Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:038/19
Data do Acordão:02/06/2020
Tribunal:CONFLITOS
Relator:PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P25569
Nº do Documento:SAC20200206038
Data de Entrada:07/08/2019
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE OS JUÍZOS DE PEQUENA INSTÂNCIA CÍVEL DE LISBOA – 1 JUÍZO E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA – 4 UNIDADE ORGÂNICA
AUTOR: A... CRL
RÉU: B... S.A E OUTRA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 38/19

Acordam no Tribunal dos Conflitos:

I. Relatório

1. A……….., CRL intentou ação, com processo sumaríssimo, no extinto Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, contra B………., S.A. e C……….., pedindo que as Rés sejam condenadas a pagar-lhe a quantia de €536,78, acrescida de juros de mora legais contados desde a citação até integral e efetivo pagamento.

Alega, em síntese, que:

- é proprietária do táxi, com a matrícula ………., o qual no dia 11/04/2013 se encontrava na zona de chegadas do aeroporto de Lisboa a aguardar passageiros, sendo o primeiro táxi da fila quando a 2ª Ré pretendeu tomar um táxi;

- no local onde se encontrava o táxi existe um corredor destinado a quem pretende tomar um táxi, no final do qual há um local para serem deixados os carrinhos de bagagem onde se encontrava um funcionário que acondicionava os referidos carrinhos, encaixando-os nos anteriores;

- a 2ª Ré encontrava-se no corredor e tinha acondicionado a sua bagagem num carrinho de bagagens;

- a 2ª Ré retirou a sua bagagem do carrinho sem o segurar nem se certificar que o mesmo ficava imobilizado;

- após a 2ª Ré ter retirado a sua bagagem do carrinho este deslizou desgovernado pelo corredor, desceu o lancil do passeio, tombou e embateu no seu táxi, provocando-lhe estragos;

- o funcionário que se encontrava no local nada fez para evitar o deslizamento do carrinho de bagagens;

- para a reparação dos estragos gastou €352,64 e teve de imobilizar o veículo durante dois dias, pelo que deixou de auferir €184,14.

2. Citadas, as Rés vieram contestar:

A Ré B………, S.A. por exceção, arguindo a exceção de ilegitimidade e a incompetência material dos tribunais judiciais para conhecer do litígio, e por impugnação, alegando que não se verificam os pressupostos de que depende a sua responsabilidade;

A Ré C…………, por impugnação, alegando que quando o carrinho deslizou pelo corredor já tinha retirado a sua bagagem e deixou o carrinho para que o mesmo fosse acondicionado pelo funcionário da 1ª Ré.

3. No extinto 1º Juízo dos Juízos de Pequena Instância Cível de Lisboa foi proferida a seguinte decisão: “julgo o presente tribunal absolutamente incompetente, em razão da matéria e, em consequência, absolvo as rés da instância.”

4. Remetido o processo para o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, veio a ser suscitada a questão da incompetência material dos tribunais administrativos para conhecer do pedido dirigido contra a 2ª Ré.

5. Neste Tribunal veio a ser proferida a seguinte decisão:

“I – Declara-se este tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido quanto à 2ª ré C………… e, em consequência, absolve-se a 2ª ré da instância.

II – Julga-se improcedente a acção quanto à 1ª ré B…………, SA, e, em consequência, absolve-se esta ré do pedido.”

6. O TAC de Lisboa suscitou oficiosamente o conflito negativo de jurisdição relativamente ao pedido formulado contra a 2ª Ré.

7. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal dos Conflitos emitiu parecer no sentido de o conflito negativo de jurisdição dever ser dirimido com a atribuição da competência aos tribunais judiciais.

8. Cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objeto

A questão a decidir consiste em saber a que jurisdição deve ser deferida a competência para apreciar e julgar o litígio dos autos, no que respeita à 2ª Ré dado que relativamente à Ré B…………, S.A. não existe qualquer conflito, tendo já sido proferida decisão sobre a pretensão da Autora relativamente a esta 1ª Ré – se à jurisdição comum ou se à jurisdição administrativa.

