Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02096/20.0T8LLE.S1
Data do Acordão:01/20/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO JURISDIÇÃO
Sumário:É da competência da jurisdição administrativa e fiscal uma acção, instaurada por uma sociedade contra um Município, na qual foi pedida a anulação de um acto administrativo que ordenou a remoção de uma antena instalada num prédio, por se tratar de um litígio entre uma entidade pública e um particular no âmbito de relações disciplinadas por normas de Direito Administrativo (em especial, o Regulamento do Ruído).
Nº Convencional:JSTA000P27346
Nº do Documento:SAC202101202096/20
Recorrente:TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE FARO - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LOULÉ – JUIZ 1
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LOULÉ
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE LOULÉ
Recorrido 2:NOS-COMUNICAÇÕES S.A
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Tribunal dos Conflitos



1. Pela sentença de fls. 195 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé foi julgada procedente a acção administrativa proposta por NOS Comunicações, S.A., contra o Município de Loulé, pedindo a anulação do acto de uma vereadora da Câmara Municipal que, invocando delegação de competências, “ordenou a remoção da antena” instalada num edifício situado em Vilamoura, sendo anulado o acto impugnado.
Para o que agora releva, o Tribunal desatendeu a alegação de incompetência material deduzida pelo Município de Loulé, que sustentou que “a actuação do réu é, em abstracto, qualificada como contraordenação ambiental (leve ou grave) nos termos do artigo 28.º do Regulamento Geral do Ruído (RGR)”, concluindo ser “manifesto que estamos perante matéria de contraordenação da competência dos tribunais judiciais”. Referiu-se ainda aos n.ºs 1 e 3 do artigo 55.º do Regime Geral das Contraordenações, segundo os quais são susceptíveis de impugnação judicial “as decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo (…)”.
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, observando que (1) “não se verifica que a Entidade Demandada tenha proferido acto administrativo que aplique à Autora uma coima por infracção ambiental, classificada como contraordenação”, (2) que “os tribunais administrativos apreciam e decidem matérias concernentes «à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como (…) o ambiente (…) – vide n.º 2 do art.º 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ", (3) e que “os actos da Administração são sindicados pelos tribunais administrativos e a decisão dos autos foi praticada no exercício de um poder público para o desempenho de uma actividade administrativa de gestão pública (…)”, concluiu não ocorrer incompetência material.
Pelo acórdão de fls. 277, o Tribunal Central Administrativo Sul, julgando o recurso interposto pelo Município de Loulé da parte da sentença que desatendera a alegação de incompetência dos tribunais administrativos, concedeu provimento ao recurso e revogou a referida sentença, julgando os tribunais administrativos incompetentes.
Em seu entender, a competência para julgar a acção cabe aos tribunais judiciais, uma vez que “o acto impugnado se traduz na adopção de uma medida cautelar ou provisória adoptada no âmbito do procedimento de contraordenação”, decidida “ao abrigo do Regulamento Geral do Ruído” (artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro), cujo conteúdo consistiu na determinação de que a autora “adopte os procedimentos necessários à cesssação da incomodidade decorrente de se ultrapassarem os limites legalmente estabelecidos do ruído (…)”.

2. Remetido o processo para o Juízo Local Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, a requerimento da autora, e determinada a sua distribuição como recurso de contraordenação pelo despacho de fls. 302, foi proferido despacho a fls. 306, determinando “ que se dê baixa na distribuição” e a devolução dos “autos ao Tribunal Central Administrativo por ser quem remeteu o processo, ainda que a requerimento da NOS Comunicações, S.A.”: “Não existindo qualquer decisão da autoridade administrativa de aplicação de uma coima em sede de processo de contraordenação, não existe a possibilidade de interposição de recurso de impugnação judicial para os Juízos Locais Criminais de Loulé”. Todavia, por despacho de fls. 307, foi determinada a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé.
A fls. 309, foi proferido despacho no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, com o seguinte teor: “Verificando-se a contradição entre os tribunais quanto à decisão de competência, remeta os autos ao Tribunal de Conflitos”
Remetido o processo ao Tribunal dos Conflitos, foi proferido despacho pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determinando que se seguisse a tramitação da resolução de conflitos de jurisdição. Foram notificadas as partes e o Ministério Público, que proferiu parecer no sentido da competência pertencer ao “tribunal administrativo”, uma vez que não existe “um auto de notícia ou um processo de contraordenação, mas sim uma mera notificação à sociedade” para “efectuar em 30 dias procedimentos necessários à cessação de incomodidade”; se não fosse “cumprido o determinado, nessa altura poderia configurar-se uma contraordenação ambiental, levando consequentemente à elaboração de um auto de notícia, que no caso inexiste”.
Considera-se que a última das decisões que originaram o conflito foi a proferida pelo Juízo Local Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Faro.

3. Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da autora, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais; dentro destes, o artigo 49º define a competência dos tribunais tributários.
Como uniformemente se tem decidido, nomeadamente no Tribunal de Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção.

4. A matéria de facto necessária ao julgamento do presente conflito resulta do relatório.
O pedido formulado por NOS Comunicações, S.A. foi o de anulação de um acto administrativo que, consoante a autora alega, determinou a retirada da antena colocada num determinado prédio. O referido acto invoca o artigo 27.º (Medidas cautelares) do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro, cujo n.º 1 atribui às “entidades fiscalizadoras”, entre as quais se contam as câmaras municipais, competência para “ordenar a adopção das medidas imprescindíveis para evitar a produção de danos graves para a saúde humana e para o bem-estar das populações em resultado de actividades que violem o disposto no presente Regulamento.”
O acto impugnado não aplicou qualquer coima; e não resulta do processo ter sido desencadeado nenhum processo de contraordenação por infracção das obrigações previstas no referido Regulamento com o qual o referido acto se relacionasse.

5. Tendo em conta a forma de delimitação recíproca do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal e da jurisdição dos tribunais judiciais, cumpre determinar se a presente acção se enquadra nos artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, tomando como referência a sua redação ao tempo da respectiva propositura. Assim resulta do princípio consagrado no artigo 5.º do Estatuto e no n.º 2 do artigo 38.º Lei de Organização do Sistema Judiciário, segundo o qual a competência se fixa no momento em que a acção é proposta, sendo irrelevantes as alterações de direito posteriores. O artigo 38.º da Lei está incluído no Título V, relativo aos Tribunais Judiciais, e prevê duas excepções, nas quais a lei nova é de aplicação às acções pendentes: a extinção do tribunal onde a acção foi proposta e a atribuição de competência a tribunal incompetente.
A redacção do artigo 4.º que releva é, assim, a que resultou das alterações introduzidas pela Lei n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro.

6. Cumpre portanto determinar se está em causa um litígio “emergente das relações jurídicas administrativas e fiscais” (n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto), enunciadas no artigo 4.º.
Ora o presente litígio desenrola-se entre um Município e um particular, no âmbito de relações jurídicas administrativas, ou seja, de relações disciplinadas por normas de Direito Administrativo – em especial, o Regulamento do Ruído –, no exercício de poderes de autoridade e prosseguindo o interesse público.
Como escreveu Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa – Lições, 8ª Edição, Almedina 2006, pág. 49, com referência à versão do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aqui aplicável), atribuiu-se aos tribunais administrativos, “nos termos constitucionais, a competência para administrar a justiça «nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas» e concretiz(ou)-se exemplificativamente esse âmbito, em termos positivos e negativos (artigos 1.º e 4.º do ETAF).” A pág. 55 e segs., observou: «A consideração da dimensão substancial revela-se na medida em que a justiça administrativa tem, por determinação constitucional, uma matéria própria: integra os processos “que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas. Esta noção de “relação jurídica administrativa”, para efeitos de delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa, deve abranger a generalidade das relações jurídicas externas ou intersubjectivas de carácter administrativo, seja as que se estabeleçam entre os particulares e os entes administrativos, seja as que ocorram entre sujeitos administrativos”.
Assim se entendeu, por exemplo, no (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Março de 2019, www.dgsi.pt, processo n.º 2468/15.1T8CHV-A.G1.S1): “Do exposto, pode concluir-se, na senda de Gomes Canotilho e Vital Moreira, que para podermos afirmar que estamos ante uma relação jurídica administrativa temos de isolar dois elementos: (i) por um lado, um dos sujeitos há-de ser uma entidade pública ou se for privada deve atuar como se fosse pública; e (ii) por outro lado, os direitos e os deveres que constituem a relação hão-de emergir de normas legais de direito administrativo ou referir-se ao âmbito substancial da própria função administrativa. Será, pois, à luz do conceito de relação administrativa acima delineado que as diversas alíneas do artigo 4.º do ETAF devem ser lidas e interpretadas, posto que, conforme se deixou dito, face aos artigos 212.º, n.º 3, da CRP, e 1.º, n.º 1, do referido Estatuto, essencial para que a competência seja deferida aos tribunais administrativos é que o litígio se insira no âmbito de uma relação dessa natureza, o mesmo é dizer numa relação onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público”.

7. Considerando a al. b) do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais como litígios abrangidos pela competência dos tribunais administrativos e fiscais os respeitantes a “Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração”, conclui-se no sentido de que a jurisdição competente para a presente acção é a jurisdição administrativa e fiscal e, dentre desta, que a competência cabe aos tribunais administrativos (por delimitação negativa da competência dos tribunais tributários – cfr. artigo 49.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

8. Nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro, decide-se que é competente para a acção na qual é autora NOS Comunicações, SA e réu o Município de Loulé, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé.

Sem custas.

A relatora atesta que a adjunta, Senhora Vice-Presidente do STA, Conselheira Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa, votou favoravelmente este acórdão, não o assinando porque a sessão de julgamento decorreu em videoconferência.

Lisboa, 20 de Janeiro de 2021
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza