Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:054/19
Data do Acordão:03/02/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
SERVIDÃO DE PASSAGEM
TRIBUNAIS COMUNS
Sumário:Incumbe aos Tribunais Judiciais o julgamento de uma acção em que está em causa um pedido de reconhecimento de um direito de propriedade e de um direito de servidão que, face a um procedimento expropriativo, e respectiva posse, afectou e inviabilizou o exercício desses direitos.
Nº Convencional:JSTA000P27291
Nº do Documento:SAC20210302054
Data de Entrada:11/13/2019
Recorrente:A……………… E ESPOSA, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL DA COMARCA DE BRAGA – GUIMARÃES – INSTÂNCIA LOCAL – SECÇÃO CÍVEL - J3 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA UNIDADE ORGÂNICA 1
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Referência a Pareceres:
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório

A…………….. e esposa B………………, identificados nos autos, intentaram no Tribunal da Comarca de Braga, Instância Local Cível de Guimarães, acção contra C………. e esposa D……………… e Infraestruturas de Portugal, S.A., pedindo a condenação dos RR. a reconhecerem que o prédio dos AA, que identificam, se encontra encravado em consequência da obra de reconversão em via larga do troço Lordelo/Guimarães e remodelação de estações e apeadeiros identificados, bem como a reconhecerem que o desencrave só pode efectuar-se pelo prédio dos primeiros RR, situado a poente do prédio dos AA. Pedem ainda que seja constituída uma servidão de passagem através do prédio dos primeiros RR para acesso à via pública, sendo a respectiva indemnização e obras necessárias suportadas pela segunda R.
Em síntese, alegam serem donos e legítimos proprietários do prédio rústico que identificam e que, em consequência da sua expropriação parcial e da execução das obras que lhe sucedeu, tal prédio ficou encravado e sem possibilidade de acesso à via pública.
Em 16.11.2015, na Instância Local Cível de Guimarães, foi proferida decisão (fls. 138) a julgar aquele tribunal incompetente em razão da matéria para apreciação da acção intentada.
Os AA interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 30.06.2016 (fls. 183 a 197), confirmou a decisão recorrida.
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, para o qual foram os autos remetidos a requerimento dos AA, e após junção da petição inicial corrigida (fls. 277 a 282), decidiu em 30.04.2019 (fls. 348 a 356) julgar aquele tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer do objecto da acção.
Após trânsito em julgado, o MP junto do TAF de Braga solicitou a resolução do conflito negativo de jurisdição.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei n.º 91/2019, tendo o A. apresentado articulado (fls. 375 a 379) em que pugna pela atribuição da competência aos tribunais judiciais.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer (fls. 358 a 365) no sentido de que a competência para apreciar a acção proposta deverá ser atribuída aos tribunais da jurisdição comum, no caso, o Tribunal da Comarca de Braga, Instância Local Cível de Guimarães.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre Tribunal da Comarca de Braga - Instância Local Cível de Guimarães e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
Entendeu a Instância Local Cível de Guimarães, com invocação dos arts. 211º, n.º 1 da CRP, 40º, nº 1 da LOSJ e 4º, nº1, alínea f) do ETAF, que o litígio em causa tinha por objecto questões relativas a responsabilidade civil extracontratual de pessoa colectiva de direito público, sendo que a causa de pedir era uma alegada violação danosa do direito de propriedade dos AA. decorrente da actividade levada a cabo por empresa pública, no uso do seu jus imperii, concluindo pela incompetência em razão da matéria daquele Tribunal. Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, este confirmou o decidido concluindo que sempre que "o litígio envolva uma entidade pública, em quadro de imputação à mesma do facto gerador de um dano, o conhecimento desse litígio compete aos tribunais da ordem administrativa, independentemente da natureza do direito substantivo aplicável.".
Remetido o processo ao TAF de Braga este, por sua vez, também se considerou incompetente em razão da matéria, apoiando-se para o efeito no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 08.02.2018, no Proc. 046/17, por considerar que, atendendo aos factos articulados na petição inicial, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados, o conhecimento da matéria na presente acção se encontra excluído da jurisdição administrativa, de acordo com o estipulado no art.º 4.º, n.ºs 1 e 2, a contrario, do ETAF, na redacção dada pelo DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro.

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, 1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (arts. 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção anterior ao DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data da propositura da acção - 08.08.2015, data de autuação na Instância Local de Guimarães - é a que aqui releva) com delimitação do "âmbito da jurisdição" mediante uma enunciação positiva (nº 1) e negativa (nºs 2 e 3).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14, “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo".
No caso, os AA. pedem ao Tribunal que seja reconhecido que o seu prédio se encontra encravado em resultado da obra levada a cabo pela 2ª R., que o desencrave seja efectuado pelo prédio dos 1ºs RR., através da constituição de uma servidão de passagem de acesso à via pública pelo trajecto que for julgado menos prejudicial, a fixar pelo Tribunal segundo o seu prudente critério, e que a 2ª R. custeie o valor da execução da obra e da indemnização a atribuir pela constituição da servidão.
A propósito das servidões prediais escreveu-se no aresto proferido pelo STJ em 25.10.2018, Proc. 383/14.5T8MTS.P1.S1: " ... seguindo aqui de perto o que se escreveu no acórdão de 2 de Fevereiro de 2017, www.dgsi.pt, proc. nº 85/11.4TBSRT.C1.S1 «(...) este Supremo Tribunal tem repetidamente recordado cfr. apenas a título de exemplo, o acórdão de 8 de Maio de 2013 -, [que] "Como se sabe e o artigo 1543º do Código Civil define, as servidões prediais consistem num encargo imposto a um prédio em benefício de outro prédio, pertencente a dono diferente. Têm natureza real e oneram todo o prédio serviente, e não apenas a parte concretamente afectada (artigo 1546° do Código Civil). Possibilitam o aproveitamento de determinadas utilidades do prédio serviente, variáveis consoante o respectivo conteúdo, e implicam as correspondentes restrições para o (qualquer) titular do prédio dominante, que fica impedido de praticar actos que prejudiquem aquele aproveitamento (nº1 do artigo 1568° do Código Civil; cfr. acórdão de 2 Julho de 2007, www.dgsi.pt, proc. nº 08B3995)". O âmbito da servidão - ou seja, deste benefício em favor do prédio dominante e correspondente oneração do prédio serviente define-se pelo respectivo conteúdo, que é variável consoante as "utilidades" assim possibilitadas (artigo 1544º do Código Civil)".
Os requisitos legais que permitem a constituição da servidão legal de passagem constam do art. 1550º do Código Civil (doravante CC) e por ela é devida indemnização correspondente ao prejuízo sofrido (art. 1554º do CC).
Assim, a questão essencial a dirimir na presente acção não emerge de uma relação jurídica administrativa mas antes de uma relação regulada pelo direito civil. A pretendida constituição de uma servidão predial envolve prédios rústicos, serviente e dominante, e os respectivos proprietários, são sujeitos de direito privado.
Por outro lado, os Autores não discutem nenhum aspecto da expropriação por utilidade pública, pretendem apenas que seja garantido o acesso do seu terreno à via pública sem suportarem os custos da indemnização. Ora, a questão de quem é responsável pela indemnização devida pela constituição da servidão só poderá ser equacionada se se tornar efectivo o direito de a constituir.
Como se referiu, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos. Na configuração que é dada pelos AA, a causa de pedir e os pedidos emergem de relações de direito privado e não de uma relação jurídica administrativa.
Como se escreveu no ac. de 08.02.2018, Proc. 046/17 deste Tribunal dos Conflitos: «A causa de pedir na presente acção é, pois, um prejuízo efectivo resultante do processo expropriativo.
Na verdade, como os autores alegam, foi expropriada uma parcela do seu prédio assim como uma parcela de um terreno que integrava um caminho de servidão ao seu prédio.
Da forma como vem articulado a petição a falta de acesso ao prédio dos AA resulta da expropriação de uma parcela de um caminho de servidão pertencente a terceiro e que tornou o seu prédio inacessível.
Está, assim, aqui em causa um pedido de reconhecimento de um direito de propriedade e de um direito de servidão que, face a um procedimento expropriativo, e respectiva posse, para construção da auto-estrada A4/IP4, afectou e inviabilizou o exercício desses direitos.
Pelo que, estariam em causa prejuízos que advieram para os autores da expropriação de um caminho que servia o seu prédio acrescido da forma como foram executadas as obras no mesmo.
Contudo não vieram os autores lançar mão da arbitragem prevista no art. 38º do CE na redacção da Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, nem de outros mecanismos aí previstos.
Mas, nem por isso deixam os Tribunais Comuns de ser competentes.
(…)
Como se assinala no acórdão deste STJ de 30-4-2002 já invocado, desde a entrada em vigor da primeira lei sobre o processo expropriativo (a Lei de 23 de Julho de 1850), sempre se atribuiu a competência para a fixação da indemnização, aos tribunais comuns, por se considerarem mais adequados à defesa dos direitos dos expropriados.
(…)
Em suma, no caso judice, a Administração actua já despida da sua veste autoritária para se colocar em situação de igualdade perante o particular e, por isso, entende-se ser adequado a remessa dos autos ao tribunal comum para determinação quer do direito dos autores ao acesso à referida parcela sobrante quer de qualquer valor da indemnização que possa resultar para os mesmos da impossibilidade desse acesso.»
Deste modo, não se inscrevendo a acção em nenhuma das alíneas do n.º 1 do art. 4º, do ETAF, que permitam submeter o litígio ao âmbito da jurisdição administrativa, e sendo da competência dos tribunais judiciais conhecer e decidir as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, conclui-se que a competência material para conhecer da presente acção cabe à jurisdição comum (cfr., em situações em tudo semelhantes, os acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 17.11.2015, Proc. 023/15 e de 08.02.2018, Proc. 046/17 acima citado e jurisprudência nele indicada).


Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a acção o Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Instância Local Cível de Guimarães.
Sem custas (nº 2 do art. 5.º da Lei nº 91/2019).

Nos termos e para os efeitos do art. 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13/3, a relatora atesta que a adjunta, Senhora Vice-Presidente do STJ, Conselheira Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza tem voto de conformidade.

Lisboa, 2 de Março de 2021

Teresa de Sousa