Para assim decidir, em síntese, o tribunal entendeu que “Tendo presente que a A. tem por missão a satisfação das referidas necessidades de interesse público, encontrando-se licenciada, como se referiu, para exercer a actividade de gestão de resíduos de embalagens enquanto gestora do sistema integrado de gestão de resíduos de embalagens (SIGRE), e considerando a natureza dos contratos celebrados entre as partes, a fim de dar cumprimento ao estabelecido no D.L. 366-A/91, de 20/12, e designadamente das contrapartidas no mesmo estabelecidas, que são aprovadas pela APA (e que aprova também os valores de informação e motivação, o plano de marketing e o investimento em investigação), há que concluir que está preenchida a previsão das al. e) e f) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF.” (na redacção inicial da Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro).
Inconformada, a requerente Novo Verde, S.A., interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa; a requerida Silvex, S.A., contra-alegou no sentido da improcedência do recurso.
Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Setembro de 2022, foi negado provimento ao recurso e confirmada a decisão da primeira instância.
O Tribunal da Relação de Lisboa considerou que, sendo a requerente titular de uma licença concedida pela Administração Pública e estando sujeita ao seu controlo, está preenchida a previsão do art. 2.º, n.º 2, al. b), do CCP. Assim, e estando em causa questões relativas ao (in)cumprimento de contrato celebrado no âmbito do SIGRE – Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Embalagens – as mesmas integram-se na previsão do art. 4.º, n.º 1, al. e), do ETAF, sendo materialmente competentes para conhecer da acção os Tribunais da jurisdição administrativa.

2. A requerente interpôs recurso para o Tribunal dos Conflitos, nos termos do art. 101.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil. Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:
«A. Vem o presente recurso interposto do acórdão que confirmou a decisão do Tribunal de primeira instância que se julgou materialmente incompetente para conhecer da matéria em discussão nos presentes autos.
B. Concluiu o Tribunal a quo que “a A. é titular de uma licença concedida pela Administração Pública e sujeita ao controlo desse Entidade, o que preenche a previsão do artigo 2.º, n.º 2 alínea b) do CCP” e que “as questões relativas ao (in)cumprimento do contrato em causa nos autos, celebrado no âmbito do SIGRE (…) se integram na previsão do artigo 4.º, n.º 1, e) do ETAF, sendo materialmente incompetente o Tribunal Judicial Cível para conhecer da ação e competentes para conhecer da ação os Tribunais da jurisdição administrativa”.
C. Salvo o devido respeito, que é muito, o acórdão recorrido é ilegal por erro quanto aos pressupostos de facto e por errada aplicação do Direito aos factos.
D. Com efeito, o litígio submetido à apreciação do Tribunal não emerge de uma relação jurídico-administrativa, nem se enquadra em qualquer alínea do artigo 4.º do ETAF, como erroneamente resulta do acórdão agora posto em crise.
E. Não se encontram preenchidos os pressupostos de aplicação do artigo 4.º, n.º 1 alínea e) do ETAF.
F. A Recorrente e a Recorrida são ambas pessoas coletivas de direito privado: ambas são sociedades comerciais sob forma de sociedade anónima de capital exclusivamente privado.
G. É verdade que a Recorrente atua ao abrigo de uma licença, concedida pela Administração Pública, mas não é a circunstância de estar licenciada para uma atividade que altera o seu estatuto jurídico de pessoa coletiva de direito privado, que a converte em entidade adjudicante para efeitos de aplicação das regras do Código dos Contratos Públicos (“CCP”) ou que qualifica os contratos que celebra como contratos públicos.
H. Na verdade, não estamos perante qualquer contrato administrativo ou um contrato celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública, nem a Recorrente é uma pessoa coletiva de direito público ou qualquer outra entidade adjudicante, erros quanto aos pressupostos de facto que se arguem para todos os efeitos legais.
I. Define o artigo 280.º, n.º 1 do CCP os contratos públicos como “aqueles em que pelo menos uma das partes seja um contraente público”, convocando-se aqui o conteúdo do artigo 2.º do CCP, que clarifica quem preenche o conceito de entidade adjudicante.
J. Analisado o preceito, facilmente se conclui que a Recorrente não preenche o conceito de entidade adjudicante, pelo que os contratos que celebra não revestem a natureza de contratos públicos.
K. O n.º 1 deste preceito identifica os organismos pertencentes ao setor público administrativo tradicional e o n.º 2 estende a sua aplicação a outras realidades, como sejam os organismos de direito público ou as associações de que façam parte uma ou várias das pessoas coletivas referidas nas alíneas anteriores.
L. Para que uma entidade, independentemente da sua natureza jurídica, possa ser enquadrada no conceito de organismo de direito público, é preciso que, cumulativamente: Prossiga necessidades de interesse geral, não tenha carácter industrial ou comercial, seja maioritariamente objeto de financiamento público, está sujeita ao controlo de gestão das entidades referidas no n.º 1 do artigo 2.º, a maioria dos titulares dos órgãos sociais foi designada por entidades referidas no n.º 1 do artigo 2.º.
M. E certo é que falham os requisitos para que possa ser qualificada como um organismo de direito público ou que permitam identificar uma relação com outros organismos de direito público.
N. A Recorrente é responsável pelos seus atos de gestão, suportando as suas perdas e aplicando os resultados positivos do seu exercício, sempre que umas e outros existam, de acordo com os seus próprios critérios de gestão. Não existe qualquer interferência na gestão da Recorrente por qualquer entidade pública.
O. Não há efetivamente controlo de gestão público nem a maioria (ou algum sequer) dos titulares dos órgãos sociais foi designado por entidades públicas tradicionais ou por algum organismo de direito público.
P. Por outro lado, a Recorrente é financiada exclusivamente pela atividade que desenvolve, pelos serviços que presta, não beneficiando de qualquer financiamento público ou subsídio à exploração.
Q. Logo, o contrato de onde emerge a dívida que constitui o objeto dos presentes autos não foi celebrado “por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”, como exige o supra citado artigo 4.º, n.º 1 alínea e) do ETAF, e não é, por maioria de razão, um contrato público.
R. E também não é verdade que o contrato celebrado entre a Recorrente e a Recorrida tenha sido celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública.
S. O contrato em causa nasce no contexto do princípio da responsabilidade alargada do produtor, densificado no Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de dezembro.
T. O que significa, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, que a Recorrida tinha vários níveis de opção: podia requerer uma autorização para a implementação de um sistema individual ou aderir a um sistema integrado. Optando por esta última solução, que se admite como a mais razoável face à natureza da atividade da Recorrida, sempre poderia escolher o sistema integrado a que pretendia aderir, gerido por uma das três entidades licenciadas para o efeito.
U. Através de um contrato de adesão, os operadores económicos transferem aquela responsabilidade para uma entidade gestora, como a Recorrente ou as suas concorrentes, pagando um valor de prestação financeira (ou ecovalor) que vai custear as operações de recolha, triagem e tratamento dos resíduos de embalagens (cf. artigos 10.º a 16.º do UNILEX).
V. Este contrato foi, pois, livremente assinado pelas partes, podendo a Recorrida, repete-se, ter decidido aderir ao sistema integrado de outra entidade gestora a operar no mercado da gestão de resíduos de embalagens. Saliente-se que apenas o modelo de determinação do valor das prestações financeiras é aprovado previamente pelas autoridades públicas; os preços são fixados livremente pelas entidades gestoras, por aplicação do respetivo modelo, que permite oscilações nesses preços. Prova disso, é que as entidades gestoras não apresentam as três os mesmos preços para todos os materiais e os podem rever durante a vigência do contrato.
W. Não houve, então, qualquer procedimento pré-contratual que antecedeu a celebração daquele contrato nem este é regulado pelas normas da contratação pública.
X. Em suma, a atividade da Recorrente é integralmente privada e foi no contexto de uma relação entre privados que a Recorrente e a Recorrida celebraram o contrato que de onde emerge a dívida, cujo pagamento a Recorrente veio à presente ação reclamar.
Y. E não é a circunstância de estarmos perante um contrato de adesão que lhe retira a natureza exclusivamente privada. Há inúmeras outras situações de contratos de adesão, contratos legalmente impostos, como seja, por exemplo, o seguro automóvel, em que a liberdade do segurado é residual. E ninguém discute a natureza jurídica deste tipo de contrato. E muitos outros exemplos poderiam ser convocados para esta análise.
Z. Note-se ainda que a Recorrente não exerceu qualquer poder jurídico-público.
AA. Assim, por não estar em causa nos presentes autos uma relação jurídico administrativa, são materialmente competentes para deles conhecer os Tribunais comuns.
BB. Faz-se nota que, num processo em tudo semelhante ao presente, que correu sob o n.º 45755/21...., em que são partes a aqui Recorrente e outra entidade privada (a M..., SA), foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação ... (... secção), que concluiu, sobre a mesma questão, o seguinte:
Os presentes autos não têm subjacente qualquer relação jurídico-administrativa, nem a A./Recorrente, na execução do contrato em discussão nos autos, exerceu qualquer poder jurídico-público.
Não é pelo facto de a A. exercer uma actividade com vista à satisfação de necessidades de interesse público e regulada por normas de direito público e sob licença (atribuída pelo Despacho n.º 14202-D/2016, publicado em Diário da República, 2.ª série — N.º 227 — 25 de Novembro de 2016), que se pode concluir, sem mais, que a relação jurídica material controvertida é uma relação jurídico administrativa.
Autora e Ré são pessoas coletivas de direito privado.
As atividades desenvolvidas pela Autora e pela Ré são atividades de carácter privado.
O facto de a Autora ter necessidade de ser titular de uma licença, concedida pela Administração Pública, para o exercício da sua atividade, não transforma aquela atividade privada em atividade público-administrativa.
A licença de que é titular apenas lhe confere o direito a exercer uma determinada atividade económica que, por princípio, não é livre e, por isso, carece de autorização administrativa para ser exercida, à semelhança de muitas outras atividades económicas exercidas por pessoas privadas no ordenamento jurídico.
Como alegou a Recorrente e se sufraga “…foi no contexto de uma relação entre privados que a A. e R. celebraram o contrato que de onde emerge a dívida, cujo pagamento a A. vem na presente ação reclamar. Trata-se de um pedido de condenação de uma entidade privada (uma pessoa coletiva de direito privado) no pagamento de uma quantia certa a uma outra entidade privada. Saliente-se que a relação entre a A. e a R. é estritamente privada.
Nem a jurisprudência - Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 24 de maio de 2017, proferido no proc. n.º 030/16 - de que o tribunal “a quo” se socorreu para fundamentar a decisão tem aqui aplicação. (…)
Em conclusão, o litígio discutido nos presentes autos e submetido à apreciação do Tribunal “a quo” não emerge de uma relação jurídico-administrativa, nem se enquadra em qualquer das alíneas do artigo 4.º do ETAF.
CC. O acórdão recorrido deve, pois, ser substituído por outro que confirme que a competência para conhecer da matéria dos presentes autos pertence à jurisdição cível.
Nestes termos e nos melhores de Direito, sempre com o douto suprimento de Sua Excelência, requer-se a admissão do presente recurso e que seja dado provimento ao mesmo, concluindo-se que a competência para conhecer da presente ação pertence à jurisdição comum.»

