Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02354/21.6T8ALM.S1
Data do Acordão:11/22/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:I - Tratando-se uma oposição à execução fiscal, considera-se, nomeadamente para o efeito de saber qual é a lei aplicável à determinação da jurisdição competente, que a acção foi proposta na data na qual foi instaurada a execução fiscal.
II - Sendo essa data anterior à Lei n.º 114/2019, interessa a versão das normas relevantes do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais então em vigor.
III - Nos termos do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 4.º respectivo, cabe à Jurisdição Administrativa e Fiscal a sua apreciação; concretamente, e de acordo com a al. c) do artigo 49.º do mesmo Estatuto, aos Tribunais Tributários.
Nº Convencional:JSTA000P30341
Nº do Documento:SAC2022112202354
Recorrente:A..........
Recorrido 1:SEIXAL – MUNICÍPIO
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 31 de Março de 2020, deu entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada a oposição AA deduziu ao processo de execução fiscal (n.º 6994/2015) que o Município do Seixal requereu contra si para cobrança coerciva de dívidas referentes a consumos de água, nos termos dos artigos 203.º e segs. do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), e que fora remetido à Câmara Municipal respectiva em Outubro de 2020.
Fundamentou a oposição, antes de mais, na “prescrição da obrigação exequenda”, nos termos do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 22/96, de 26 de Julho, impugnando ainda a validade de todas as certidões de dívida apresentadas pelo exequente, concluindo que deve ser absolvida.
Por decisão de 8 de Fevereiro de 2021, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, considerando tratar-se de um litígio destinado à cobrança coerciva de dívidas provenientes do fornecimento de serviços públicos essenciais, excluído do âmbito da justiça administrativa e fiscal, nos termos do artigo 4.º, n.º 4, alínea e), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, julgou-se incompetente em razão da matéria para conhecer da causa, atribuindo a competência aos tribunais judiciais e indeferindo liminarmente a oposição.
Para o efeito, considerou determinantes “a acção (pedido e causa de pedir), tal como foi proposta pela Oponente”, “a natureza do litígio, relativo à cobrança de alegadas dívidas provenientes do fornecimento de serviços públicos essenciais, e os fundamentos da oposição, assentes na lei que regula as garantias dos utentes dos aludidos serviços públicos essenciais”
Por despacho de 8 de Março de 2021, e a requerimento da Oponente, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada determinou a oportuna remessa dos autos ao Juízo de Execução de Almada do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
Por despacho de 22 de Abril de 2021, o Juízo de Execução de Almada – Juiz ... – do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa declarou-se materialmente incompetente para conhecer dos autos, com fundamento no art. 151.º do CPPT, e absolveu o Município do Seixal da instância, julgando tratar-se de matéria “da competência exclusiva dos tribunais tributários”.
A oponente e o Ministério Público requereram a resolução do conflito negativo de jurisdição.

2. Tendo sido requerida a resolução do conflito negativo de jurisdição, o processo foi remetido ao Tribunal dos Conflitos. Por despacho do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça foi determinado que se seguissem os termos resultantes da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos).
As partes e o Ministério Público foram notificadas deste despacho.
O Ministério Público emitiu parecer, no sentido de que “a competência para conhecer da presente acção deverá ser atribuída ao Juízo Tributário Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada”, uma vez que “tendo o procedimento de cobrança de dívidas de fornecimento de água se iniciado em 27/04/2015 com a instauração da execução fiscal de que a presente oposição é dependência, nos termos do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em vigor em 27.04.2015, o presente litígio pertence ao âmbito da Jurisdição Administrativa e Fiscal e não aos tribunais judiciais”.

3. Os factos relevantes para a decisão do conflito constam do relatório.
Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para a apreciação da presente oposição, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelo artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais; dentro destes, o artigo 49º define a competência dos tribunais tributários.
Os tribunais administrativos, “ não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. b) do nº 1 deste artigo 4º, cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal” julgar os litígios relativos aos actos da Administração Pública praticados “ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal de Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção.

4. A al. e) do n.º 4.º do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que foi acrescentada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, veio excluir do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva” (al. e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais). Da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII, da qual veio a resultar a Lei n.º 114/2019, consta expressamente que se “Esclarece (…) que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”
A Lei 114/2019 entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo.
Vale assim o princípio de direito transitório sectorial afirmado no n.º 1 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), também constante, aliás, do artigo 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, segundo o qual a competência se afere pela lei vigente à data da propositura da acção, e que admite duas excepções, nas quais a lei nova é de aplicação às acções pendentes: a extinção do tribunal onde a acção foi proposta e a atribuição de competência a tribunal incompetente (assim, a título de exemplo, cfr. os acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 20 de Janeiro de 2021, www.dgsi.pt, processo n.º 01574/20.5T8CSC.S1, ou de 24 de Fevereiro de 2021, www.dgsi.pt, processo n.º 01573/20.7T8CSC.S1)
Tratando-se de uma alteração do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais respeitante à competência material da jurisdição administrativa e fiscal, a aplicação no tempo dessa exclusão não atinge portanto as acções pendentes; mas aplica-se às acções instauradas depois da sua entrada em vigor.

