Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:024/20
Data do Acordão:03/23/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO.
POSTE DE SUPORTE.
LINHAS DE COMUNICAÇÕES TELEFÓNICAS.
CONCESSIONÁRIA.
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
Sumário:É da competência da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de questão respeitante à colocação de um poste de suporte das linhas de comunicação telefónica por fazer parte das atribuições de serviço público da concessionária pelo que está aqui em causa a licitude da actuação de uma concessionária, ainda que de mera actuação material, no exercício de poderes administrativos.
Nº Convencional:JSTA000P29169
Nº do Documento:SAC20220323024
Data de Entrada:10/20/2020
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA, JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE ARGANIL, E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE COIMBRA UO1
AUTOR: A............
RÉU: B............, SA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 24/20

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A…………, identificado nos autos, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Competência Genérica de Arganil, acção declarativa comum contra B…………, SA, pedindo a sua condenação a:
a) reconhecer o Autor como dono e legítimo proprietário do prédio rústico da união de freguesias de Coja e Barril de Alva, concelho de Arganil sito em Poços, inscrito matricialmente sob o artigo ………, proveniente o artigo ……… da extinta freguesia de Coja, descrito na Conservatória do registo Predial de Arganil sob o n.º ………;
b) reconhecer que está a ocupar abusivamente uma parte do terreno do Autor artigo matricial ………, impedindo o acesso de quaisquer veículos ao imóvel;
c) mandar retirar o poste e linhas de comunicação telefónica abusivamente colocadas no terreno propriedade do Autor, restituindo-lhe o espaço ocupado no prédio;
d) pagar ao Autor a quantia mínima de €1.000,00 pela impossibilidade do Autor limpar, lavrar, replantar, rentabilizar e utilizar o terreno, em virtude de nenhum veículo conseguir entrar na propriedade desde que a Ré ali colocou o poste;
e) pagar ao Autor a quantia de € 750,00 euros, a título de indemnização, pela utilização do espaço, pela colocação abusiva de um poste e linhas de comunicação telefónica e, assim, por enriquecimento sem causa da Ré;
f) pagar ao Autor juros legais de mora, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento das indemnizações supra descritas; (…)”.
Alega, em síntese, que a Ré procedeu à colocação de um poste de madeira de suporte de linhas de comunicação telefónica, a sustentar o traçado aéreo das mesmas, na entrada do prédio rústico sua propriedade, sem a sua autorização e sem que tenha recorrido a qualquer acto expropriativo ou tenha constituído uma servidão administrativa.
No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Competência Genérica de Arganil, o Autor, notificado para se pronunciar sobre a excepção de incompetência material do Tribunal, defendeu a competência dos tribunais judiciais e afirmou que “imputa à Ré actos violadores do seu direito de propriedade” dado que “a relação jurídica material controvertida (…) situa-se no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por danos causados a terceiros, estribando-se exclusivamente em regras de direito privado”.
Por decisão de 21.01.2020 aquele Tribunal julgou-se incompetente em razão da matéria por caber, atento o disposto no art. 4º, nº 1, als. g), h) e o) do ETAF, a competência à jurisdição administrativa. Para tanto, considerou que “O litígio a resolver decorre de uma relação jurídico administrativa enformada pelo direito administrativo, sendo um litígio a resolver com base no direito público, designadamente as normas legais que regem a instalação de postes de telecomunicações – porquanto a apreciação da eventual conduta ilícita da ré acarreta, necessariamente, a interpretação destas normas de direito público”.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra (TAF de Coimbra) este, por sua vez, em decisão de 14.07.2020, julgou-se materialmente incompetente para conhecer da acção apoiando-se na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos segundo a qual as acções de reivindicação de propriedade não se incluem em qualquer das hipóteses do artigo 4º do ETAF e, consequentemente, devem ser conhecidas pelos tribunais comuns. Considerou que no caso se está na presença de “(…) uma típica ação de reivindicação, em que é pedido o reconhecimento do direito de propriedade sobre um prédio (ou parte de um prédio), a restituição e reposição do mesmo ao seu estado inicial (isto é, sem as modificações aí introduzidas – a colocação de um poste e linhas de comunicação telefónica – em consequência da sua apropriação/ocupação ilegítima pela R.) e uma indemnização correspondente aos danos provocados pela violação do referido direito de propriedade”.
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito no TAF de Coimbra, foi o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos, as partes, notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º. da Lei nº 91/2019, nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência para conhecer do pedido deduzido pelo Autor deverá ser atribuída aos tribunais comuns.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº1, da CRP; 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Na presente acção o Autor demanda a Ré B…………, questionando a legalidade da instalação e manutenção, no prédio rústico de que é proprietário, de um poste de madeira de suporte de linhas de comunicação telefónica sem o seu consentimento e sem expropriação ou constituição de servidão, violando o seu direito de propriedade. E, em consequência dessa actuação ilegal da Ré, pede a sua condenação à reposição do prédio na situação em que se encontrava e à reparação dos prejuízos.
O Autor reconhece que a Ré é concessionária da exploração dos serviços públicos de comunicação e não alega que esses actos praticados pela Ré tenham tido lugar à margem das suas atribuições e competências.
Em situação idêntica decidiu este Tribunal dos Conflitos pela competência dos tribunais administrativos (cfr. Acórdãos de 07.10.2012, Proc. 03/12 e de 03.12.2015, Proc. 022/15 (disponíveis em www.dgsi.pt).
Afirmou-se no Acórdão deste Tribunal de 07.10.2012, Proc. 03/12:
Tal como se sucedia no caso apreciado pelo acórdão deste Tribunal dos Conflitos, no seu acórdão de 26 de Janeiro de 2012 (www.dgsi.pt, proc. n° 07/11), “o que está em causa na presente acção não é o reconhecimento da propriedade do prédio”, que ninguém contesta; mas sim, agora, determinar se, ao instalar o poste na propriedade do autor, a ré actuou ou não de acordo com a lei, no âmbito do regime (administrativo) aplicável, exercendo poderes (administrativos) que lhe são conferidos enquanto concessionária do serviço público de distribuição eléctrica.
É pois a legalidade da sua actuação como concessionária que se discute na presente acção, o que a insere no âmbito da competência dos tribunais administrativos, nos termos do disposto na al. d) do n° 1 do artigo 4° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, segundo o qual “1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: (...) d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos”.
6. O recorrente afirma ainda que “está em causa” apenas “a instalação do poste de electricidade”, à qual não está subjacente “qualquer acto administrativo”. No entanto, e com as devidas adaptações impostas pela circunstância de, aqui, se tratar de uma concessionária de um serviço público, vale o que se escreveu no acórdão de 2 de Março de 2011 (www.dgsi.pt, proc. n° 09/10): “não pode (...) afirmar-se que o exercício da função administrativa se resume à prática de actos administrativos de autoridade. A actuação da Administração Pública compreende também actuações materiais e muitas delas não correspondem necessariamente à execução de um acto administrativo. Essas actuações não deixam de ter natureza administrativa pelo facto de se apresentarem sob a forma de simples operações materiais. O que é necessário é que estejam enquadradas nas funções legais da entidade respectiva. Só uma voie de fait — ou seja, uma actuação material totalmente à margem das atribuições e competências da ré — abriria caminho à competência dos tribunais comuns.”.
Também no presente caso, a colocação de um poste de suporte das linhas de comunicação telefónica faz parte das atribuições de serviço público da concessionária pelo que está aqui em causa a licitude da actuação de uma concessionária, ainda que de mera actuação material, no exercício de poderes administrativos.
O Autor invoca a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio em causa para fundamentar o pedido principal que é a condenação da Ré a retirar o poste do seu prédio, repondo-o na situação em que se encontrava, e no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais pela utilização/ocupação do prédio. O pedido de reconhecimento do direito de propriedade é um pedido instrumental e pressuposto do pedido principal. Como já se disse não está aqui controvertido o direito de propriedade sobre o prédio rústico em causa, esse direito é admitido pela Ré na sua contestação.
Assim, e atento o disposto no art. 4º, nº 4, al. d), do ETAF, é de concluir, tal com tem vindo a ser decidido por este Tribunal dos Conflitos em casos idênticos, que a competência material deve ser atribuída aos tribunais administrativos e fiscais.

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção a jurisdição administrativa e fiscal, no caso o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra.
Sem custas.

Lisboa, 23 de Março de 2022. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.