Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:08389/19.1T8STB.E1.S1
Data do Acordão:03/09/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Cabe à jurisdição administrativa a apreciação de uma acção instaurada contra o Estado na qual as autoras pedem a resolução de um contrato de compra e venda com fundamento na falta de afectação do prédio vendido à finalidade de interesse público que o justificou, a promoção do desenvolvimento urbano-industrial da zona e que sempre permitiriam ao adquirente público o recurso à via da expropriação.
Nº Convencional:JSTA000P29290
Nº do Documento:SAC2022030908389
Recorrente:............
..............
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Tribunal dos Conflitos
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 24 de Dezembro de 2019, AA e BB intentaram no Tribunal da Comarca de Setúbal uma ação declarativa de condenação, com processo comum, contra o Estado Português, formulando o seguinte pedido:
“(…) deve a acção ser julgada procedente por provada, em consequência:
a) Devendo declarar-se como não verificada a afectação do imóvel ao fim a que se destinava e que determinou a outorga da escritura de 9 de Maio de 1974;
b) Devendo decretar-se verificada a condição resolutiva constante do clausulado da escritura de compra e venda e determinada a destruição retroactiva do negócio, devendo ser fixado prazo para, antes da sentença, ser depositado o preço recebido de acordo com o princípio nominalista e o réu condenado a restituir o prédio às autoras - cf. doc. 8.
c) Devendo ainda decretar-se sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no depósito do preço e na restituição do prédio às autoras;
d) Subsidiariamente, quando assim eventualmente se não entenda, devendo considera-se existir incumprimento da obrigação constante do clausulado da escritura, sendo decretada a resolução do negócio, pelo que, não sendo legalmente possível a restituição, deve o réu ser condenado a pagar às autoras a quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença correspondente ao valor actualizado do prédio, por ser impossível determinar de imediato esse valor - cf. doc. 8;
e) Subsidiariamente e quando assim também eventualmente se não entenda, devendo considerar-se existir alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, sendo igualmente decretada a resolução do negócio, pelo que, não sendo legalmente possível a restituição, deve o réu ser condenado a pagar às autoras a quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença correspondente ao valor actualizado do prédio, por ser impossível determinar de imediato esse valor - cf. doc. 8;
f) O R. condenado a pagar as custas.”.

Alegaram para o efeito, e em síntese, assistir-lhes, na qualidade de “únicas e universais herdeiras de AA e CC”, “tendo esta falecido no estado de viúva de AA” o direito à resolução do contrato de compra e venda do prédio misto identificado nos autos, que AA e sua Mãe venderam, em 9 de Maio de 1974, ao extinto Gabinete do Plano de Desenvolvimento da Área de Sines (GAS): “(…) seja qual for a interpretação que se dê à declaração tácita de destinar o bem vendido para a instalação de um complexo industrial que o comprador nunca realizou, a mesma determina sempre a resolução do contrato por parte dos vendedores”.
O Ministério Público contestou, em representação do Estado Português, excecionando a sua ilegitimidade e a incompetência material da jurisdição comum para conhecer da causa, que considera dever ser atribuída aos tribunais da jurisdição administrativa.
Sustentou, em suma, que o contrato foi celebrado no âmbito dos poderes discricionários do GAS, na medida em que, se os vendedores não tivessem concordado com a venda, o GAS desencadearia a expropriação do prédio.
Por fim, impugnou os factos alegados pelos autores.
Os autores responderam às excepções, defendendo, além do mais, que as partes celebraram o contrato no estrito domínio da liberdade contratual, sem que o GAS interviesse no exercício de poderes de autoridade e sem que o preço acordado possa ser equiparado a uma indemnização no âmbito de um processo de expropriação. Reafirmaram, assim, a competência material dos tribunais judiciais para a decisão do litígio dos autos.
O Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo Central Cível de Setúbal – Juiz 1, proferiu despacho saneador em 7 de Julho de 2020, julgando verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, declarando-se incompetente em razão da matéria para apreciar o mérito da ação e atribuindo a competência aos tribunais administrativos.
Para tanto, concluiu que o prédio em causa foi adquirido no exercício das competências administrativas do GAS, no desenvolvimento de uma relação jurídica administrativa com os particulares, “tendo em conta, não só a natureza dos sujeitos envolvidos, mas também, e vincadamente, a natureza pública do objecto do contrato e dos interesses através dele manifestamente prosseguidos, os quais evidenciam uma clara ambiência de direito público”.
Os autores interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 11 de Março de 2021, manteve o despacho recorrido.
Daquele acórdão da Relação ... vieram os autores interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. O recurso não foi admitido, com fundamento no n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil (dupla conformidade entre as decisões das instâncias) – despacho de fls. 138.

2. Do despacho de não admissão de recurso foi apresentada reclamação para o Tribunal dos Conflitos, nos termos do disposto no artigo 643.º do mesmo Código de Processo Civil, concluindo os recorrentes que “o despacho de não admissão de recurso” deve ser “revogado e substituído por outro que o admita, convolando-o em alegações de recurso interpostas para o Tribunal de Conflitos, por ser este que, nos termos conjugados do disposto nos artigos 101.º, n.º 2 do C.P.C. e 3.º, Al. c) da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro, tem competência para dele conhecer; convolado que seja o recurso, requer-se a sua remessa ao tribunal competente”.
O Estado Português pronunciou-se no sentido de dever ser admitida a reclamação.
Por despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, foi determinado que se seguissem os termos previstos na Lei que regula o Tribunal dos Conflitos (a Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro). O Ministério Público proferiu parecer, no sentido de que “a competência para conhecer da presente acção deverá ser atribuída ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Setúbal”.
A reclamação foi deferida, pelo despacho de fls. 62. O recurso foi admitido como recurso para o Tribunal dos Conflitos.

3. Nas alegações que haviam apresentado, os recorrentes formularam as seguintes conclusões (transcrevem-se as que interessam ao julgamento do presente recurso):
“(…) 4.ª. Não podem as recorrentes conformar-se com tal decisão [do Tribunal da Relação de Évora] por entenderem que a mesma resulta de deturpada subsunção dos factos aos normativos aplicáveis, designadamente os artigos 1.º e 4.º do ETAF e dos artigos 60.º, n.º 2, 64.º e 65.º do Código de Processo Civil;
5.ª Pois que os fins e a natureza da escritura de compra e venda do prédio referida nos autos em momento algum se equipara a uma relação do foro administrativo;
6.ª Tendo as partes actuado livres na sua vontade e munidas de total liberdade de estipulação, o G.A.S. querendo comprar e os vendedores querendo vender. Foram livremente estipuladas as cláusulas da escritura e foi livremente estipulado o preço;
7.ª O que não aconteceria no âmbito de uma relação administrativa na qual uma das partes actua na prossecução de interesses públicos podendo impor a sua vontade.
8.ª Na escritura de compra e venda em crise não houve qualquer expropriação não houve pagamento de indemnização, assim como não houve actuação do G.A.S. munido de ius imperii, sendo a escritura outorgada em cartório notarial;
9.ª As partes adoptaram uma estrutura para a forma de transmissão de propriedade – vulgar escritura de compra e venda – e não escritura lavrada perante notário privativo do G.A.S. ou de outro ente público, sendo todo o conteúdo da escritura um negócio jurídico de direito privado não havendo em momento alguma invocação de normas jurídico-administrativas para a sua celebração;
10.ª Não se verificaram os trâmites da expropriação amigável, previstos no artigo 33.º do Código das Expropriações e manifestamente distintos das aquisições celebradas ao abrigo de Direito Privado e previstas no artigo 11.º do mesmo Código, caracterizada, a primeira, por acta de investidura judicial o qual apenas teria lugar após a celebração da escritura e depois de junto pelo expropriante o depósito do montante da indemnização, cujo pagamento não seria assim contemporâneo da escritura, como foi no caso dos autos;
11.ª As declarações das partes, que, reitere-se, foram de celebração de negócio jurídico de natureza privada, exprimem a sua vontade real, conforme aliás preceituado pelo artigo 238.º do CC;
12.ª Nenhuma regra de Direito Administrativo é convocada para decidir o litígio, tal como os Recorrentes, AA da acção, configuram a causa de pedir (cfr. p.i.);
13.ª O facto de ser o extinto GAS entidade pública não significa nem altera o facto de o negócio jurídico entre as partes outorgado – escritura pública de compra e venda – ser negócio jurídico de direito privado;
14.ª Sendo toda a matéria que lhe subjaz igualmente de direito privado, não podendo ser dirimida através de normas de Direito Administrativo, pois que não foram tais normas que nortearam a sua outorga.
15.ª Ademais, a expropriação era subsidiária à celebração de escrituras de compra e venda, nos termos dos artºs 3.º/1. Al. j) e 36.º do D.L. 270/71 (…);
(…) 19.ª Mais acresce que tem a jurisprudência entendido que a configuração da causa de pedir feita pelo Autor confere competência material aos Tribunais, pelo que, havendo os ora Recorrentes conferido à causa de pedir matéria do foro privado, civil, deveria o Tribunal a quo conhecer do litígio;
(…) 23.ª Concluindo-se assim que, sendo privada a relação jurídica existente entre o GAS e os vendedores que determinou a outorga da escritura de compra e venda em crise, não sendo para a sua celebração chamada à colação qualquer norma de direito administrativo, não se verificando qualquer processo de expropriação amigável e atendendo máxime às declarações das partes nela contidas, que exprimem a sua vontade real e que devem como tal ser interpretadas, que o negócio jurídico celebrado, tal como configurado pelas Recorrentes na sua petição inicial, se traduz numa relação jurídica de direito privado, subsumível às normas e princípios da Teoria Geral do Direito Civil e de Direito das Obrigações;
24.ª O conhecimento de quaisquer litígios emergentes da referida relação jurídica é da exclusiva competência dos Tribunais comuns, pois o decisor não carece de analisar ou aplicar qualquer norma de Direito Administrativo
25.ª Por último, requereram os Recorrentes, por se verificarem dúvidas sobre a questão da jurisdição competente para dirimir o litígio, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15.º, n.º 1, da Lei 91/2019 de 4 de Setembro, a sujeição da questão suscitada a consulta prejudicial do Tribunal dos Conflitos, a fim de se decidir de forma célere e em definitivo da questão de competência suscitada;
(…) 30.º (…) devia o Tribunal da Relação ... ter submetido a questão ao tribunal de conflitos, o que respeitosamente se requer a Vexas caso não se entenda desde logo reconhecer legal competência da jurisdição comum.
Nestes termos (…),
a) Deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser o acórdão recorrido revogado e substituído por outro que decida não se verificar excepção de incompetência absoluta do Tribunal, declarando competente o tribunal de comarca para conhecer do litígio impetrado nos autos e determine a marcha normal do processo;”
b) Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15.º da Lei do Tribunal dos Conflitos requerem seja remetida consulta prejudicial destinada a conhecer em definitivo da competência, se for o caso;
c) Finalmente e sem conceder, sempre deviam os autos ser remetidos ao tribunal competente, dada a falta de fundamento para assim não ser feito, nos termos do artº 99.º do C.P.C.”.

O Ministério Público contra-alegou, sustentando que deve ser negado provimento ao recurso; sustentou ainda que a consulta prejudicial “não está prevista para as situações em que a questão da jurisdição competente é, ela própria, objecto do recurso interposto (…)” uma vez que está em causa um conflito que “deriva de um contrato celebrado entre um particular e uma entidade que prosseguia funções de direito administrativo”.

4. Os factos relevantes constam do relato dos autos. Salientam-se, todavia, os seguintes, aliás aceites pelo Ministério Público na contestação:

1 - No dia 9 de Maio de 19764, por escritura pública outorgada no ... Cartório Notarial de ..., AA e sua mãe, DD, venderam ao extinto Gabinete do Plano de Desenvolvimento da Área de Sines, o prédio, com parte urbana e parte rústica, denominado "...”, sito na freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ..., do livro ..., registado a favor de ambos na proporção de quatro sextos para DD pelas inscrições números ..., do livro ..., e ..., do livro ..., e de dois sextos para AA pela inscrição número ..., do livro ... – cfr. doc. 3 (escritura).
2 - A compra e venda foi outorgada pelo montante, à data, de 1.270.000$00 (…).

5. Cumpre conhecer do recurso, cujo objecto se traduz em determinar qual é a jurisdição competente para conhecer do pedido dos autores, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Os tribunais administrativos, “por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais),
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção.
Disse-se no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, processo n.º 020/18: “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos [por todos, AC STA de 27.09.2001, Rº47633; AC STA de 28.11.2002, Rº1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 09.03.2004, 0375/04; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 03.03.2011, 014/10; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10; AC Tribunal de Conflitos de 05.05.2011, 029/10; AC Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, 02/12; AC Tribunal de Conflitos de 27.02.2014, 055/13; AC do Tribunal de Conflitos de 17.09.2015, 020/15; AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14].
A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.

6. No caso dos autos, os autores alegam, em suma, que entre os seus antecessores e o extinto Gabinete do Plano de Desenvolvimento da Área de Sines (GAS) foi celebrado, em 9 de Maio de 1974, por escritura pública, um contrato de compra e venda através do qual os primeiros venderam ao segundo o prédio misto, identificado nos autos, pelo preço de 1.270.000$00.
Mais alegam que comprador e vendedores outorgaram a escritura “apenas e tão só para a instalação dos empreendimentos integrados no Plano Geral da Área ...” e que “é um facto público e notório que o prédio nunca foi afecto ao fim para o qual foi comprado”
Referem, também, que o GAS foi criado pelo Decreto-Lei n.º 270/71, de 19 de Junho, com o objetivo de promover o desenvolvimento urbano-industrial das zonas de ... e ... e que, decorridos dois anos sobre a publicação daquele diploma, foi declarada a expropriação sistemática, a realizar pelo GAS, dos prédios sitos no concelho ... e .... Concretizam que, nessa decorrência, o GAS empreendeu a notificação dos proprietários dos terrenos expropriados, o que ocorreu até 1985 e, noutros casos – como o dos autos – outorgou escrituras de compra e venda, para aquisição.
Por fim, salientando que as partes celebraram o contrato de compra e venda em causa “apenas e tão só” para a instalação dos empreendimentos do Plano Geral da Área ..., jamais admitindo que ao prédio transmitido fosse dado outro destino, concluíram que a circunstância de o GAS e de as entidades que lhe sucederam após a sua extinção não terem procedido à afectação a que o imóvel se destinava sempre determinará a resolução do contrato por parte dos vendedores, “seja qual for a interpretação que se dê à declaração tácita de destinar o bem vendido para a instalação de um complexo industrial que o comprador nunca realizou”.
Aqui chegados, importa apurar se nos encontramos perante uma questão de natureza meramente privada (ou jurídico-civil), relativa ao incumprimento de um contrato de compra e venda de um imóvel, ou se estamos perante uma questão jurídica que assume contornos que lhe conferem natureza administrativa.
Entendeu-se na decisão do Juiz ... do Juízo Central Cível ... que o prédio em causa foi adquirido no exercício das competências administrativas do GAS, no desenvolvimento de uma relação jurídica administrativa com os particulares; e que, situando-se “na zona de actuação do GAS”, o prédio se encontrava sujeito a todas as limitações decorrentes do interesse público que determinou a criação do GAS e da competência, que lhe foi especialmente atribuída, “em relação à área demarcada na planta anexa” ao Decreto-Lei n.º 270/71, de 19 de Junho, para proceder à “aquisição de terrenos necessários para a instalação e funcionamento dos seus serviços ou para a realização de trabalhos, bem como para a execução dos planos, promovendo a respectiva expropriação quando necessário”.
Por seu turno, sustenta-se no Acórdão do Tribunal da Relação ... tratar-se de um contrato celebrado no contexto das “prerrogativas de autoridade” atribuídas ao GAS, “que impunham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos os intervenientes, por razões de interesse público, diferentes das que se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada”.
A propósito da noção de “relação jurídica administrativa”, escreveu José Carlos Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 53):
na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.
Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
O Decreto-Lei n.º 270/71, de 19 de Junho, criou o Gabinete do Plano de Desenvolvimento da Área de Sines, abreviadamente designado por Gabinete da Área de Sines, destinado a promover o desenvolvimento urbano-industrial da respetiva zona (art. 1.º, n.º 1), conferindo-lhe personalidade jurídica e autonomia administrativa e financeira (art. 1.º, n.º 2).
Nos termos do art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 270/71, eram atribuições suas
a) Promover, na zona delimitada no n.º 2, a criação de uma área de implantação concentrada de indústrias de base e de um terminal oceânico, dotados das adequadas infra-estruturas e dos necessários serviços de apoio;
b) Promover, na mesma zona, a instalação de outros empreendimentos industriais que possam contribuir para o mais harmónico desenvolvimento do complexo;
c) Promover, ainda na mesma zona, a criação dos centros urbanos exigidos pela concentração populacional resultante do exercício das actividades industriais e a instalação e o funcionamento dos respectivos equipamentos sociais;
d) Propor a adopção das formas de gestão mais convenientes para os diversos empreendimentos a realizar. (…)
Nos termos do art. 3.º, n.º 1, alínea j), para o exercício das suas atribuições, competia especialmente ao Gabinete da Área de Sines, “Proceder à aquisição de terrenos e outros imóveis necessários para a instalação e funcionamento dos seus serviços ou para a realização de trabalhos, bem como para a execução dos planos, promovendo a respectiva expropriação, quando necessária”.
Decorre, por outro lado, do artigo 36° do mesmo diploma terem sido declaradas de utilidade pública urgente as expropriações necessárias para a execução dos planos geral e parciais que fossem aprovados para a área de actuação direta do GAS, dispondo o respectivo n.º 2 que, mesmo antes de “existirem planos aprovados, considera-se desde já declarada a utilidade pública urgente das expropriações necessárias (…)”.
No caso dos autos, o prédio em causa situava-se na zona de atuação do GAS e foi adquirido ao abrigo do Decreto-Lei 270/71, estando o respetivo contrato sujeito à disciplina ali consagrada, designadamente à decorrente do mencionado art. 3.º, n.º 1, alínea j).
Assim, se é certo que o contrato foi celebrado entre as partes, por escritura pública, sem dependência de qualquer acto ou processo expropriativo, a verdade é que a aquisição do imóvel teve na sua génese as especiais atribuições do GAS, de promoção do desenvolvimento urbano-industrial da respetiva zona, que, em última análise, sempre lhe facultariam a possibilidade de promover a expropriação, quando e se necessário.
Desta forma, tendo o GAS atuado no exercício de um poder público, com vista à realização de um interesse público legalmente definido, tem todo o fundamento a conclusão a que chegou o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora quanto ao enquadramento administrativo da relação contratual descrita pelas autoras.
Tem plena aplicação ao caso a doutrina exposta no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 23 de Janeiro de 2020, www.dgsipt, proc. n.º 32/20, segundo o qual 4. Sendo certo que foi celebrado um contrato de compra e venda entre os AA. e o R. MPorto, a verdade é que ele funcionou como sucedâneo da expropriação amigável, impossibilitada a mesma, como acima se disse, pela indisponibilidade manifestada pelos AA. em vender a sua parcela de terreno. Antes da celebração do contrato em questão, o MPorto conseguiu que a parcela de terreno dos AA. fosse declarada como de interesse público para efeitos de expropriação. Com a declaração de utilidade pública, o direito de propriedade dos interessados é sacrificado e os bens por ela atingidos ficam de imediato adstritos ao fim específico da expropriação. A substituição da expropriação amigável pela compra e venda dos bens expropriados, in casu, da parcela de terreno dos AA., não transmuta a relação jurídico-administrativa decorrente da expropriação numa relação jurídico-privada.
O contrato de compra e venda apenas serve como meio mais expedito para concluir rapidamente o procedimento de expropriação, pelo que, mantendo-se a natureza expropriativa do contrato, o pedido de resolução do mesmo contrato por pretenso incumprimento do fim expropriador move-se no âmbito da relação jurídico-administrativa de expropriação, transportando a resolução dos litígios dela emergentes para a jurisdição administrativa. Efectivamente, cumpre sublinhar que o pedido de resolução do contrato de compra e venda visa a reversão da parcela expropriada (artigo 5º do CE). A reversão traduz-se no direito conferido ao expropriado de recuperar os bens expropriados quando os mesmos se mostrarem desnecessários para a realização do interesse público que justificou a expropriação. E esse fenómeno da reversão baseia-se em fundamentos de direito público e a sua competência é deferida à entidade que houver declarado a utilidade pública da expropriação ou que haja sucedido na respetiva competência (artigo 74º/1 do CE).”
Não é a indisponibilidade para vender o prédio, referida neste acórdão de 23 de Janeiro de 2020, que agora interessa, uma vez que o direito de propriedade dos autores foi desde logo onerado nos termos do disposto no artigo 36.º do citado Decreto-Lei n.º 270/71 e que, conforme publicado na II Série do Diário do Governo de 12 de Julho de 1973, o Conselho de Ministros declarou a expropriação sistemática, a realizar pelo GAS, dos prédios sitos no concelho de Sines e Santiago do Cacém.
Esta oneração retira relevo a uma interpretação do disposto na al. j) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 270/71 que considere subsidiária a expropriação.

7. Conclui-se, portanto, que a relação controvertida, balizada pelo pedido e pela causa de pedir definidos pelos autores, tem natureza administrativa, cabendo à jurisdição administrativa a sua apreciação, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1.º e na al .o) do n.º 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, concretamente, ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja (artigo 17.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e art.º 3.º e mapa anexo do Decreto-Lei n.º 325/2003, de 29 de Dezembro).

Nega-se, portanto, provimento ao recurso.
Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

Lisboa, 9 de março de 2022. – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.