Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01904/20.0T8VFR.S1
Data do Acordão:01/20/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO JURISDIÇÃO
Sumário:I - É da competência da jurisdição administrativa e fiscal uma acção na qual se pede a anulação de um despacho de um Presidente da Câmara considerado ilegal por, na respectiva fundamentação, considerar que, na sequência de uma operação de loteamento, integra o domínio público municipal uma parcela de terreno que a autora sustenta dele não fazer parte.
II - Não retira essa competência a formulação do pedido de que seja declarado que a propriedade dessa parcela pertence à herança representada pela autora, uma vez que, tal como conformou a acção, resulta que pretende a delimitação do que integra o domínio público.
Nº Convencional:JSTA000P27345
Nº do Documento:SAC2021012001904/20
Recorrente:TRIBUNAL J.COMARCA AVEIRO - JUÍZO LOCAL CÍVEL DE SANTA MARIA DA FEIRA – JUIZ 3
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE AVEIRO
Recorrido 1:.........
Recorrido 2:MUNICÍPIO DE SANTA MARIA DA FEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Tribunal dos Conflitos

Acordam, no Tribunal dos Conflitos:


1. AA. instaurou contra o Município de Santa Maria da Feira, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, uma acção administrativa de impugnação “do despacho do Senhor Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, datado de 31.01.2019”, pedindo a anulação do referido despacho, a declaração de que “a herança representada pela autora” é “dona e legítima proprietária do armazém” identificado nos autos, seja por presunção resultante do registo predial, seja por usucapião, e a condenação do réu “a reconhecer a herança representada pela A. como dona e legítima proprietária daquele prédio, que o mesmo não se encontra integrado no domínio público e abster-se de qualquer comportamento ou acção que contenda com o direito de propriedade da herança sobre o imóvel”.
O Município de Santa Maria da Feira contestou. Por entre o mais, suscitou a incompetência do tribunal, “em face dos pedidos que a A. formula nos autos (reconhecimento da propriedade de um imóvel (…) (cfr. Artº 4º do ETAF)”.
No despacho saneador, o réu foi absolvido da instância, por incompetência em razão da matéria. Para assim decidir, o tribunal considerou estar em causa “uma acção tipicamente real, já que a Autora invoca a propriedade do prédio; estamos no âmbito da defesa de direitos reais, nos termos do artigo 1311.º do Código Civil, o que transcende manifestamente a competência dos tribunais administrativos, pois não estamos perante o exercício de quaisquer direitos e/ou deveres públicos”. Cita, em seu apoio, os acórdãos n.ºs 043/18 e 048/18 do Tribunal dos Conflitos.
Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira, Juiz 3, tribunal para onde o processo foi remetido, entendeu-se, todavia, que a acção é da competência do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, sendo o réu novamente absolvido da instância.
O Tribunal observou que “a apreciação da questão fulcral da acção é, pois, a impugnação de um despacho proferido pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, datado de 31/01/2019, o que pressupõe, no seu mérito, a apreciação da questão da qualificação como dominial ou não duma parcela de terreno, incluindo-se tal matéria no âmbito da jurisdição administrativa. Não se trata in casu de uma típica acção de reivindicação da propriedade prevista no art.º 1311.º do Código Civil”.
A fls. 267 foi requerida a intervenção do Tribunal dos Conflitos.
Pelo despacho de fls. 274 do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça foi determinado que se procedesse à apreciação do presente conflito negativo de jurisdição, nos termos previstos pela Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro.
Notificadas para se pronunciarem, querendo, as partes nada disseram.
Nos termos do art. 11.º, n.º 4, da Lei n.º 91/2019, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de a competência pertencer ao Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira, louvando-se no acórdão n.º 048/18 do Tribunal dos Conflitos.

2. Está apenas em causa determinar qual é a jurisdição competente para apreciar os pedidos acima descritos – se a Ordem dos Tribunais Administrativos e Fiscais, se a Ordem dos Tribunais Judiciais – e, fixada a jurisdição, saber qual é concretamente o tribunal competente (n.º 5 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019).
No conjunto do sistema judiciário, os Tribunais Judiciais têm competência residual (n.º1 do artigo 211.º da Constituição e n.º 1 do artigo 40.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto); a jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212.º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. b) do nº 1 deste artigo 4º, cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal” julgar os litígios relativos aos actos da Administração Pública praticados “ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. n.º 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. n.º 3/12 ou, mais recentemente, os acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, ou de 27 de Fevereiro de 2020, proc. n.º 1393/18.9T8PNF.S1, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção.

3. Cumpre assim analisar os pedidos apresentados pela autora.
Resulta da petição inicial, desde logo, que a autora identifica como objecto da acção o referido despacho do Presidente da Câmara de Santa Maria da Feira (artigo 3.º), que considera ilegal, pois o imóvel a que se refere não integra “qualquer área de cedência ao domínio público”, uma vez que “essas áreas estão devidamente identificadas no título que aprovou a operação de loteamento e na própria descrição predial que as reproduz” (artigo 15.º) ; nem tão pouco “faz parte da área de nenhum dos lotes adjacentes” (artigo 16.º). “(…) O prédio da herança não está, nem nunca esteve integrado no domínio público, motivo pelo qual o despacho em crise é totalmente destituído de fundamento legal” (artigo 17.º). Refere-se a autora, segundo resulta da sua alegação, a uma operação de loteamento do “terreno rústico adjacente” ao armazém, na qual “foram determinadas as áreas de cedência ao domínio público e demais condições do loteamento aprovado” (artigos 11.º e 12.º).
Do despacho impugnado – na realidade junto com a contestação, uma vez que o documento anexo à petição inicial é a respectiva notificação (cfr. fls. 19 e fls. 48 e segs.) –, cuja fundamentação se alcança da concordância expressa com a informação que “faz parte integrante do presente despacho nos termos do artigo 153.º do CPA (…)” –, assim integrado, resulta, no essencial, que o armazém se encontra “implantado da área cedida ao município, no âmbito e por força do alvará de loteamento n.º …../91 e, ainda, parte do lote do mesmo loteamento”. “Em conclusão e com fundamento no exposto, propomos que seja o munícipe AA. , na qualidade de utilizador do prédio inscrito na matriz (…), a favor deste município, de que deverá em prazo máximo e improrrogável de 20 dias cessar com a utilização que vem sendo dada ao mesmo, devendo para tanto, no mesmo prazo, deixar tal espaço livre e devoluto de pessoas e bens (…). Propomos, ainda, que seja dado conhecimento à munícipe AA., na qualidade de sucessora legal de BB. (…)”.
A presente acção não pode, pois, equiparar-se a uma acção de reivindicação proposta por um particular contra uma entidade administrativa, como entendeu o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, e como estava em causa nos processos n.ºs 043/18 e 048/18 do Tribunal de Conflitos, citados pelo mesmo Tribunal.
Analisados os pedidos formulados pela autora, sendo certo que se entende que o pedido – o “efeito jurídico”, como o define o n.º 3 do artigo 581º do Código de Processo Civil – é o “efeito prático-jurídico” pretendido (cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016, www.dgsi.pt, proc. n.º 219/14.7TVPRT-C.P1.S1), verifica-se que a autora pede a título principal a anulação de um ato administrativo (determinação a CC. que desocupe um imóvel integrado no domínio público do Município), tratando-se de uma acção “relativa(…) a questões de delimitação do domínio público com outros domínios, que são questões de direito administrativo” (José Carlos Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa, Lições, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág.119).
É certo que pede a declaração de que a herança que alega representar é a proprietária do armazém que o despacho impugnado, na respectiva fundamentação, diz integrar o domínio público do Município, na sequência do processo (administrativo) de loteamento que refere; no entanto, da forma como a autora conformou a acção, resulta que pretende aquela delimitação e, consequentemente, o reconhecimento do direito de propriedade da herança.
Ora, como se decidiu, por exemplo, no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 12 de Janeiro de 2012, www.dgsi.pt, proc. n.º 23/10, estão incluídos na jurisdição administrativa “os litígios que envolvam, pelo menos, uma entidade pública ou uma entidade privada no exercício de poderes públicos e que versem sobre a qualificação de bens como pertencentes ao domínio público e actos de delimitação destes com bens de outra natureza, que antes da reforma do contencioso administrativo de 2004, se encontravam expressamente excluídos do âmbito da jurisdição administrativa (cfr. art. 4°, n.º 1 e) do ETAF/84), mas que depois daquela reforma passaram a integrar o âmbito da jurisdição”. As razões dessa exclusão, anteriormente a essa reforma, escreve Vieira de Andrade, op. cit., pág. 119, “estavam ligadas à ideia de que tudo o que respeitasse à propriedade devia ser julgado pelos tribunais judiciais, por desconfiança relativamente aos tribunais administrativos e pela pressuposição da limitação dos seus poderes – são (…) razões que deixaram de justificar o desvio relativamente ao critério substancial de definição o âmbito das jurisdições” dos tribunais administrativos e dos tribunais judiciais.
Referimo-nos ao critério substancial resultante da conjugação entre o n.º 1 do artigo 1.º [“(…) litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto” e, no caso, a al. b) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF “b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”. No caso, o acto impugnado provém de uma entidade pública, fundamenta-se nos termos do alvará do loteamento e tem finalidades de interesse público – a defesa do domínio público municipal.

4. Se o tribunal competente para julgar a impugnação deduzida nesta acção entender que a questão da propriedade do armazém desempenha na acção o papel de questão prejudicial, relativamente ao conhecimento da validade do acto administrativo, é da competência dos tribunais comuns, sempre poderá recorrer ao disposto no artigo 15º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (extensão da competência à decisão de questões prejudiciais). Tal prejudicialidade, porém, não retira o pedido principal do âmbito da jurisdição que lhe corresponde; nem tão pouco retiraria se o pedido de reconhecimento do direito de propriedade fosse de considerar como um pedido autónomo, cumulado com o pedido principal, tendo em conta a relação de prejudicialidade entre os dois (cfr. al. a) do n.º 1 e al. e) do n.º 2 do artigo 4º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).

5. Conclui-se, portanto, que cabe à jurisdição administrativa e fiscal o conhecimento da presente acção.
Nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro, decide-se que é competente para a acção na qual é autora AA. e réu o Município de Santa Maria da Feira o Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro.

Sem custas.

A relatora atesta que a adjunta, Senhora Vice-Presidente do STA, Conselheira Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa, votou favoravelmente este acórdão, não o assinando porque a sessão de julgamento decorreu em videoconferência.

Lisboa, 20 de Janeiro de 2021

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza