Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:023/21
Data do Acordão:03/23/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P29168
Nº do Documento:SAC20220323023
Data de Entrada:07/14/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE FARO - JUÍZO LOCAL CÍVEL DE PORTIMÃO - JUIZ 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LOULÉ
REQUERENTE: DIREÇÃO DE FINANÇAS DE FARO
REQUERIDO: A..........
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 23/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

Relatório
O Director de Finanças de Faro intentou contra A………., advogado, Acção de Processo Especial de Suprimento de Segredo Profissional nos termos e para os efeitos constantes no artigo 63.º, n.º 6, da Lei Geral Tributária, conjugado com o artigo 1000.º do Código de Processo Civil requerendo a autorização judicial de levantamento do segredo profissional no sentido de aceder às contas bancárias do Réu, relativamente aos anos de 2016 e 2017.
Alegou, em síntese, que desde 13.03.2019 se encontra a decorrer uma acção de inspecção externa de âmbito geral ao Réu, que exerce a actividade de Advogado, para controlo de operações bancárias suspeitas e verificação e comprovação do cumprimento das obrigações tributárias dos anos de 2016 e 2017. Na sequência de notificação pessoal para autorização de acesso aos documentos bancários de todos as contas por si detidas referentes aos movimentos realizados nos exercícios de 2016 e 2017, o Réu, em resposta, informou que "…não autorizo o levantamento do sigilo bancário referente à conta de clientes com o n.º ……….. do Banco ………, uma vez que a mesma está abrangida pelo sigilo profissional, decorrente das normas deontológicas que regulam a minha actividade enquanto advogado e à conduta de sigilo que as minhas relações profissionais com os clientes obrigam”.
O Réu apresentou contestação alegando, em síntese, que não foram demonstrados fundamentos de facto, nem situações potencialmente enunciadoras de actuação concreta que possa justificar a quebra do segredo profissional, a que legalmente e pela natureza da sua actividade está obrigado.
Suscitada pelo Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo Local Cível de Portimão - Juiz 1 a incompetência absoluta do Tribunal, tanto o Autor como o Réu defenderam a competência do Tribunal para apreciar o pedido.
Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo Local Cível de Portimão - Juiz 1, de 13.07.2020, foi declarada a incompetência material daquele Tribunal para a discussão e julgamento da acção.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé (TAF de Loulé), a pedido da Autora, este Tribunal também se declarou materialmente incompetente por decisão de 13.01.2021.
Transitadas ambas as decisões, a Juíza do TAF de Loulé suscitou oficiosamente a resolução do conflito negativo de jurisdição.
Neste Tribunal dos Conflitos, as partes notificadas nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 11.º, n.º 3 da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro, nada vieram dizer.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência deverá ser atribuída aos tribunais comuns.

Apreciação da questão
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Cível de Portimão e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211.º, n.º 1, da CRP; 64.º do CPC; e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212.º, n.º 3, da CRP, 1.º, n.º 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art.º 4.º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Entendeu o Juízo Local Cível de Portimão que “Ora, desde logo, distintamente do referido pela AT e Réu, o tribunal da comarca refere-se à circunscrição judicial e não aos tribunais de comarca per si, pois a redacção de tal norma do art.º63º nº6 da L.G.T. data do D.L.398/98 de 17/12, isto é, anteriormente à criação da jurisdição administrativa e fiscal, pelo que, a sua não atualização - em igualdade com várias outras situações criadas por várias alterações legais sucessivas - face à entrada em vigor do ETAF, não permite a interpretação que as partes pretendem, mas sim, que após a criação da jurisdição administrativa e fiscal, será esta a doravante competente, sendo apenas tal interpretação a consentânea com o espírito do legislador e coerência do sistema.
No demais, o art.º 4º nº1 a) do ETAF refere expressamente que é competência dos tribunais administrativos e fiscais a tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais; isto é, precisamente a situação dos autos em que se discute a tutela e exercício de direitos do inspecionado, in casu, o exercício do sigilo profissional.
E que a situação dos autos integra uma relação fiscal, não nos parece dúbio e é admitido pelas partes, pois estamos em pleno processo de inspecção tributária em curso (…) a admitir o oposto, entraríamos em contradição insanável no âmbito da sistemática processual, tendo em conta que, quando ocorre uma decisão de levantamento de sigilo bancário ou profissional pela AT, o órgão competente para a apreciação da impugnação de tal decisão é a jurisdição administrativa-fiscal, pelo que, não se entende porque motivo é que a autorização de tal levantamento, distintamente, seria levada à jurisdição cível. (…) Assim sendo e pese embora algumas posições jurisprudenciais em sentido contrário, salvo melhor entendimento, cremos que, uma interpretação actualista do preceito do art.º 63º nº6 da LGT, não permite a conclusão pela competência da instância cível em tal matéria”.
