Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02/20
Data do Acordão:07/08/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
Sumário:É da competência da Jurisdição Administrativa e Fiscal a apreciação de uma acção de indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado com fundamento na alegação de incumprimento, pelo Ministério Público, do dever legal de prosseguir com um inquérito criminal.
Nº Convencional:JSTA000P28002
Nº do Documento:SAC2021070802
Data de Entrada:02/11/2020
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DO PORTO - JUÍZO LOCAL CÍVEL DO PORTO - JUIZ 9 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO PORTO
AUTOR: A…………..
REU: ESTADO PORTUGUÊS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 2/20


Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A…………., identificado nos autos, intentou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto, acção declarativa contra o Estado, pedindo a condenação deste no pagamento de uma indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais, no montante de €5.000,00, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos.
Em síntese, alega que apresentou uma denúncia de vários crimes junto do DIAP do Porto, posteriormente aditada, bem como requereu a sua constituição como assistente. Na pendência do inquérito comunicou a sua preocupação pela proximidade da data da prescrição de alguns crimes denunciados mas nenhuma diligência foi realizada nem foi dado prosseguimento ao pedido da sua constituição como assistente acabando por ser proferido um despacho de arquivamento. Considera que com esta actuação foram violados ilicitamente direitos legalmente protegidos do A o que origina o seu direito a ser indemnizado.
Em 16.10.2019, o Juízo Local Cível do Porto – Juiz 9, julgou-se a incompetente em razão da matéria para apreciação da acção intentada por entender “o autor pretende ser indemnizado pela atuação do Ministério Público no âmbito de um processo de inquérito, traduzida na omissão da prática de atos processuais que conduziram ao arquivamento do inquérito e que lhe retiraram legitimidade para agir contra tal despacho de arquivamento por nunca ter sido dado prosseguimento ao seu pedido de constituição como assistente. A situação descrita não se enquadra na exceção prevista no art.º 4.º, n.º 4, al.ª a) do ETAF, pois que o autor não configura a situação alegada como uma situação de erro judiciário, pois que o erro judiciário restringe-se conceptualmente às decisões tomadas por juízes, não podendo concernir à atividade de outros magistrados ou autoridades” concluindo pela competência dos tribunais administrativos nos termos do art. 4.º, n.º1, al. f) do ETAF.
O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAF do Porto), para o qual foram os autos remetidos a requerimento do A, proferiu saneador-sentença em 14.01.2020 a julgar aquele tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer do objecto dos autos. Entendeu aquele Tribunal que “a melhor interpretação do artigo 4.º, n.º 3, alínea a) do ETAF, é aquela que permite inserir no conceito de acções de responsabilidade civil por “erro judiciário” cometido por outros Tribunais não pertencentes à jurisdição administrativa e fiscal, quer as demandas que nasçam de erro cometido nas fases de inquérito criminal (investigação), de instrução e de julgamento pelo Magistrado do Ministério Público, quer os pleitos que provenham de erro perpetrado naquelas mesmas fases pelo Juiz de Instrução Criminal ou pelo Juiz de Julgamento, conforme as competências para a prática de actos que o Código de Processo Penal reserva a ambos os titulares das magistraturas do Ministério Público e Judicial”.
Suscitada a resolução do conflito de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.

A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de, estando em causa alegados erros judiciários ocorridos no âmbito de processo da competência dos tribunais comuns, a competência para apreciar a presente acção deve ser atribuída aos tribunais comuns.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre Tribunal da Comarca do Porto – Juízo Local Cível do Porto e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211º, nº 1, da CRP). Disposição esta que, à data da propositura da acção - 23.01.2013 (cfr. fls. 3), era reproduzida no art 18º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro) e, actualmente, no art. 40º, nº 1, da LOSJ.
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo nº 3 do art. 212º da CRP, em que se estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Na redação anterior à que lhe foi conferida pelo DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data de propositura da acção é a que aqui releva, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro) replicava no art. 1º, nº 1, essa genérica previsão que era concretizada no art. 4º, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nº 1) e negativa (nºs 2 e 3).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 1.10.2015, Proc. 08/14, “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Em matéria de responsabilidade civil extracontratual no âmbito da jurisdição administrativa, releva para o caso a al. g) do nº 1 do art. 4º do ETAF (aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19/2, na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo DL nº 214-G/2015, de 2/10), que estabelece competir aos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios que tenham por objecto:
"g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;”

No entanto, o mesmo artigo elenca as exclusões do âmbito da jurisdição: o n.º 2 reporta-se exclusivamente aos “litígios que tenham por objecto a impugnação” de actos (alíneas a) e c)) ou decisões jurisdicionais (alínea b)), o n.º 3 exclui as acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição (alínea a)).
Ora, a acção em causa nos autos não visa a impugnação de qualquer acto ou decisão jurisdicional, traduzindo-se num simples pedido indemnizatório. Sublinhe-se que não estão em causa os próprios actos imputados à actuação do Ministério Público mas as suas consequências.
Importa, portanto, determinar se a acção, tal como foi configurada pelo autor se deve incluir na competência da jurisdição administrativa e fiscal (art. 4º, n.º 1, al. g) do ETAF na redacção anterior ao DL nº 214-G/2015) ou se estamos perante um erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição e, portanto, excluída da apreciação pelos tribunais administrativos e fiscais (art. 4º, nº 3, al. a)).
Como se escreveu no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 10.03.2011, Proc. nº 13/10 [por referência ao ac. deste Tribunal de 29.11.2006, Proc. nº 03/05], “hoje, é pacífico o entendimento jurisprudencial, na linha deste último aresto, de que estando em causa a responsabilidade emergente da função de julgar, a competência cabe aos tribunais judiciais, pois os actos e actividades próprias dos juízes na sua função de julgar são praticados no exercício específico da função jurisdicional e não da função administrativa; todos os outros actos e omissões de juízes, bem como toda a actividade e actuação dos restantes magistrados, órgãos e agentes estaduais que intervenham na administração da justiça, em termos de relação com os particulares ou outros órgãos e agentes do Estado, e, portanto, sejam estranhos à especifica função de julgar, inscrevem-se nos conceitos de actos e actividades administrativas ou de “gestão pública administrativa”, da competência da jurisdição administrativa - (cfr. entre outros, além do supra transcrito aresto de 12-05-1994, os acórdãos deste Tribunal de Conflitos de 23-01-2001, Conflito n.º 294, e de 21-02-06, Conflito nº 340, e, ainda, entre outros, os Acórdãos do STA de 13.02.1996, Proc. nº 38.474, in AP DR de 31-8-98, 1095; de 15.10.98, Proc. nº 36.811; de 12.10.2000, Proc. n.° 45.862, in AP DR de 12-2-2003, 7360; de 12.10.2000, Proc. n.º 46.313, in AP DR de 12-2-2003, 7378; e de 22-05-2003, Proc. n.º 532/03).
(…)
Ora no caso em apreço, como refere a decisão da 2ª Vara Cível, não está em causa a responsabilidade derivada da função de julgar, que o A. nem refere na petição inicial, mas tão só a ineficiência da actuação dos órgãos do Estado encarregados da investigação criminal que, na óptica do A., não procederam às diligências de investigação da queixa crime apresentada contra os denunciados.
Assim sendo, está-se no âmbito das relações jurídicas administrativas que se podem estabelecer entre a administração judiciária e os particulares na administração da justiça e não no âmbito da específica função de julgar, designadamente de qualquer erro judiciário, pelo que de acordo com a jurisprudência acima citada, e nos termos dos artigos 1º, n.º 1, e 4º, n.º 1, al. g) do ETAF, e 212, n.º 3, da CRP, há que concluir que incumbe aos tribunais administrativos o julgamento da acção de responsabilidade civil extracontratual intentada contra o Estado.

Refira-se ainda o recente acórdão deste Tribunal dos Conflitos, de 05.05.2021, Proc. n.º 03461/20.8T8LRA.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt) onde, em caso paralelo, se decidiu: “entende-se que a exclusão operada pela al. a) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF apenas se aplica às acções de responsabilidade por erro judiciário atribuído a tribunais não integrados na Ordem dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ou seja, no que agora releva, a erro atribuído a decisão judicial, o que não abrange acções de responsabilidade fundadas na alegação de actuações (por acção ou omissão) do Ministério Público, ainda que por ventura houvessem de ter lugar em tribunais judiciais”.
Assim, é de concluir que as acções de responsabilidade que tenham por objecto a prática de um erro judiciário pertencem a diferentes âmbitos de jurisdição, consoante o erro seja atribuído a um tribunal da jurisdição comum ou da jurisdição administrativa e fiscal. Como tal, só estão excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal as acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como as correspondentes acções de regresso (cfr. al. a) do nº 3 do citado artigo do ETAF), estando nos outros casos atribuída aos tribunais administrativos a apreciação das acções de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado.
No caso presente não está em causa a responsabilidade derivada da especifica função de julgar, mas a alegada ineficiência de actuação dos órgãos do Estado encarregados da investigação criminal que, segundo o A, não procederam às diligências de investigação das denuncias por si apresentadas bem como à não remessa ao JIC para despacho do seu pedido de constituição como assistente e, por conseguinte, estamos “no âmbito das relações jurídicas administrativas que se podem estabelecer entre a administração judiciária e os particulares na administração da justiça” (citado acórdão de 10.03.2011), pelo que se conclui que incumbe aos tribunais administrativos a apreciação da acção intentada.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a acção a jurisdição administrativa e fiscal (Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto).
Sem custas.
Nos termos e para os efeitos do art. 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13/3, a relatora atesta que a adjunta Senhora Vice-Presidente do STJ, Conselheira Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza tem voto de conformidade.

Lisboa, 8 de Julho de 2021

Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa