Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:03143/19.3T8GMR.S1
Data do Acordão:02/24/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO JURISDIÇÃO
Sumário:Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para julgar uma acção instaurada contra uma pessoa colectiva de direito público na qual a autora pede que a ré seja condenada a reconhecer que a relação laboral existente entre as duas é uma relação de emprego público.
Nº Convencional:JSTA000P27348
Nº do Documento:SAC2021022403143/19
Recorrente:TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE BRAGA–JUÍZO DO TRABALHO DE GUIMARÃES – JUIZ 2
TAF – TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA
Recorrido 1:A...................
Recorrido 2:JUNTA DE FREGUESIA ………..
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: 1. AA intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga uma ação administrativa contra a Junta da União de Freguesias ............, pedindo
I. Ser a ré condenada
a. a reconhecer que a A. tem para consigo um vínculo de emprego público,
b. a reconhecer, de acordo com a lei, a categoria em que se enquadra actualmente
i.e a repor-lhe os vencimentos em falta, desde o início da relação de emprego, de acordo com o nível remuneratório, em conformidade.
II. ser a ré condenada a emitir declaração, por referência à A., onde certifique:
a. a modalidade da relação jurídica de emprego público,
b. a descrição das actividades/funções que actualmente executa,
c. as últimas duas menções de avaliação de desempenho;
d. a identificação da carreira/categoria em que se encontra inserida, com a identificação da respectiva remuneração reportada ao nível e posição remuneratória auferido
III. ser a ré condenada a emitir tais declarações no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da presente acção,
IV. ser a ré condenada na sanção pecuniária compulsória de 50,00€/dia, por cada dia de atraso na emissão da declaração peticionada nas alíneas anteriores.
V. Ser a ré condenada a pagar à A. a quantia de 5.000,00€ a título de danos não patrimoniais.”.
Alegou, para o efeito e em síntese, ser “assalariada da ré desde 01/08/2002, altura em que cumpriu um ….. na extinta Junta de Freguesia …… – que integrou a actual Junta da União de Freguesias ré (…), – para a qual transitou no exercício das funções que sempre anteriormente desempenhara”; e ter sido “contratada como assistente administrativa pela referida Junta de Freguesia….., a tempo completo”, em 2 de Fevereiro de 2004, data a partir da qual, pelo menos, presta a sua actividade à ré, pessoa coletiva pública, “ao abrigo de um contrato de trabalho em funções públicas”, possuindo “uma relação de emprego público com a ré”.
A Junta da União de Freguesias ............ contestou. Alegou que, quando em 2 de Fevereiro de 2004 “foi celebrado entre as partes um contrato individual de trabalho a termo”, as partes convencionaram “como foro competente para a resolução de qualquer litígio emergente daquele o Tribunal de Trabalho de Guimarães”; mas que, apesar de tal acordo ser “apto a conduzir à incompetência” do tribunal, “aqui se não invoca” a incompetência, absoluta ou relativa.
Alegou ainda a inexistência de qualquer relação de emprego público entre as partes, existindo antes um contrato individual de trabalho de natureza privada, e concluiu pela improcedência da ação.
A autora replicou, sustentando, nomeadamente, que “não se verifica qualquer exceção de incompetência”, socorrendo-se da norma contida no então vigente art. 100.º do CPC (atual art. 95.º). Observou, ainda, que, não releva a afirmação da ré de que não invoca a excepção de incompetência, porque se trata de uma excepção de conhecimento oficioso.
Pela sentença de fls. 49, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga julgou-se “incompetente, em razão da jurisdição, para conhecer da presente acção” e absolveu a ré da instância. Para o efeito, e em síntese, o tribunal entendeu que o contrato celebrado entre a autora e a ré é um contrato de trabalho a termo certo, e que o contrato de trabalho celebrado com pessoas coletivas públicas não confere ao trabalhador a qualidade de funcionário publico ou de agente administrativo.
Visando a “presente acção administrativa (…) a apreciação de um litígio emergente de um contrato de trabalho, ainda que uma das partes contratantes seja uma pessoa colectiva de direito público”, está excluída “da jurisdição administrativa”, cabendo antes à “jurisdição laboral”. Tendo sido convencionada a competência do Tribunal do Trabalho de Guimarães, o tribunal concluiu que “não é da competência deste Tribunal Administrativo de Círculo de Braga conhecer de tal matéria, mas antes do competente Tribunal do Trabalho”.

2. Remetidos os autos ao Tribunal do Trabalho de Guimarães, Juiz 2, foi proferido despacho a convidar a autora a,“atenta a natureza dos autos (processo comum de ação emergente do contrato de trabalho (…) apresentar articulado onde passe a deduzir os pedidos de acordo com a mesma e, bem assim, a alegar e concretizar a respetiva causa de pedir” (fls. 61).
Veio então a autora pedir a condenação da ré:
a. a reconhecer que a A. tem para consigo um vínculo de emprego público,
b. a reconhecer, de acordo com a lei, a categoria em que se enquadra actualmente
i.e a repor-lhe as diferenças salariais não pagas, desde o dia 01/01/2009 até ao trânsito em julgado da presente acção, de acordo com o nível remuneratório nº 9, que lhe cabe, cujo montante ascende, até dezembro de 2018, a 15.709,08€
ii. a pagar à A. o salário em conformidade com a sua categoria profissional,
II. ser a ré condenada a emitir declaração, por referência à A., onde certifique:
a. a modalidade da relação jurídica de emprego público,
b. a descrição das actividades/funções que actualmente executa,
c. as últimas duas menções de avaliação de desempenho;
d. a identificação da carreira/categoria em que se encontra inserida, com a identificação da respectiva remuneração reportada ao nível e posição remuneratória auferido
III. ser a ré condenada a emitir tais declarações no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da presente acção,
IV. ser a ré condenada na sanção pecuniária compulsória de 50,00€/dia, por cada dia de atraso na emissão da declaração peticionada nas alíneas anteriores.
V. Ser a ré condenada a pagar à A. a quantia de 5.000,00€ a título de danos não patrimoniais”.
Realizou-se a audiência de partes e a instância foi suspensa por 40 dias.
A ré contestou. Para o que agora especialmente releva, veio sustentar que, mantendo a autora os pedidos iniciais, o Tribunal do Trabalho é incompetente em razão da jurisdição; devendo a acção improceder, se assim se não considerar.
No saneador-sentença, de fls. 87, o Tribunal declarou-se incompetente e absolveu a ré da instância, com fundamento na circunstância de a autora continuar a basear os pedidos e a causa de pedir na existência de um contrato de trabalho em funções públicas ou de emprego público, pretendendo, com esta acção, o reconhecimento desse vínculo contratual, à luz da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei nº 35/2014, de 20 de Junho e da (antecedente) Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro.
Concluiu, em conformidade, que a competência para apreciar e julgar tal matéria se encontra excluída do âmbito da jurisdição laboral, nos termos da al. b) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e da al. b) do n.º 1 do artigo art. 126.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto).

3. A autora veio então requerer a resolução do conflito negativo de jurisdição.
Determinado pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que se seguisse a tramitação prevista na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos), nos termos do n.º 4 do respectivo artigo 11.º, o Ministério Público proferiu parecer no sentido de caber à jurisdição administrativa a apreciação da acção: “Ora, não obstante a Autora ter celebrado com a Ré, pessoa colectiva de direito público um contrato individual a termo certo, renovável que se converteu em contrato de trabalho por tempo indeterminado, o que à primeira vista configuraria uma relação laboral, a Autora não invoca preceitos legais respeitantes ao regime do contrato individual de trabalho e os pedidos que formulou perante o tribunal administrativo e reiterou perante o tribunal do trabalho assentam na pretensão do reconhecimento de um vínculo de emprego público (embora reportado à data da celebração do referido contrato individual de trabalho) invocando a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas aprovada pela Lei 35/2014 de 20/6 e antecedente Lei n.º 59/2008 de 11/9, sustentando que nos termos do art.º 17.º n.º 2 se operou a transição como trabalhadora, da modalidade de contrato individual de trabalho para a modalidade de contrato de trabalho em funções públicas e como tal reivindicando as respectivas diferenças salariais.”.

4. Os factos relevantes para a decisão do conflito constam do relatório.
Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da autora, se os tribunais judiciais – nos quais se integram os tribunais do trabalho e que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. b) do nº 1 deste artigo 4º, cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal” julgar os litígios relativos aos actos da Administração Pública praticados “ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.
Tem especial relevo o n.º 4 deste artigo 4.º, cuja al. b) exclui da competência dos tribunais administrativos “a apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público”, “com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”, excepção que está em consonância com a atribuição aos tribunais administrativos e fiscais da competência para apreciar “os litígios emergentes do vínculo de emprego público”, resultante do artigo 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho.
Em qualquer dos casos, aferindo-se a competência pela lei vigente à data da propositura da acção, 27 de Novembro de 2018, na falta de disposições de direito transitório aplicáveis, é por referência às versões da Lei da Organização do Sistema Judiciário e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais então em vigor que se determina a que jurisdição compete o respectivo julgamento (cfr. artigos 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 38.º, n.º 2, da Lei de Organização do Sistema Judiciário; recorda-se que a Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, que alterou os artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo).
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção).
Significa esta forma de aferição da competência, como por exemplo se observou no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 20/18, que “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…».”.
A mesma orientação se retira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, ww.dgsi.pt, processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1: “Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes, quer do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes”.
Com efeito, saber como se qualifica a relação laboral invocada pela autora, e se os efeitos que a autora pretende são ou não fundamentados, são questões que respeitam ao mérito da causa e à procedência ou improcedência da acção; interpretar o contrato invocado e retirar dessa interpretação consequências quanto à identificação do tribunal competente significa inverter a relação pressupostos/questão de fundo.
Ora a autora configura o vínculo estabelecido com a ré como uma relação laboral de direito público, alicerçando os seus pedidos nessa alegação; pede, desde logo, que se reconheça que esse vínculo é de emprego público. Tanto basta para que a apreciação desta acção caiba no âmbito da jurisdição administrativa, como, sem necessidade de maiores justificações, resulta do disposto na al. b) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do artigo 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho.

5. Esta conclusão não contraria o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 13 de Dezembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. nº 36/18, que concluiu pela competência da jurisdição comum, a propósito de um contrato celebrado entre o autor naqueles autos e a Junta de Freguesia ali ré. Estava em causa um pedido de indemnização por acidente de trabalho ou de serviço e a escolha do regime aplicável dependia da qualificação do contrato; os tribunais envolvidos – tal como no presente caso – recusaram a competência por qualificarem de forma diferente o contrato invocado. Mas o Tribunal dos Conflitos considerou competente o Tribunal do Trabalho, no qual a acção tinha sido inicialmente proposta, tendo em conta o «acervo processual» que, remetido ao Tribunal Administrativo, tinha sido arquivado por determinação deste último.
E não contraria igualmente outros acórdãos do Tribunal dos Conflitos que, pronunciando-se sobre a temática dos contratos de trabalho celebrados com entidades públicas, conferiram aos tribunais do trabalho da jurisdição comum a competência para dirimir os conflitos deles emergentes. Referem-se, a título exemplificativo, o acórdão de 11/04/2019, www.dgsi.pt, processo n.º 045/18 ou o acórdão Tribunal dos Conflitos, de 04/02/2016, www.dgsi, processo n.º 041/15. Em ambos os casos se considerou determinante a configuração da relação material controvertida tal como foi definida pelos autores, que a apresentaram como correspondendo a contratos individuais de trabalho, e não como relações de emprego público.
Por fim, refira-se que a convenção das partes que atribui competência para conhecer dos litígios emergentes do contrato o Tribunal de Trabalho de Guimarães não é susceptível de alterar as regras de competência em razão da matéria (n.º 1 do art. 95.º do Código de Processo Civil).

6. Nestes termos, julga-se competente para a presente acção o Juízo Administrativo Social do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (artigos 44º-A, b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, 6.º, a) do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro, 1.º, e) da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio, e 19.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ).

Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).



A relatora atesta que a adjunta, Senhora Vice-Presidente do STA, Conselheira Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa, votou favoravelmente este acórdão, não o assinando porque a sessão de julgamento decorreu em videoconferência.



Lisboa, 24 de Fevereiro de 2021
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza