Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:040/21
Data do Acordão:03/23/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
GABINETE PORTUGUÊS DA CARTA VERDE.
ACIDENTE DE VIAÇÃO.
RESPONSABILIDADE CIVIL.
Sumário:É da competência dos tribunais judiciais conhecer de acção para efectivação de responsabilidade civil se no momento da respectiva propositura, face aos termos em que a A. configurou na petição inicial a causa de pedir, o pedido e o Réu que demandou, se está perante um litígio de natureza tipicamente civilística, e não perante uma relação jurídica administrativa.
Nº Convencional:JSTA000P29173
Nº do Documento:SAC20220323040
Data de Entrada:12/20/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VIANA DO CASTELO, JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE VALENÇA, E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA UO1
AUTOR: A…………
RÉU: INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, SA (E OUTROS)
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 40/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

A………… intentou no Juízo de Competência Genérica de Valença acção, sob a forma comum, contra o Gabinete Português da Carta Verde pedindo a condenação do Réu a pagar à A. o montante inerente à reparação do veículo ………., ligeiro de mercadorias, de que é proprietária, a qual ascende a €12.234,59, ou em alternativa, ser o Réu condenado a mandar reparar o veículo, bem como a pagar uma quantia diária à A., a título de imobilização e privação do dito veículo.
Alegou, em síntese, que no dia 19.01.2020, na A3, ao km ………, São Pedro da Torre, ocorreu uma colisão entre o seu veículo, conduzido por B…………, e o veículo com matrícula ………, conduzido por C…………, tendo o sinistro ocorrido quando, tendo o referido B………… necessidade de reduzir a velocidade a que seguia devido ao facto do veículo que seguia à frente o ter feito também para se desviar de um javali que atravessou a via, o condutor do ………, que seguia distraído e sem observar a distância de segurança, não reduziu a velocidade a que seguia e embateu na traseira do seu veículo.
O Réu contestou, invocando, para além do mais, como causa directa do sinistro a invasão da via por um javali e a inobservância por parte da concessionária da auto-estrada em causa, dos deveres de segurança da via. Na sequência do que a A. veio requerer a intervenção principal da Infraestruturas de Portugal, SA, para com o primitivo Réu se associar. Sobre o que este nada disse, vindo a intervenção principal provocada daquela a ser admitida (arts. 39º e 316º, nº 2 do CPC), determinando-se a citação da Interveniente (art. 319º, nº 3 CPC) por despacho de 18.03.20121.
O Juízo de Competência Genérica de Valença (Proc. nº 149/20.3T8VLN), veio a proferir decisão, em 26.08.2021, em que julgou procedente a excepção de incompetência absoluta do Tribunal, em razão da matéria, absolvendo o Réu e a chamada da instância.
Considerou, para tanto, nomeadamente, que, “Coligindo as elencadas disposições legais, “decorrer que pertence à aqui [chamada] a representação do Estado no que respeita às infra-estruturas rodoviárias. Ou seja, estes normativos, nas funções atribuídas à EP (quanto às infra-estruturas rodoviárias nacionais que integram o objecto da sua concessão), concedem-lhe poderes de autoridade próprios do Estado. Destas normas é possível inferir-se que a responsabilidade extracontratual por que a [aqui chamada] é demandada, derivando das suas legais atribuições (designadamente conservação da rede rodoviária nacional), se desenvolve num quadro de ambiência pública” [Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 29/01/2015 (P 050/14), …].
Avançando no raciocínio, temos por inarredável que a apreciação da eventual responsabilidade civil extracontratual da chamada, estando a sua actividade normativamente enquadrada da forma descrita, convoca a aplicação do regime jurídico da Lei nº 67/2007, de 31.12, como previsto no seu nº 5 do art. 1.º donde, estando por essa via, na presença de uma relação jurídico-administrativa serão os tribunais administrativos os competentes, em razão da matéria, para conhecer do litígio, nos termos do disposto no artº 4º, nº 1, alínea i) do ETAF.



Remetido o processo ao TAF de Braga – Juízo Administrativo Comum, este proferiu sentença em 03.11.2021, na qual se declarou incompetente em razão da matéria para conhecer da acção, por entender que: “Assim, atento o pedido e respectiva causa de pedir formulados pela Autora, o objecto da presente acção não cabe em nenhuma das alíneas do nº 1 do artº 4.º do ETAF.
Aliás, é jurisprudência pacífica que, estando-se perante uma acção de responsabilidade civil por acidente de viação – em virtude de sinistro ocorrido, em Portugal, entre um veículo matriculado no nosso País (propriedade da Autora) e um veículo de matrícula registada em Espanha -, a mesma deve ser intentada contra o Gabinete Português da Carta Verde [cfr. inter alia, o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 1/7/2014 (processo nº 486/08.5TBPCV-AC1) …].
(…), a relação jurídica em causa configurada pela Autora na sua petição inicial funda-se em matérias estritamente civilísticas e não em matérias cujo conhecimento compete aos Tribunais Administrativos, encontrando-se tal matéria excluída da jurisdição administrativa, Pelo que, nos termos e pelos fundamentos expostos, terá de se considerar a matéria dos autos excluída do conhecimento da jurisdição administrativa e, ao invés, incluída no âmbito da jurisdição comum [cfr. art. 4º, n.º 1, a contrario sensu, do ETAF], não se olvidando que a competência dos tribunais da jurisdição administrativa fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente [cfr. art. 5.º, n.º 1 do ETAF]. (…)
Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, julgo este Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga incompetente, em razão da jurisdição para conhecer da presente acção [cfr. arts. 13.º e 14.º do CPTA, em articulação com os arts. 4.º e 5.º do ETAF].
O TAF de Braga suscitou oficiosamente o conflito, ordenando a remessa dos autos ao Tribunal dos Conflitos.
Foi dado cumprimento ao disposto no art. 11º, nº 3 da Lei nº 91/2019.
A Exma Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser emitida decisão que atribua a competência material para conhecer da presente acção à jurisdição comum – no caso concreto ao Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo de Competência Genérica de Valença.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.


Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. nº 08/14, «A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo».
De acordo com o art. 4º, nº 1, alínea h), do ETAF, está incluída no âmbito da jurisdição administrativa a “Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público”.
Relacionado com esta regra de competência, o nº 5 do art. 1º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31/12, estipula que “as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.
No entanto, como já se disse a competência do tribunal fixa-se “no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente” – cfr. art. 5º, nº 1 do ETAF e igualmente o art. 38º da LOSJ.
Ora, estas normas não parecem ter sido tomadas em conta na decisão do Juízo de Competência Genérica de Valença.
Com efeito, a Autora propôs a presente acção unicamente contra o Gabinete português da Carta Verde e só posteriormente requereu a intervenção principal provocada, como Ré, da Infraestruturas de Portugal, SA, a qual veio a ser admitida.
Tal como bem refere a EMMP se a acção tivesse sido instaurada inicialmente contra os dois RR. seriam os tribunais administrativos os materialmente competentes para conhecer do litígio, como constitui jurisprudência maioritária deste Tribunal dos Conflitos – cfr., v.g., os acs. de 30.05.2013, Proc. nº 017/13, de 27.02.2014, Proc nº 048/13, de 29.01.2015, Proc. nº 050/14 e de 05.07.2018, Proc. nº 013/17.
No entanto, no caso dos autos, a intervenção da Infraestruturas de Portugal ocorre posteriormente à propositura da acção, através da intervenção principal provocada, ou seja, através de uma modificação de facto legalmente irrelevante para a fixação da competência (art. 5º, nº 1 do ETAF e art. 38º, nº 1 da LOSJ).
Assim, no momento da propositura da acção, face aos termos em que a A. configurou na petição inicial a causa de pedir, o pedido e o Réu que demandou, não há dúvida de que se está perante um litígio de natureza tipicamente civilística, e não perante uma relação jurídica administrativa (cfr. em
situação equiparável o ac. deste Tribunal dos Conflitos de 20.09.2011, Proc. nº 03/11).
Sobre questão idêntica à dos autos pronunciou-se o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 23.01.2020, Proc. 013/19, onde se decidiu pela manutenção da competência dos tribunais judiciais numa situação em que também ocorrera a intervenção principal posterior de uma entidade pública, nos seguintes termos:
Da eventual procedência da ação nenhum prejuízo advém para o Município, pelo que este nenhum interesse direto tem em contradizer a pretensão do AA (art. 30º, n. 1 e 2 do CPC).
Assim, não estando em causa uma relação jurídica de natureza administrativa, a competência em razão da matéria não poderá caber aos tribunais administrativos.
Percorrendo o elenco das hipóteses previstas no art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei n. 13/2002), conclui-se que o presente caso não cabe no âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos.
Este entendimento não é posto em causa pelo facto de ter sido provocada a intervenção processual do Município da Covilhã e de este ter vindo dizer que a competência devia caber aos tribunais administrativos, pois como estabelece o art. 38º, n.1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário [LOSJ], a competência do tribunal fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei; sendo, em regra, igualmente irrelevantes as modificações de direito, nos termos do n. 2 do referido art. 38º.
Esta mesma situação vale no domínio da jurisdição administrativa, dispondo o art. 5º, n. 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [ETAF] que a competência dos tribunais da jurisdição administrativa se fixa no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.” [cfr. neste sentido, em situação semelhante, o Ac. do STJ de 12.01.2010, Proc. nº 1337/07.3TBABT.E1.S1].
Deste modo, tem de concluir-se que são os tribunais judiciais os competentes para conhecer da acção (cfr. arts. 211º da CRP, 64º do CPC e 40º da LOSJ.

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a acção o Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo – Juízo de Competência Genérica de Valença.


Lisboa, 23 de Março de 2022. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.