5. Os presentes autos tiveram a sua origem nos Autos de Execução Fiscal n.º ...15, instaurados em 27 de Abril de 2015, pelo Município do Seixal, junto do respetivo serviço de execução fiscal, para cobrança coerciva de dívidas referentes a consumos de água.
Posteriormente, por requerimento de 31 de Março de 2021, a executada veio deduzir oposição à execução fiscal.
Nos termos do artigo 149.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, “Considera-se, para efeitos do presente Código, órgão da execução fiscal o serviço da administração tributária onde deva legalmente correr a execução ou, quando esta deva correr nos tribunais comuns, o tribunal competente.”
Segundo os n.ºs 1 e 2 do artigo 150.º, “1 - É competente para a execução fiscal a administração tributária. 2 - A instauração e os atos da execução são praticados no órgão da administração tributária designado, mediante despacho, pelo dirigente máximo do serviço.
De acordo com o disposto no artigo 151.º, “1 - Compete ao tribunal tributário de 1.ª instância da área do domicílio ou sede do devedor originário, depois de ouvido o Ministério Público nos termos do presente Código, decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, e a reclamação dos atos praticados pelos órgãos da execução fiscal. 2 - O disposto no presente artigo não se aplica quando a execução fiscal deva correr nos tribunais comuns, caso em que cabe a estes tribunais o integral conhecimento das questões referidas no número anterior.
Finalmente, releva especialmente o disposto no n.º 1 do artigo 103.º da LGT (Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro), que atribui ao “processo de execução fiscal” “natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional.
Ora, tendo em conta que a presente oposição respeita à execução fiscal requerida contra a executada, considera-se, nomeadamente para o efeito de saber qual é a lei aplicável à determinação da jurisdição competente, que a acção foi proposta em 27 de Abril de 2015, data na qual foi instaurada a execução fiscal, e que é anterior à entrada em vigor da Lei n.º 114/2019. Interessa, portanto, a versão das normas relevantes do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em vigor em 27 de Abril de 2015.

6. Apreciando a questão de saber se a competência para apreciar oposições deduzidas contra execuções fiscais movidas por entidades públicas (ou concessionadas) também destinadas à cobrança de taxas devidas por consumo de água, mas instauradas antes da entrada em vigor da Lei n.º 114/2019, cabia aos Tribunais Judiciais ou aos Tribunais Administrativos e Fiscais, em particular aos Tribunais Tributários, o Tribunal dos Conflitos concluiu no sentido na não aplicação da exclusão hoje contida na al. e) do n.º 4 do artigo 4.º. Entendeu (cfr., a título de exemplo, o acórdão de 20 de Janeiro de 2021, www.dgsi.pt, proc. n.º 1574/20.5T8CSC.S1), em síntese, que tais oposições se inseriam em relações de natureza administrativa, já que um dos seus sujeitos era uma entidade pública que actuava com vista à prossecução de um interesse público cometido por lei e respeitavam à cobrança coerciva de taxas, contrapartida pelos serviços prestados, cujas quantias haviam sido unilateralmente definidas.
Entendeu, assim, que a respectiva apreciação competia à jurisdição administrativa e fiscal (al.d) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e, especificamente, aos tribunais tributários (al. d) do n.º 1 do artigo 49.º, também do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
No mesmo sentido, cfr. o acórdão de 18 de Janeiro de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 0443/20.3BEALM.S1 também do Tribunal dos Conflitos, de cuja fundamentação consta, nomeadamente, o seguinte:
(…) O Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto, estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos.
Prevê-se no respetivo preâmbulo que “As actividades de abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos constituem serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança colectiva das populações, às actividades económicas e à protecção do ambiente. Estes serviços devem pautar-se por princípios de universalidade no acesso, de continuidade e qualidade de serviço e de eficiência e equidade dos tarifários aplicados.
O actual regime de abastecimento de água, saneamento de águas residuais e gestão de resíduos urbanos assenta na dicotomia entre sistemas municipais, situados na esfera dos municípios, onde se incluem também os sistemas intermunicipais, e sistemas multimunicipais, situados na esfera do Estado.
No quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais, os municípios encontram-se incumbidos de assegurar a provisão de serviços municipais de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, nos termos previstos na Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro, sem prejuízo da possibilidade de criação de sistemas multimunicipais, de titularidade estatal. (…)”.
E resulta dos artigos 2.º, n.º 1, 6.º, n.º 1, e 7.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20/08, na redação da Lei 12/14, de 6 de Março, que a gestão dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos é uma atribuição dos municípios, podendo ser concessionada a entidades terceiras.”»
Acresce que, tal como se entendeu no acórdão de 17 de Fevereiro de 2021 do Supremo Tribunal Administrativo, www.dgsi.pt, proc. n.º 01685/18.7BEBRG quanto às quantias então devidas, as que aqui estão em causa – como contrapartida do fornecimento de água – “assumem a natureza de taxas”, sendo fixadas unilateralmente. Aliás, segundo o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de Abril de 2013, www.dgsi.pt, proc. n.º 012/12, que se segue, “No domínio da Lei das Finanças Locais de 2007 (Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro) e do DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto, cabe na competência dos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes de abastecimento público de águas (…)”.
O litígio a que respeita a oposição em causa nestes actos é, insere-se, assim, numa relação de natureza administrativa: um dos seus sujeitos é uma entidade pública que actua com vista à prossecução de um interesse público que lhe é cometido por lei e respeita à cobrança coerciva de taxas, contrapartida pelo serviço prestado, cuja quantia é unilateralmente definida. Cabe no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (al.d) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e, especificamente, dos tribunais tributários (al. d) do n.º 1 do artigo 49.º, também do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).”.

7. Conclui-se, portanto, que a apreciação da presente oposição compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais; mais concretamente, ao Juízo Tributário Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada (n.º 1 do artigo 151.º do CPPT).

Sem custas (artigo 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

Lisboa, 22 de Novembro de 2022. – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.