A requerida contra alegou, concluindo desta forma:

«i. A relação contratual encetada entre a Autora e a Ré encontra-se regulada por normas que se qualificam como “normas de direito público”, caracterizando-se como uma relação jurídico administrativa.
ii. Por outro lado, a Autora constitui entidade adjudicante nos termos do artigo 2.º, n.º 2, alínea b), do CCP.
iii. Nessa medida, os tribunais administrativos (e não os tribunais judiciais) são os competentes para apreciar o presente litígio emergente dessa relação contratual, sem prejuízo das alterações legislativas empregues no ETAF, porquanto a matéria subjacente aos presentes autos enquadra-se no âmbito da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF e, subsidiariamente, na alínea o) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, deverá ser mantido o Acórdão Recorrido de acordo com a qual os tribunais judiciais são incompetentes para conhecer da presente ação, sendo, ao invés competentes os tribunais administrativos.»

3. Admitido o recurso e remetidos os autos ao Tribunal dos Conflitos, o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determinou que fosse seguida a tramitação prevista na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser atribuída a competência aos Tribunais da jurisdição administrativa: “A relação contratual estabelecida entre A. e R. rege-se por normas de direito público, revestindo a natureza de relação jurídico-administrativa, sendo a A. entidade adjudicante, nos termos e para os efeitos do art. 2.º, n.º 2, al. b), do Código dos Contratos Públicos”.

4. O objecto do presente recurso consiste em determinar se a competência em razão da matéria para a apreciação do presente litígio cabe aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa e, concretamente, a que tribunal (n.º 5 do artigo 14.º e n.º 3 do artigo 18.º da Lei n.º 91/2019).
Os factos relevantes para a respectiva apreciação constam do relatório.

5. Está pois em causa, apenas, determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da autora, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Os tribunais administrativos «são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a acção que estiver em causa tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (n.º 2 do artigo 212º da Constituição, n.º 1 do artigo 1.º e artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Como escreve Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 52-53, o legislador deveria esclarecer o que se entende como “relação jurídica administrativa”, nomeadamente para ser possível saber, com segurança, como delimitar o âmbito da jurisdição administrativa: “De facto, face à complexidade actual das relações entre o direito público e o direito privado no âmbito da actividade administrativa, a questão (…) transformou-se numa decisão, numa opção política entre soluções igualmente defensáveis” (nota 68).
«Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.
Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido».
A este domínio material existem, todavia, casos de alargamento da jurisdição administrativa, nomeadamente na área dos contratos. “Esse alargamento é evidente na alínea e)” do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, “a qual, tal como confere aos tribunais administrativos competência para julgar os litígios que tenham por objecto a validade dos actos pré-contratuais inseridos em procedimentos administrativos, também no que se refere às questões de interpretação, validade e execução de contratos, não abrange apenas os contratos administrativos, mas também, quaisquer contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes. Ora, como se sabe, a legislação referida, em especial o Código dos Contratos Públicos (…), ao regular os procedimentos pré-contratuais, também se aplica a contratos de direito privado celebrados pela administração, bem como alguns contratos celebrados por entidades privadas que sejam entidades adjudicantes. Trata-se de uma opção tomada na revisão de 2015 (…)”(págs. 109 e 110).
Nas palavras de Mário Aroso de Almeida (Manual de Processo Administrativo, 4.º ed., Coimbra, 2020. pág. 170 segs.), na revisão do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais de 2015, o legislador veio substituir as antigas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 4.º, “que anteriormente se referiam aos litígios em matéria de contratos”, pela al. e) do n.º 1 do artigo 4.º, que utiliza, “para delimitar o âmbito da jurisdição em matéria de contratos”, os critérios do “contrato administrativo” (cfr. n.º 1 do artigo 280.º do Código dos Contratos Públicos), substituindo a antiga alínea f), e do “contrato submetido regras de contratação pública”, por aqui abrangendo “litígios respeitantes a quaisquer contratos, que não apenas contratos administrativos, e tanto contratos celebrados por pessoas colectivas de direito público, como contratos celebrados por entidades privadas, quando sujeitas a regras de direito público em matéria de procedimentos pré-contratuais (ou seja, quando, legalmente qualificadas como entidades adjudicantes, segundo a terminologia do CCP)”.

6. Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção; ou, ainda, no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, processo n.º 020/18, “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…). A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.
No caso dos autos, a requerente alegou o seguinte:
– A requerente é uma sociedade gestora de resíduos de embalagens, a quem foi atribuída uma licença para a gestão do sistema integrado de gestão de resíduos de embalagens pelo Despacho n.º 14202-D/2016, de 25 de Novembro (entretanto alterado pelo Despacho n.º 5615/2020, de 20 de Maio), ao abrigo do Decreto-Lei n.º 366-A/97, de 20 de Dezembro e do n.º 1 do artigo 8.º da Portaria n.º 29-B/98, de 15 de Janeiro;
– Nos termos do já revogado Decreto-Lei n.º 366-A/97, de 20 de Dezembro, os operadores económicos – como a requerida – eram responsáveis pela gestão dos resíduos das embalagens que colocassem no mercado, podendo transferir esta responsabilidade para uma entidade devidamente licenciada para exercer essa atividade – neste caso, a requerente, obrigação que se manteve com a aprovação do Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de Dezembro;
– A requerida é uma sociedade comercial que se dedica à indústria e comércio de materiais de embalagem e produtos afins;
– Em 12 de Julho de 2017, a requerida e a requerente celebraram entre si o Contrato de Adesão ao Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Embalagens, nos termos do qual a primeira transferiu para a segunda a sua responsabilidade pela gestão e destino final dos resíduos de embalagens que coloca no mercado nacional, mediante o pagamento de uma determinada prestação financeira anual à requerente, cujo montante é definido nos termos do Decreto-Lei n.º 152-D/2017, da licença e do contrato;
–A referida prestação financeira anual deve ser paga em quatro prestações trimestrais, tal como previsto no contrato;
– Porém, a requerida não efetuou o pagamento das faturas referentes à quarta tranche da prestação devida no ano de 2020, apesar de devidamente interpelada para o efeito.
A causa de pedir é, pois, o contrato de adesão ao sistema integrado de gestão de resíduos de embalagens celebrado entre a requerente (sociedade gestora de resíduos de embalagens, a quem foi atribuída uma licença para a gestão do sistema integrado de gestão de resíduos de embalagens através do Despacho n.º 14202-D/2016, de 25 de Novembro) – e a requerida (sociedade comercial que se dedica à indústria e comércio de materiais de embalagem e produtos afins), o pedido é o cumprimento do contrato e as partes são sociedades de direito privado.

7. Cumpre ainda recordar que, quer nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a propósito dos Tribunais Judiciais, quer segundo consta do n.º 1 do artigo 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a competência fixa-se no momento da propositura da acção, ou, dito por outras palavras: a competência afere-se pela lei vigente na data em que a acção é proposta.
Segundo a redacção em vigor à data da apresentação da injunção e, portanto, aplicável à acção presente, resultante da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, do n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais resulta que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”, competindo “1. (…) aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal”, de acordo com o referido artigo 4.º, “a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a: (…) e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; (…) o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores. “
Para que se possa entender que é à jurisdição administrativa que compete o respectivo julgamento, como julgaram a 1.ª e a 2.ª Instâncias, e considerando o artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais na sua globalidade, será necessário que se encontrem preenchidas as condições exigidas cumulativamente pela al. e) do respectivo n.º 1. Não sendo, nem a autora, nem a ré, pessoas colectivas de direito público, cumpre averiguar ainda se a autora deve ser havida como uma “entidade adjudicante”, nos termos da legislação sobre contratação pública”, questão a que a recorrente responde negativamente, por entender não se encontrarem reunidos os requisitos exigidos para o efeito.

8. Segundo o Código dos Contratos Públicos (CCP), cujo artigo 1.º, após afirmar no n.º 1, que “estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo”, dispõe (n.º 2) que “O regime da contratação pública estabelecido na parte ii é aplicável à formação dos contratos públicos que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no presente Código e não sejam excluídos do seu âmbito de aplicação.”, são entidades adjudicantes, no contexto da contratação pública em geral, aquelas que vêm indicadas nos n.ºs 1 e 2 do seu artigo 2.º, a) e b) e, quanto aos sectores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais, no artigo 7.º Como escreve Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa cit., pág. 109, nota (198), “Essas ‘entidades adjudicantes’ são, além das pessoas colectivas públicas, os ‘organismos públicos’ – entidades criadas especificamente para satisfazerem necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, desde que financiadas (maioritariamente e regularmente) por pessoas colectivas públicas ou sujeitas ao seu controlo ou à sua influência dominante (art.º 2.º do CCP), bem como, no âmbito dos sectores especiais (água, energia, transportes e serviços postais), quaisquer entidades, incluindo as empresariais, que exerçam essas actividades, quando estejam sujeitas a controlo ou influência dominante de entidades adjudicantes artigo 7.º). Claro que se o regime aplicável for de direito privado, é esse o regime que será aplicado pelos tribunais administrativos.”

9. O Decreto-Lei n.º 366-A/97, de 20 de Dezembro, transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 94/62/CE, do Parlamento e do Conselho, de 20 de Dezembro de 1994, e estabeleceu “os princípios e as normas aplicáveis à gestão de embalagens e resíduos de embalagens, com vista à prevenção da produção desses resíduos, à reutilização de embalagens usadas, à reciclagem e outras formas de valorização de resíduos de embalagens e consequente redução da sua eliminação final, assegurando um elevado nível de proteção do ambiente, e ainda a garantir o funcionamento do mercado interno e a evitar entraves ao comércio e distorções e restrições da concorrência na Comunidade”.
O Despacho n.º 14202-D/2016, de 25 de Novembro, concedeu à requerente Novo Verde – Sociedade Gestora de Resíduos de Embalagens, S. A. (designada por “Titular”) a licença para a gestão de um sistema integrado de resíduos de embalagens.
A requerente é, assim, titular de uma licença concedida pela Administração Pública (Gabinetes dos Secretários de Estado Adjunto e do Comércio e do Ambiente).
O Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de Dezembro, estabelece o regime da gestão de fluxos específicos de resíduos sujeitos ao princípio da responsabilidade alargada do produtor, transpondo as Diretivas n.ºs 2015/720/UE, 2016/774/UE e 2017/2096/EU.
Refere-se no preâmbulo daquele diploma que “O Governo definiu, no Programa Nacional de Reformas, como prioridade da política pública de resíduos, a promoção da prevenção e da gestão de resíduos integrados no ciclo de vida dos produtos. Esta política, centrada numa economia tendencialmente circular também alinhada com o Plano de Ação para a Economia Circular em Portugal, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º xx/2017, visa o aumento da taxa de preparação de resíduos para reutilização e reciclagem, desviando assim os resíduos passíveis de valorização multimaterial da deposição em aterro.
Para a prossecução de tal desiderato assume especial relevância a aplicação dos regimes jurídicos relativos aos fluxos específicos de resíduos que prevêem a operacionalização de sistemas integrados de gestão, assentes no princípio da responsabilidade alargada do produtor, e que, através das respetivas entidades gestoras, assumem as responsabilidades dos operadores económicos que colocam produtos no mercado nacional.
A articulação e cooperação entre os referidos sistemas integrados e outros intervenientes no mercado, designadamente os operadores de gestão de resíduos, são decisivas para alcançar as metas de reutilização, reciclagem e valorização a que a República Portuguesa está vinculada, por via de legislação europeia e nacional.”.
Subjacentes ao Decreto-Lei n.º 152-D/2017 estão, pois, prioridades de política pública de resíduos e a promoção da prevenção e da gestão de resíduos integrados no ciclo de vida dos produtos.
Do Decreto-Lei n.º 152-D/2017 salienta-se o seguinte: a distinção entre sistema individual (artigo 9.º.º) e sistema integrado de gestão de resíduos (artigo 10.º e segs.), no qual se verifica a transferência da responsabilidade pela gestão dos resíduos “para uma entidade gestora licenciada para o efeito” (n.º 1 do artigo 10.º); a qualificação dessa entidade gestora como “uma pessoa coletiva de direito privado, de natureza associativa ou societária” (n.º 1 do artigo 11.º), sujeita a regras estritas quanto ao destino do “resultado líquido positivos” (n.º 6), à obrigação de prestação de caução a favor da APA, I.P., (n.º 7) , ou de propor à APA, I.P. e à DGAE “um modelo de determinação dos valores de prestações financeiras, para a totalidade do período de vigência da licença” (artigo 15.º); a sujeição da entidade gestora a licenciamento governamental, seu requisitos e formalidades (artigo 16.º).
Deste quadro normativo resulta, tal como se referiu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, agora recorrido, que à requerente “foi atribuída a obrigação legal de gestão e destino final dos resíduos de embalagens que coloca no mercado nacional a qual apenas pode ser cumprida, ou através de um sistema individual – sujeito a autorização atribuída por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da economia e do ambiente – ou através da transferência da sua responsabilidade para uma entidade gestora, através de um sistema integrado operacionalizado pela mesma, sujeito a licença e mediante a contrapartida de pagamento à entidade gestora de uma prestação financeira – tudo ao abrigo dos artigos 9.º, n.º 11 e 10.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de Dezembro, que estabeleceu o Regime da Gestão de Fluxos Específicos de Resíduos (RGFER) na redacção da Lei 41/2019 de 21 de Junho.
Não resulta, todavia, que, os contratos como o que está em causa nos autos, tenham que ser “celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública”, como exige a al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, para que caiba à jurisdição administrativa a apreciação de questões relativas à sua execução (cfr. o acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 19 de Maio de 2021. www.dgsi.pt, proc. n.º 04/20).
Assim como não resultaria tal imposição do disposto no Código dos Contratos Públicos, por não se verificarem os requisitos para que a autora, ora recorrente, possa ser qualificada como entidade adjudicante – cfr. artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos, maxime o respectivo n.º 2 e acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 13 de Julho de 2022. www.dgsi.pt, proc.n.º 012788/18.8T8PRT.S1-CP.

10. Nos acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 18 de Fevereiro de 2016, www.dgsi.pt, proc. n.º 043/15 e de 24 de Maio de 2017, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/16, ambos relativos à questão de saber se uma acção na qual se formulou o “pedido de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de embalador/importador celebrado no âmbito do SIGRE [Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Embalagens]” (acórdão de 18 de Fevereiro de 2016) devia ser apreciada pela jurisdição administrativa ou pelo tribunais judiciais, decidiu-se no sentido de a competência caber à jurisdição administrativa:
– “Os tribunais da jurisdição administrativa são os competentes para conhecer de pedido de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de embalador/importador celebrado no âmbito do SIGRE [Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Embalagens].”; “São (…) as normas de direito público, do regime jurídico supra dito, que regulam a execução das obrigações impostas à entidade gestora do SIGRE, obrigações que lhe foram transferidas pelo contrato de adesão celebrado com o B…….. e consubstanciam a «prestação» que lhe é devida em função do pagamento das contrapartidas financeiras. Não resta dúvida, assim, de que na apreciação e resolução do presente litígio o tribunal se confronta com a necessidade de interpretar e de aplicar normas que são de «direito público», que impõem obrigações ao embalador e foram por ele transferidas para a entidade gestora. Tudo aponta para que estejamos no domínio da relação jurídica administrativa, tal como ela é legalmente desenhada, a título exemplificativo, na alínea f) do nº1 do artigo 4º do actual ETAF: Questões relativas à […] execução […] de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo […]. Porém, não dispomos de qualquer elemento, quer nos autos, quer resultante da lei, nomeadamente do regime jurídico em referência, que permita enquadrar o presente caso no âmbito da alínea e), do nº1, do artigo 4º do ETAF, como foi entendido, também, nas decisões das duas instâncias da jurisdição comum.” (Acórdão de 18 de Fevereiro de 2016);
– “Ao invés do que também argumenta a recorrente, crê-se que não é apenas a montante que a relação da Autora com a APA é de direito administrativo, também a jusante a relação entre a Autora e os aderentes (poluidor-pagador) é de direito administrativo, enquadrada na aI. f) do nº 1 do art. 4° do ETAF. Como se consignou no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 2016.02.16, mencionado supra, para além do contrato em causa ser gerado num ambiente denso de direito público, «a sua execução é substancialmente regulada por "normas de direito público". São, efectivamente, as normas de direito público, do regime jurídico supra dito, que regulam a execução das obrigações impostas à entidade gestora do SIGRE, obrigações que lhe foram transferidas pelo contrato de adesão celebrado com a Ré e consubstanciam a "prestação" que lhe é devida em função do pagamento das contrapartidas financeiras. Não resta dúvida, assim, de que na apreciação e resolução do presente litígio o tribunal se confronta com a necessidade de interpretar e de aplicar normas que são de "direito público", que impõem obrigações ao embalador e foram por ele transferidas para a entidade gestora. Consideramos que efectivamente estamos no domínio da relação jurídica administrativa, tal como ela é legalmente desenhada, a título exemplificativo, na alínea f) do n.º 1 do artigo 4º do actual ETAF: Questões relativas à [...] execução [...] de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo [...]».” (acórdão de 24 de Maio de 2017).
Em ambos os casos, todavia, era a versão inicial do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (respectivas alíneas e) e f) do n.º 1), anterior, portanto, à alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro.

11. A recorrida sustenta, diferentemente, que a competência para a presente acção pertence à jurisdição administrativa.
Interesse, todavia, recordar que:
– Deixando de lado a verificação de que, embora o princípio da liberdade contratual comporte, como regra, no âmbito do direito privado, a liberdade de celebração e a liberdade de determinação do conteúdo dos contratos (cfr. artigo 405.º do Código Civil), não é de todo invulgar que razões de interesse público ditem o seu afastamento ou a sua limitação;
– Como atrás de referiu já, a propósito do conceito de relação jurídica administrativa, na relação contratual entre as partes desta acção não intervém nenhum sujeito público nem nenhuma entidade particular no exercício de um poder público;
– Não se verificam os requisitos para que se deva entender, para o efeito que está em causa – interpretar a al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na sua actual redação –, que o contrato dos autos esteja legalmente sujeito a ser celebrado “nos termos da legislação sobre contratação pública”, primeira exigência para que se possa considerar que a apreciação do seu cumprimento seja da competência da jurisdição administrativa; nem está demonstrada a verificação dos pressupostos de que a autora, não sendo uma pessoa colectiva pública, seja uma entidade adjudicante (cfr. o ponto 2 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 118/2008, de 29 de Janeiro, que aprovou o Código dos Contratos Públicos: “Relativamente ao âmbito subjectivo de aplicação das regras da contratação pública, a novidade fundamental diz respeito à rigorosa transposição da noção comunitária de «organismo de direito público» – introduzida de forma a acompanhar o entendimento que tem sido veiculado pela jurisprudência comunitária e portuguesa. Promove-se, pois, a sujeição das entidades instrumentais da Administração Pública às regras dos procedimentos pré-contratuais públicos. Concretamente, inclui-se no âmbito subjectivo de aplicação qualquer pessoa colectiva que, independentemente da sua natureza pública ou privada, tenha sido criada especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, e que seja financiada maioritariamente pelas entidades adjudicantes do sector público administrativo tradicional ou esteja sujeita ao seu controlo de gestão ou tenha um órgão de administração, direcção ou fiscalização cujos membros sejam em mais de metade designados, directa ou indirectamente, por aquelas entidades. Acrescentando-se, a título explicativo, que são consideradas pessoas colectivas criadas especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, aquelas cuja actividade económica se não submeta à lógica do mercado e da livre concorrência.”).

11. Nestes termos, conclui-se que compete aos tribunais Judiciais a apreciação do presente litígio, razão pela qual se concede provimento ao recurso e se revoga o acórdão recorrido.
Em cumprimento do disposto no n.º 4 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019, aplicável nos termos do respectivo n.º 3 do artigo 18.º, delibera-se que é competente o Juízo Central Cível de Cascais do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, nos termos do disposto nos artigos 40.º, n.º 1, e 117.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013 e n.º 1 do artigo 71.º do Código de Processo Civil).


Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).


Lisboa, 31 de Janeiro de 2023. - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - Henrique Luís de Brito Araújo.