Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0541/21.6GAVNG-F
Data do Acordão:07/05/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Compete à jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de um pedido de intimação do Instituto da Segurança Social, IP., para notificar o defensor de um arguido para se pronunciar sobre o despacho de audiência prévia previsto no artigo 23.º da lei n.º 34/2004, de 29 de Julho.
Nº Convencional:JSTA000P31236
Nº do Documento:SAC202307050541
Recorrente:AA
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. AA instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto um processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, previsto no art. 109. °, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativo (CPTA), contra o Instituto da Segurança Social, IP.
Pediu “a intimação da Segurança Social para notificar o defensor do arguido/requerente, nos termos do artigo 11.°, n.º 1 do CPA, para responder ao despacho de audiência prévia e que informem, em 24 horas, o processo 541/21.6GAVNG - J2 dos juízos locais criminais de Vila Nova de Gaia, comarca do Porto, de que foi cometido um lapso e que o defensor do R. não foi notificado, para os efeitos do artigo 111.º do CPA e que o prazo de resposta de audiência prévia está a decorrer”.
Em síntese, alegou que o seu defensor oficioso deduziu pedido de concessão de apoio judiciário no âmbito do processo n.º 541/21.6GAVNG – J2, pendente nos Juízos Locais Criminais de Vila Nova de Gaia; que, porém, contrariando o disposto no art. 111.º do CPA, os serviços da Segurança Social remeteram apenas para a residência do requerente/arguido a carta de notificação para se pronunciar em sede de audiência prévia, sem notificarem o defensor nomeado; que foi proferida decisão final, assente na falta de resposta do requerente/arguido.
Por sentença de 16 de Fevereiro de 2023, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou serem os tribunais administrativos materialmente incompetentes e determinou a remessa dos autos, após trânsito, aos Juízos Locais Criminais de Vila Nova de Gaia.
Para tanto, afirmou que “no caso dos autos, o autor pretende pôr em causa o indeferimento do seu pedido de apoio judiciário, deduzido na pendência do processo judicial n.º 541/21.6GAVNG – J2, que corre termos nos juízos locais criminais de Vila Nova de Gaia, com base em preterição de audiência prévia por o seu defensor não ter sido notificado nessa sede e, consequentemente, pretende a sua invalidação e a retoma do procedimento com cumprimento da referida diligência, no seu entendimento preterida. Assim, competente para conhecer de tal impugnação é o tribunal no qual se encontra pendente o processo a que respeita o pedido de apoio judiciário, no caso, os juízos locais criminais de Vila Nova de Gaia”.
Remetidos os autos, o Juiz ... do Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por despacho de 28 de Março de 2023 (proferido no apenso E), pronunciou-se pela incompetência material do Tribunal para conhecer da causa, afirmando que o pedido formulado se encontra abrangido pela previsão da al. a) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Sustentou, para o efeito, resultar da análise do requerimento do requerente que o mesmo não se destina à impugnação da decisão de indeferimento da concessão do apoio judiciário, mas sim à instauração de uma acção administrativa de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, que se encontra regulada no art. 109.° do CPTA e constitui meio processual principal administrativo.
Notificado, o requerente suscitou a resolução do conflito negativo de jurisdição junto do Tribunal dos Conflitos.

2. Remetidos os autos ao Tribunal dos Conflitos, foi determinado pelo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que fossem seguidos os termos previstos na Lei n.º 91/2009, de 4 de Setembro.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser atribuída competência para conhecer da presente acção à jurisdição administrativa: “Ora, no caso dos autos, o pedido consiste na intimação da Segurança Social para notificar o defensor do arguido/requerente, nos termos do artigo 111.º, n.º 1 do CPA, para responder ao despacho de audiência prévia previsto no art.º 23.º da Lei n.º 34/2004, de 29.07, sendo a causa de pedir a omissão da notificação para esse fim na pessoa do seu defensor. Atento o recorte da acção em causa, a mesma enquadra-se efectivamente na al. a) do n.º 1 do artº 4.º do ETAF, sendo os tribunais administrativos os competentes para conhecer do pedido formulado pelo requerente”.

3. Os factos relevantes para a decisão constam do relatório.
Está pois em causa, apenas, determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido do autor, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 212º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º, n.º 1, e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Os tribunais administrativos «são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº 777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (n.º 2 do artigo 212º da Constituição, n.º 1 do artigo 1.º e artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Como escreve Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 52-53, o legislador deveria esclarecer o que se entende como “relação jurídica administrativa”, nomeadamente para ser possível saber, com segurança, como delimitar o âmbito da jurisdição administrativa: “De facto, face à complexidade actual das relações entre o direito público e o direito privado no âmbito da actividade administrativa, a questão (…) transformou-se numa decisão, numa opção política entre soluções igualmente defensáveis” (nota 68).
«Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.
Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido».
Importa ainda recordar que “a enumeração contida do n.º 1 do artigo 4.º” do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais “visa, em primeira linha (…), a concretização do conceito de ‘litígios emergentes de relações jurídicas administrativas’ (…). Por isso, o conteúdo de cada uma das alíneas deve ser interpretado, em princípio, em função da cláusula geral da Constituição, como a partir de 2015 ficou expressamente afirmado: a tutela de direitos fundamentais e das outras posições jurídicas substantivas referida na alínea a), só cabe aos tribunais administrativos no âmbito das relações de direito administrativo (…) ” (págs. 106 e 107).

4. Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção; ou, ainda, no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, processo n.º 020/18, “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…). A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.
Cumpre ainda recordar que, quer nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a propósito dos Tribunais Judiciais, quer segundo consta do n.º 1 do artigo 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a competência fixa-se no momento da propositura da acção, ou, dito por outras palavras: a competência afere-se pela lei vigente na data em que a acção é proposta; e que se entende que o pedido – o “efeito jurídico”, como o define o n.º 3 do artigo 581º do Código de Processo Civil – é o “efeito prático-jurídico” pretendido (cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016, www.dgsi.pt, proc. n.º 219/14.7TVPRT-C.P1.S1).

5. No caso dos autos, o ora requerente propôs uma acção de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, prevista no artigo 109.°, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, peticionando “a intimação da Segurança Social para notificar o defensor do arguido/requerente, nos termos do artigo 111.°, n.º 1 do CPA, para responder ao despacho de audiência prévia e que informem, em 24 horas, o processo 541/21.6GAVNG – J2 dos juízos locais criminais de Vila Nova de Gaia, comarca do Porto, de que foi cometido um lapso e que o defensor do R. não foi notificado, para os efeitos do artigo 111.º do CPA e que o prazo de resposta de audiência prévia está a decorrer”.
De acordo com o disposto no art. 109.º, n.º 1, do CPTA, “a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.”.
A respeito da impugnação judicial da decisão sobre o pedido de protecção jurídica, o artigo 28.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, estabelece que “É competente para conhecer e decidir a impugnação o tribunal da comarca em que está sedeado o serviço de segurança social que apreciou o pedido de protecção jurídica ou, caso o pedido tenha sido formulado na pendência da acção, o tribunal em que esta se encontra pendente.”.
No caso dos autos, poderia concluir-se que o que o autor pretende, a final, é pôr em causa o indeferimento da concessão do benefício do apoio judiciário requerida na pendência do citado processo judicial n.º 541/21.6GAVNG-J2, com base em preterição de audiência prévia, por o seu defensor não ter sido notificado nessa sede.
Porém, a verdade é que, no seu requerimento, o requerente não impugna a decisão de indeferimento da concessão do benefício do apoio judiciário.
Com efeito, conforme referido no Parecer do Ministério Público, “o pedido consiste na intimação da Segurança Social para notificar o defensor do arguido/requerente, nos termos do artigo 111.°, n.º 1 do CPA, para responder ao despacho de audiência prévia previsto no art.° 23.° da Lei n.º 34/2004, de 29.07”, nos termos previstos no artigo 109.º do CPTA.
Dúvidas não há de que tal pedido respeita a uma relação jurídica administrativa: envolve uma entidade pública, a Segurança Social, que intervém numa posição de autoridade e que, podendo embora observar-se estar em causa, em cada processo, o interesse pessoal do requerente, actua com vista à realização do interesse público da garantia do acesso ao direito e à justiça, actuação disciplinada por normas de direito administrativo.
Continuando a seguir o critério atrás enunciado por Vieira de Andrade, está em causa a tutela do direito fundamental de acesso à justiça no âmbito da relação administrativa que se estabelece entre a Segurança Social e o requerente.

6. Nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, compete à jurisdição administrativa e fiscal a apreciação do pedido de intimação deduzido pelo autor. Concretamente, e de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019, com o artigo 16.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (segundo se retira do despacho de 16 de Março de 2023, do Juiz ... do Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia do Tribunal Judicial da Comarca do Porto), com a al. a) do n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro e com o artigo 1.º da Portaria n.º 121/202, de 22 de Maio, ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.

7. Podendo desde já ficar definitivamente decidido qual é o tribunal competente, não se procedeu à indicação de qual seria provisoriamente esse tribunal.

Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

Lisboa, 5 de Julho de 2023. - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.