O TAF de Loulé, por sua vez, fundamentou a sua decisão da forma seguinte: “Do regime jurídico exposto resulta que, estando em causa a derrogação do sigilo profissional, tal como em qualquer uma das outras circunstâncias previstas no n.º 5 do artigo 63.º, é obrigatória a utilização da via judicial, indicando o legislador como tribunal competente, o tribunal da comarca e não o tribunal tributário, uma vez que quando o legislador entendeu ser esse o competente soube dizê-lo expressamente, tal como fez no n.º 6 do artigo 89.º-A da LGT, na redacção da Lei n.º 30-G/2000, de 29.12. (cfr. artigo 9.º do CC).
Ora, nos presentes autos, está em causa o pedido da Administração Tributária, de suprimento de segredo profissional do Réu, para aceder às suas contas bancárias, formulado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 63.º, n.º 6 da LGT, conjugado com o artigo 1000.º do CPC. (…) No caso em apreço, o objeto do processo não é composto por uma qualquer relação jurídica fiscal entendida como a que emerge da resolução de conflitos de interesses no quadro das obrigações tributárias do cidadão para com a Administração Fiscal, antes se relacionando com direitos e interesses privados que se encontram tutelados pelo dever de sigilo a que se encontram obrigados os advogados no exercício da sua profissão, sendo certo, que a derrogação de tal dever carece de parecer favorável da própria Ordem dos Advogados”.
A questão que está em causa nos autos é a de saber qual a jurisdição competente para apreciar o pedido de autorização judicial para levantamento do segredo profissional, nos termos do artigo 63.º, n.º 6 da Lei Geral Tributária.
O artigo 63.º da LGT, sob a epígrafe "Inspeção", dispõe, actualmente:
“1 - Os órgãos competentes podem, nos termos da lei, desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, nomeadamente:
a) Aceder livremente às instalações ou locais onde possam existir elementos relacionados com a sua actividade ou com a dos demais obrigados fiscais;
b) Examinar e visar os seus livros e registos da contabilidade ou escrituração, bem como todos os elementos susceptíveis de esclarecer a sua situação tributária;
c) Aceder, consultar e testar o seu sistema informático, incluindo a documentação sobre a sua análise, programação e execução;
d) Solicitar a colaboração de quaisquer entidades públicas necessária ao apuramento da sua situação tributária ou de terceiros com quem mantenham relações económicas;
e) Requisitar documentos dos notários, conservadores e outras entidades oficiais;
f) Utilizar as suas instalações quando a utilização for necessária ao exercício da acção inspectiva.
2 - O acesso à informação protegida pelo segredo profissional ou qualquer outro dever de sigilo legalmente regulado depende de autorização judicial, nos termos da legislação aplicável. (Redação da Lei n.º 37/2010 - 02/09)
3 - Sem prejuízo do número anterior, o acesso à informação protegida pelo sigilo bancário e pelo sigilo previsto no Regime Jurídico do Contrato de Seguro faz-se nos termos previstos nos artigos 63.º-A, 63.º-B e 63.º-C. (Redação da Lei n.º 82-B/2014, de 31/12)
(…)
5 - A falta de cooperação na realização das diligências previstas no n.º 1 só será legítima quando as mesmas impliquem:
a) O acesso à habitação do contribuinte;
b) A consulta de elementos abrangidos pelo segredo profissional ou outro dever de sigilo legalmente regulado, com exceção do segredo bancário e do sigilo previsto no Regime Jurídico do Contrato de Seguro, realizada nos termos do n.º 3; (Redação da Lei n.º 82-B/2014, de 31/12)
c) O acesso a factos da vida íntima dos cidadãos;
d) A violação dos direitos de personalidade e outros direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, nos termos e limites previstos na Constituição e na lei. (n.º 5 - Redação da Lei n.º 37/2010 - 02/09)
6 - Em caso de oposição do contribuinte com fundamento nalgumas circunstâncias referidas no número anterior, a diligência só poderá ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente com base em pedido fundamentado da administração tributária. (Redação da Lei n.º 37/2010 - 02/09 - Anterior n.º 5.)
(…)”
A LGT sofreu sucessivas alterações, nomeadamente pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, que manteve a redacção inicial desta norma e aditou, entre outras, o artigo 63.º-B (derrogação administrativa do sigilo bancário quando estejam reunidos os pressupostos ali previstos), e pela Lei n.º 37/2010, de 2 de Setembro que também manteve a sua redacção inicial mas alterou a respectiva numeração (passou de n.º 5 para n.º 6).
Desta forma e ao contrário do defendido na decisão do Juízo Local Cível de Portimão, não há aqui lugar a uma interpretação actualista da norma do n.º 6 do artigo 63.º da LGT pois a jurisdição administrativa e fiscal já existia quando foi publicado o Decreto-lei n.º 398/98, de 12 de Dezembro, que aprovou a LGT. E, por outro lado, o legislador teve oportunidade para a modificar, se assim o entendesse, nas sucessivas alterações que introduziu na LGT.
Como se decidiu no TAF de Loulé, não nos deparamos aqui com uma acção ou recurso que tenha por objecto um litígio emergente de uma relação jurídica fiscal. O pedido de autorização judicial de levantamento do segredo profissional para acesso às contas bancárias é formulado na sequência de o Réu ter invocado o dever de sigilo profissional, pelo que não estão aqui em causa as obrigações fiscais do Réu mas os direitos e interesses privados que se encontram tutelados pelo dever de sigilo a que se encontram obrigados os advogados no exercício da sua profissão.
A jurisprudência tem-se pronunciado de forma uniforme sobre a atribuição aos tribunais judiciais da competência material para conhecer dos pedidos da Administração Tributária de autorização de levantamento de sigilo profissional.
O Supremo Tribunal de Justiça tem decidido pela competência dos tribunais judiciais, nomeadamente nos acórdãos de 03.07.2003, Proc. n.º 03B1769 e de 21.02.2006, Proc. n.º 06A088 (disponíveis em www.dgsi.pt). Disse-se neste último:
Trata-se de uma acção em que o pedido formulado está a montante e fora de qualquer litígio fiscal, face à recusa do consentimento do recorrente, e que integra matéria de reserva se não da intimidade, da sua vida privada, ao menos do seu acervo patrimonial.
E assim sendo, como também destaca o recorrido, tratando-se de um pedido de suprimento do consentimento de consulta de documentos cobertos pelo sigilo bancário, o qual unicamente tem a ver com interesses e direitos privados, para a sua apreciação são competentes os tribunais comuns, já que a sua competência é residual, estendendo-se a todas as áreas não atribuídas a outros tribunais”.
Igualmente, o Supremo Tribunal Administrativo ponderou: “Esta distinção compreende-se no caso do segredo profissional e, em especial, no que está em causa nos autos - segredo profissional de advogado - em que a ponderação dos interesses envolvidos reveste uma especial importância e relevo para a preservação da relação de confiança dos cidadãos na classe profissional dos advogados tendo em vista “o interesse da justiça na sua mais lata acepção”-cfr. Acórdão de 15/12/2004, rec. n.° 1862/03 (secção administrativa).
Deste modo, perante a invocação do sigilo profissional, não se compreenderia que a administração tributária tivesse a possibilidade de derrogar administrativamente a protecção conferida por esse dever de sigilo sem prévia sindicância judicial.
Assim sendo e atento o disposto no n.° 5 do referido artigo 63.° da LGT, a oposição do contribuinte no acesso à informação pretendida, com fundamento em sigilo profissional do advogado, exige para a sua derrogação um escrutínio judicial e não meramente administrativo, a concretizar pela via do recurso ao “tribunal da comarca competente com base em pedido fundamentado da administração tributária”.” (cfr. Acórdãos de 02.12.2009, Proc. 01116/09 e de 29.10.2010, Proc. 0668/10, disponíveis em www.dgsi.pt).
O Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 602/2005, de 02.11.2005), a propósito da norma em questão, pronunciou-se nos seguintes termos:
De facto, não nos situamos ainda numa situação em que se depara a existência de um litígio emergente de uma relação jurídico-fiscal.
A norma em apreço cura de um dos princípios do procedimento tributário – o da inspecção – com vista, como no caso sucedeu, a apurar a situação tributária do contribuinte (uma dada empresa e o seu representante). Nessa fase, ainda não está, sequer, determinada qual seja essa situação e qual a projecção que poderá ter na determinação da matéria sobre a qual virá a incidir a relação jurídico-tributária.
Pode, pois, dizer-se que o suprimento de autorização previsto ainda se situa a montante do estabelecimento daquela relação e, por isso, não será convocável o artigo 212º da Constituição (indicada versão), já que a referida relação ainda se não encontra desenhada e, consequente e logicamente, ainda não surgiu qualquer litígio que eventualmente reclame, por via daquele artigo, a intervenção dos tribunais fiscais.
Se conflito existe na fase em presença, tem ele a ver com possíveis direitos, liberdades ou garantias pessoais, conflito esse para cuja resolução são competentes, em regra, os tribunais judiciais.
Não procede, pois o vício que, repete-se, parece ser caracterizado pelo recorrente como de inconstitucionalidade orgânica, por falta de autorização legislativa para cometer aos tribunais judiciais a competência para suprimento da autorização para consulta de elementos abrangidos pelo sigilo bancário”. (cfr. ainda Acórdão n.º 490/2011, de 24.10.2011, ambos disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
No mesmo sentido também se decidiu nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-03-2016, Proc. 178/15.9T8AMR.G1 e de 26.11.2020, Proc. 4033/19.5T8BRG.G1 e no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07.11.2019, Proc. 1606/17.4T8PVZ.P1, este a respeito de segredo profissional médico (todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Assim, não se tratando de uma competência dos tribunais administrativos e fiscais, a competência material para apreciar e decidir a autorização pedida nos autos pertence aos tribunais judiciais, nos termos dos n.ºs 2 e 6 do artigo 63.º da LGT.
Pelo exposto, acordam em julgar competente em razão da matéria a jurisdição comum, concretamente o Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Local Cível de Portimão.
Sem custas.

Lisboa, 23 de março de 2022. - Isabel Cristina Mota Marques da Silva (relatora) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.