Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01/21
Data do Acordão:09/15/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P28150
Nº do Documento:SAC2021091501
Data de Entrada:01/06/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA OESTE – JUÍZO LOCAL CÍVEL DE CASCAIS – JUIZ 3 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE SINTRA
AUTOR: ADC – ÁGUAS DE CASCAIS, S.A.
RÉU: CONDOMÍNIO EDIFÍCIO ………………
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº:1/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

Relatório
AdC – Águas de Cascais, SA requereu em 27.06.2019 uma injunção contra Condomínio Edifício ………………. pedindo o pagamento da quantia de 433,57 € respeitantes a dívida, juros e taxas de justiça de facturas não pagas relativas ao fornecimento de água correspondente à diferença entre o total de água medido pelo conjunto dos contadores divisionários instalados naquele prédio e o total de água medido por contador totalizador (vulgo, contador padrão) instalado no mesmo prédio, ao abrigo de contrato celebrado.
O requerido deduziu oposição e o processo foi remetido para distribuição no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Cível de Cascais que, por decisão de 04.09.2020, veio a declarar-se materialmente incompetente para conhecer do litígio por considerar que este «emerge de um acto unilateral da empresa, no exercício dos poderes públicos que lhe foram concessionados» e, por isso, «pertencem aos tribunais administrativos e fiscais nos termos do art. 4.º, n.º 1, alínea d) do ETAF».
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, também este Tribunal por decisão proferida em 22.10.2020 se considerou incompetente em razão da matéria por entender que «o momento relevante para fixação da competência é, no âmbito do procedimento de injunção, o da sua distribuição» e, sendo assim, na data em que o requerimento de injunção foi remetido para distribuição (05.12.2019) já vigorava a redacção da alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF dada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, de acordo com a qual estão excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a «apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva».
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito de jurisdição e remetido o processo ao Tribunal dos Conflitos, as partes foram notificadas para efeitos do disposto no artigo 11.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro e nada disseram.
A Exma. Magistrada do MP emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material aos tribunais judiciais.

Apreciação da questão
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211.º, n.º 1, da CRP; 64.º do CPC; e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212.º, n.º 3, da CRP, 1.º, n.º 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que essa competência se fixa no momento em que a acção é proposta, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente (art.º 5.º do ETAF e art.º 38.º da LOSJ).
Tendo presente a alteração ao artigo 4.º do ETAF pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro que entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e que veio excluir do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal «a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva» importa determinar quando se considera proposta a presente acção considerando que o requerimento de injunção deu entrada em 27 de Junho de 2019 e nele indica-se como tribunal competente para distribuição o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Unidade Central de Cascais.
Questão idêntica foi recentemente resolvida neste Tribunal dos Conflitos, nos acórdãos de 20.01.2021, Proc. n.º 01574/20.5T8CSC.S1 e de 24.02.2021, Proc. n.º 01573/20.7T8CSC.S1 (disponíveis em www.dgsi.pt), no sentido de que o que releva é a data em que o requerimento de injunção foi apresentado junto do Balcão Nacional de Injunções. Como se consignou no referido acórdão de 20.01.2021 que passamos a acompanhar e cuja solução é inteiramente transponível para o caso dos autos:
«Da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII, da qual veio a resultar a Lei n.º 114/2019, consta expressamente que se “Esclarece (…) que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”
A Lei 114/2019 entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo.
Tratando-se de uma alteração respeitante à competência material da jurisdição administrativa e fiscal, a aplicação no tempo dessa exclusão não atinge as acções pendentes, de acordo com o disposto no artigo 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. O mesmo princípio consta, aliás, do n.º 2 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, preceito incluído no Título V, relativo aos Tribunais Judiciais, e que prevê duas excepções, nas quais a lei nova é de aplicação às acções pendentes: a extinção do tribunal onde a acção foi proposta e a atribuição de competência a tribunal incompetente (recorde-se que no requerimento de injunção indica-se como “tribunal competente para distribuição o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra).
Interessa portanto determinar quando se considera proposta ou pendente a acção que veio a ser distribuída no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra na sequência do requerimento de injunção.
Pese embora a decisão de fls. 22 ter considerado relevante para o efeito o momento da distribuição do processo no Tribunal, 10 de Janeiro de 2020, entende-se, tal como se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Março de 2016, www.dgsi.pt, proc. n.º 30249/14.2YIPRT.G1.S1, que releva a “data em que o requerimento de injunção foi apresentado junto do Balcão Nacional de Injunções”. O Balcão Nacional de Injunções é uma secretaria judicial de âmbito nacional, destinada a “assegurar a tramitação do procedimento de injunção” (artigo 1º da Portaria n.º 220-A/2008, de 4 de Março), e essa natureza não releva para que, caso a injunção venha a resultar numa acção, se tenha como data da propositura apenas a da distribuição em tribunal, diferentemente do que sucede com o comum das acções, que se consideram pendentes “logo que seja recebida na secretaria a respectiva petição inicial” (n.º 1 do artigo 259.º do Código de Processo Civil e artigo 78.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos); o que, em caso de apresentação “por transmissão electrónica de dados”, significa a “respectiva expedição” (n.º 1 do artigo 144.º do Código de Processo Civil, ressalvado pelo citado artigo 259.º, n.º 1, aplicável nos tribunais administrativos e fiscais, artigo 23.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos). Basta pensar que a data de propositura da acção releva por exemplo para efeitos de caducidade e que a interrupção da prescrição – que em geral ocorre com a citação do réu (n.º 1 do artigo 323.º do Código Civil), se tem como verificada, se a citação não for realizada no prazo de 5 dias após ter sido requerida (após a propositura da acção), não sendo imputável ao autor a ultrapassagem desse prazo (n.º 2 do citado artigo 323.º); solução diferente poderia prejudicar o requerente/autor, que apenas controla a data em que apresenta o requerimento de injunção.
Não são pois aplicáveis as alterações que a Lei n.º 118/2019 introduziu no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, valendo portanto a versão anterior desse preceito.»
A questão que está em causa nos autos é a de saber qual a jurisdição competente para apreciar um litígio respeitante ao pagamento de facturas de fornecimento de água correspondente à diferença entre o total de água medido pelo conjunto dos contadores divisionários instalados naquele prédio e o total de água medido por contador totalizador (vulgo, contador padrão) instalado no mesmo prédio ao abrigo de contrato celebrado entre a requerente, empresa uma empresa concessionária do Sistema Municipal de Distribuição de Água e de Drenagem de Águas Residuais do Município de Cascais e um condomínio.
Ora, esta questão não é nova. Este Tribunal dos Conflitos tem vindo a decidir diversos casos de contornos essencialmente iguais aos do presente e em que, na generalidade, concluiu tratar-se de questão da competência dos tribunais tributários – cfr. acórdãos de 25.06.2013, Proc. n.º 033/13; de 26.9.2013, Proc. n.º 030/13; de 05.11.2013, Proc. n.º 039/13; de 18.12.2013, Proc. n.ºs 038/13 e 053/13; de 20.01.2021, Proc. n.º 01574/20.5T8CSC.S1 e de 24.02.2021, Proc. n.º 01573/20.7T8CSC.S1 (todos disponíveis em www.dgsi.pt). Também o Supremo Tribunal Administrativo se tem pronunciado no mesmo sentido (cfr. acórdão do Pleno da Secção do CT de 10.04.2013, Proc. n° 15/2012 e acórdãos da Secção do CT, entre outros, de 04.11.2015, Proc. n.º 124/14 e de 17.05.2017, Proc. n.º 1174/16, também disponíveis em www.dgsi.pt).
Estando firmada jurisprudência neste Tribunal dos Conflitos, transcreve-se parcialmente a fundamentação apresentada no acórdão de 26.9.2013, Proc. n.º 30/13, a que se adere:
«a acção emerge do litígio provocado pela exigência ao condomínio, pela empresa concessionária do abastecimento de água, de um preço fixo por um contador totalizador que colocou no edifício, como contrapartida do serviço. A imposição deste encargo a estes contadores reveste a natureza de questão fiscal por resultar de “resolução autoritária que impõe aos cidadãos o pagamento de uma prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objectivamente conexas”. Igualmente a questão de saber se é devida a tarifa pela água contada por um contador totalizador colocado fora e antes do circuito dos contadores dos consumidores de um prédio em regime de propriedade horizontal releva de normas legais e regulamentares sobre a prestação deste serviço público que são normas de direito público e extravasam do regime comum dos contratos. Além disso são matérias que relevam da natureza fiscal segundo o critério que acaba de enunciar-se.
Aliás, o Pleno da Secção do Contencioso Tributário parece aceitar esta competência tal como decorre do recente Acórdão de 10-04-2013, P. 015/12, onde se decidiu:
“No domínio de vigência da Lei das Finanças Locais de 2007 (Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro) e do DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto, cabe na competência dos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes de abastecimento público de águas, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, uma vez que, o termo “preços” utilizado naquela Lei equivale ao conceito de “tarifas” usado nas anteriores Leis de Finanças Locais e a que a doutrina e jurisprudência reconheciam a natureza de taxas, pelo que podem tais dívidas ser coercivamente cobradas em processo de execução fiscal”.
No caso referido estava em apreciação a cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal, mas a cobrança de dívidas a uma concessionária parece poder ser vista no mesmo enquadramento e com a mesma solução, quando no Acórdão se inclui o próprio diferendo sobre o preço da água - fixado segundo regras de direito público em regime excluído da concorrência - como aspecto submetido à competência dos tribunais tributários, mesmo quando se reconhece que o concessionário não dispõe da possibilidade de recorrer à execução fiscal.
Podemos pois concluir que a jurisdição competente para conhecer do litígio, tal como se concluiu nos aludidos Conflitos 14/06 e 17/10, são os tribunais administrativos e fiscais através dos tribunais tributários, face ao disposto no artigo 49.º n.º 1 al. c) do ETAF.»

Pelo exposto, acordam em julgar competente para a presente acção o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.
Sem custas.

Assinado digitalmente pela Relatora, que consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento.

Lisboa, 15 de Setembro de 2021. - Isabel Cristina Mota Marques da Silva (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.