III. Fundamentação

1. Factualismo processual relevante

1.1. Para decisão do objeto do presente recurso, releva o factualismo antes referido no precedente Relatório, para o qual se remete.

2. Apreciação

Prescreve o artigo 209.° da Constituição da República Portuguesa: «1. Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais: a) O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância; b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais; c) O Tribunal de Contas.»

Os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada ou de competência genérica, enquanto os restantes tribunais, constituindo exceção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 208).

Quer isto significar que todas as ações, que exorbitem das matérias especificamente conferidas aos tribunais especiais (hoc sensu), cabem na esfera (geral) da competência indiscriminada dos tribunais judiciais (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, loc. cit., pág. 209).

É o que resulta, justamente, do disposto no artigo 211.°, n.º 1, da CRP, que prevê: «1. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. 2. Na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas» e, na lei ordinária, no disposto nos artigos 64.° do Código de Processo Civil e 40.°, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.° 62/2013, de 13 de janeiro, e alterada pela Lei nº 40-A/2016, de 22 de dezembro.

Dentro da vasta categoria dos tribunais judiciais ou juízos dos tribunais de comarca (cfr. artigo 40°, nº 2, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, na redação dada pela Lei nº 40-A/2016, de 22 de dezembro), a lei distingue entre tribunais de competência genérica e tribunais de competência especializada ou juízos de competência especializada (artigo 80°, nº 2, da LOSJ), e, nestes, os juízos (central e local) cíveis e criminais, Instrução Criminal, Família e Menores e Trabalho (artigo 81°, nº 3, da LOSJ)

A par da ordem dos tribunais judiciais, conta-se com a ordem dos tribunais administrativos e fiscais.

Por efeito de aplicação do apontado critério de atribuição de competência residual ou negativa, apenas e só no caso de a competência para apreciar e julgar a presente ação não se encontrar especificamente atribuída à jurisdição administrativa, será a jurisdição comum a competente para tanto.

A circunscrição das jurisdições, correspondentes aos tribunais judiciais, por um lado, e aos tribunais administrativos e fiscais, por outro lado, implica a apreciação das concernentes áreas de competência, constituindo um pressuposto processual que deve ser apreciado antes da questão (ou questões) de mérito, aferindo-se pela forma como o autor configura a ação, e definindo-se pelo pedido, pela causa de pedir e pela natureza das partes.

Para esse fim, atender-se-à aos termos em que foi proposta a ação, seja quanto aos seus elementos objetivos – natureza da providência solicitada ou do direito para a qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato de onde teria resultado esse direito, etc. – seja quanto aos seus elementos subjetivos – identidade das partes.

É pacífico o entendimento jurisprudencial e doutrinário segundo o qual a competência em razão da matéria do tribunal se afere pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respetivos fundamentos (causa de pedir).

Deverá atender-se ao pedido e, especialmente, à causa de pedir formulados pelo autor, pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante ou, nas palavras de Alberto dos Reis, é por esta forma que se caracteriza o “modo de ser da lide” (José Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, I, Coimbra Editora, 1944, p. 110; no mesmo sentido Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pág. 91).

A competência do tribunal em razão da matéria é fixada, deste modo, em função dos termos em que a ação é proposta, ou seja, pelo modo como o autor estrutura a causa, sem que para esse efeito releve a prognose acerca do êxito da ação ou seja lícita qualquer indagação incidindo sobre o respetivo mérito.

Na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos encontramos este entendimento vertido nos seguintes arestos, todos com publicação nas bases de dados do IGFEJ: 06/02, de 05/02/2003; 22/03, de 04/03/2004; 13/05, de 19/01/2006; 06/05, de 26/04/2006; 25/10, de 29/03/2011; 19/14, de 21/01/2015; 08/14, de 01/10/2015.

No caso presente importa, assim, analisar a relação processual tal como está configurada pelo seu autor em função do pedido e da causa de pedir.

Instaurando a presente ação em 28/08/2013, no extinto Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, peticiona o autor a condenação das Rés, B…………., S.A. e C…………, no pagamento da quantia de €536,78, acrescida de juros de mora legais, contados desde a citação até integral pagamento.

Fundamenta a pretensão na responsabilidade civil extracontratual da 2ª Ré (no caso presente, só está em causa a pretensão formulada pela Autora contra esta Ré, dado que o Tribunal Administrativo já se pronunciou sobre a responsabilidade da 1ª Ré), porquanto: a viatura da A. era a primeira da fila de táxis, o motorista da A. saiu da viatura e deslocou-se à traseira da mesma para abrir o porta-bagagens, com o objetivo de ali acondicionar a bagagem da 2ª Ré, que esta tinha colocado num carrinho de bagagem; este, após a 2ª Ré dele retirar a sua bagagem, deslizou, desgovernado, pelo corredor dos passageiros, desceu o lancil do passeio, tombou e embateu na viatura da A.; junto ao corredor dos passageiros encontrava-se o funcionário que acondiciona o parqueamento dos carrinhos de bagagens, após serem utilizados pelos passageiros, o qual nada fez para evitar o deslizamento do carrinho de bagagens que embateu na viatura da A.; bem como a 2ª Ré que também não segurou o referido carrinho, não se certificando que o deixava imobilizado após dele retirar a bagagem.

Estes são o pedido e a causa de pedir tal como apresentados pela Autora.

Segundo o artigo 212.°, n.º 3, da CRP, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Neste, estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico – administrativas (ou fiscais) (n.º 3, in fine), qualificação esta que transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.

Verificando a data da instauração da ação – 28/08/2013 - há que ter em atenção o regime vertido no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais – ETAF –, na redação anterior ao Decreto - Lei n.º 214-G/2015, de 02 de outubro, dado que é critério expresso na LOSJ, no seu artigo 38.°, que a fixação da competência ocorre no momento da propositura da ação, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente, salvo as exceções ali previstas.

Neste preceito, a lei define o momento a partir do qual se devem considerar cristalizados os factores condicionantes de atribuição de competência do tribunal.

- cfr. artigo 5°, nº 1, do ETAF –

Sob a epígrafe “Jurisdição administrativa e fiscal”, estabelece o artigo 1.º, n.º 1, do ETAF, que: “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Se inexistir determinação expressa em sentido diferente, contida em lei avulsa, para a determinação da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal devem valer os critérios contidos nos artigos 1.º, n.ºs 1 e 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Do artigo 4°, nº 1, deste último diploma, decorre que em matéria de responsabilidade civil extracontratual, os tribunais administrativos conhecem de:

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;

i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público.

Como se refere na decisão do TAC, a eventual responsabilidade da 2ª Ré de indemnizar a Autora pelos danos que esta terá sofrido não se enquadra em qualquer das previsões legais atrás referidas, sendo que nada é alegado que permita concluir que à 2ª Ré é aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público.

É neste sentido - não havendo nota do contrário - que singra o entendimento vertido em vários arestos, do Tribunal dos Conflitos (v.g., n.º 08/14, de 01-10-2015, e n.º 12/15, de 08/03/2017, mas também do Supremo Tribunal de Justiça (Proc. n.º 492/09.2TTPRT.P1.S1, de 30/03/2011; Proc. n.º 204/11.0TTVRL.P1.S1, de 12/09/2013; Proc. 2596/11.2TTLSB.L1.S1, de 18/06/2014; e Proc. 117/14.4TTLMG.C1.S1, de 16/06/2015), todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Assim, tem de se concluir pela competência, em razão da matéria, dos Tribunais Judiciais

IV. Decisão

Posto o que precede, acordam os Juízes neste Tribunal dos Conflitos em decidir o presente conflito negativo de jurisdição, atribuindo a competência, em razão da matéria, para conhecer do objeto da ação, no que concerne à Ré C…………., aos Tribunais Judiciais.

Sem custas.

Lisboa, 6 de fevereiro de 2020. – António Pedro de Lima Gonçalves (relator) – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Maria Rosa Oliveira Tching – José Augusto Araújo Veloso – Olindo dos Santos Geraldes – José Francisco Fonseca da Paz.

(processado e integralmente revisto pelo relator, que assina e rubrica as demais folhas)