Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02/22
Data do Acordão:04/06/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
EMBARGO DE OBRA NOVA
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:A competência material para conhecer de providência cautelar de embargo de obra nova que visa assegurar o direito de propriedade sobre um imóvel cabe à jurisdição comum.
Nº Convencional:JSTA000P29203
Nº do Documento:SAC2022040602
Data de Entrada:01/26/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VILA REAL – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE VILA POUCA DE AGUIAR E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE MIRANDELA
REQUERENTE: A.......... E OUTRA
REQUERIDO: CÂMARA MUNICIPAL DE VILA POUCA DE AGUIAR
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos


1. Relatório
A………. e B………. requereram no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, Vila Pouca de Aguiar – Juízo de Competência Genérica, providência cautelar de Embargo de Obra contra a Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar.
Alegaram, em síntese que, são donos e legítimos proprietários de prédio urbano sito na Rua ……., …….. da freguesia de Vreia de Jales, concelho de Vila Pouca de Aguiar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Pouca de Aguiar, sob o nº …. e inscrito na matriz predial sob o nº ….. Que após a aquisição do direito de propriedade sobre o dito imóvel, em meados de 2007, os requerentes procederam a intervenção urbanística de recuperação e intervenção no mesmo – Logradouro -, conforme constante do artigo 6º da petição inicial, estando completamente realizada a operação urbanística no referido logradouro.
Em 04.08.2021 a Requerida iniciou uma intervenção urbanística no dito Logradouro (….), implicando a entrada ilegal de máquinas de elevação e movimentação com retroescavadora na propriedade dos requerentes. E que a Requerida, com tal intervenção incorreu em, “(…) uma usurpação grosseira, um atentado à propriedade imbuído de ilegalidade flagrante.”.
Pediram a Ratificação Judicial do Embargo levado a cabo pelos requerentes em 06.08.2021, no que diz respeito à obra nova realizada pela requerida.

Por sentença de 05.10.2021, o Juízo de Competência Genérica de Vila Pouca de Aguiar, considerou que a relação jurídica que subjaz ao litígio, tinha por base um procedimento administrativo camarário actuando a Câmara Municipal investida no seu ius imperium quando realizou as obras em discussão neste procedimento cautelar, estando em causa no mesmo uma relação jurídico-administrativa e regulada por normas de direito administrativo.
Assim, decidiu o seguinte, “(…), excepciono a competência em razão da matéria deste Juízo e determino a remessa dos autos para o Tribunal Administrativo competente, com vista à sua prossecução.”.

Remetido o processo cautelar de “embargo de obra nova” ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, foi proferido despacho em 08.11.2021, convidando os Requerentes a indicar qual a acção principal de que estes autos dependem ou irão depender. Os Requerentes vieram indicar que no tipo de relação material controvertida como a presente, (a competência seria dos tribunais comuns), dependendo a presente providência de posterior acção de reivindicação de propriedade a propor.
Por sentença de 02.12.2021, considerando que, conforme decidido em acórdãos deste Tribunal dos Conflitos que são indicados, nomeadamente, no Proc. nº 12/15, no acórdão de 03.06.2015: «“Estando em causa o reconhecimento do direito de propriedade de um prédio e a concreta delimitação do mesmo, não estamos perante uma relação jurídica de natureza administrativa, pelo que a competência para o julgamento da ação deve ser atribuída à jurisdição comum.”
(…)
Além disso, no que respeita precisamente a providências cautelares em que se discute a titularidade do direito de propriedade o Tribunal dos Conflitos confirmou mais recentemente o mesmo entendimento acima exarado, como resulta dos seus acórdãos nºs 05/20, de 02-03-2021; 033/20, de 19-05-2021; e 034/20, de 19-05-2021, (…): “Incumbe aos Tribunais Judiciais o julgamento de uma providência cautelar em que se discutem direitos reais, nomeadamente, o direito de propriedade sobre um terreno”.
Donde dúvidas parecem não restar quanto à incompetência material deste Tribunal para apreciar e decidir o presente processo cautelar, conduzindo ao seu indeferimento liminar (cfr. artigo 99º, nº 1 do CPC).»
Assim, na mesma decisão o TAF de Mirandela suscitou a resolução deste conflito a este Tribunal dos Conflitos (arts. 109º, nº 1 e 111, nº 1, ambos do CPC), após trânsito (arts, 9º, nº 2 e 10º, nº 1 da Lei nº 9/19, de 4/9).
Ambas as decisões supra indicadas transitaram em julgado.
O processo foi remetido ao Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11º da Lei n.º 91/2019.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar a presente providência cautelar aos tribunais judiciais, acolhendo a jurisprudência indicada pelo TAF de Mirandela.

2. Os Factos
Os factos com interesse para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
Cabe a este Tribunal dos Conflitos apreciar o conflito que se verifica entre o Juízo de Competência Genérica de Vila Pouca de Aguiar e o TAF de Mirandela.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [arts. 211º, nº1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [arts. 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.

Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. nº 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão
do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão,
considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.

Ora, tal como os Requerentes a configuram, estamos perante uma causa no âmbito dos direitos reais já que os requerentes alegam factos que visam acautelar o seu direito de propriedade sobre o prédio em causa, e salvaguardar os direitos àquele inerentes, designadamente a desocupação do seu terreno, considerando ter o seu direito de propriedade sido violado pela requerida com as obras que está a levar a efeito. Tal resulta claramente do requerimento do embargo de obra nova dos requerentes, na qual o direito de propriedade sobre uma coisa é alegado, considerando-se o mesmo ameaçado pela acção da Requerida (cfr. artigos 4º a 25º do r.i.)
Assim, a pretensão principal que a requerente enuncia visa assegurar o seu direito de propriedade privada.
A jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais e, ainda que nestas acções se formulem, cumulativamente ou de forma subsidiária, pedidos indemnizatórios, estes não relevam para determinação da competência material do tribunal por serem decorrência da alegada violação do direito de propriedade. (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19, de 02.03.2021, Proc. 5/20, todos consultáveis in www.dgsi.pt/).
Como se decidiu no ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 09.12.2009, Proc. nº 602/09.OTBBJA.E1: «O embargo de obra nova, como providência cautelar que é, visa apenas acautelar o efeito útil da acção que tenha por fundamento o direito, ofendido ou ameaçado do embargante. No que concerne à titularidade do direito, em sede de providência cautelar não é necessário que a prova produzida fundamente um juízo de certeza, bastando que permita formular um juízo de verosimilhança ou de forte probabilidade acerca dessa titularidade.».
A presente providência será seguida certamente da propositura de uma acção real, de reivindicação de propriedade [como, aliás, os requerentes vieram indicar a convite do TAF de Mirandela]. E, como tem sido reafirmado pelo Tribunal dos Conflitos, as providências cautelares têm de ser propostas nos tribunais que forem competentes em razão da matéria para julgar a causa principal de que aquelas são dependência (cfr. Ac. de 07.07.2009, Proc. 011/09 e de 08.03.2017, Proc. 034/16).
No caso em apreço estamos perante uma questão de direito privado, sendo certo que as “ilegalidades” apontadas, apenas visam justificar a necessidade que os Requerentes sentem de impedir a continuação da obra que está a ser levada a cabo no seu prédio, em violação do seu direito de propriedade, conforme alegam (cfr. arts. 26º a 36º do r.i.).


Assim, a competência material para conhecer da presente providência cautelar de embargo de obra nova cabe à jurisdição comum (art. 64º do CPC).

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente providência cautelar a jurisdição comum - Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real - Juízo de Competência Genérica de Vila Pouca de Aguiar.
Sem custas.

Lisboa, 6 de Abril de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.