Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:04/22-CP
Data do Acordão:07/05/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ARAGÃO SEIA
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P31170
Nº do Documento:SAC2023070504
Data de Entrada:01/16/2023
Recorrente:CONSULTA DE JURISDIÇÃO Nº. 4/2022 - (ART° 16 N° 2 DA LEI 91/2019), SUSCITADA PELA SECÇÃO ADMINISTRATIVA DO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE SINTRA UO1 - NO PROCESSO N° 716/20.5BESNT
AUTOR: A..., SA,
RÉU: AGECOP - ASSOCIAÇÃO PARA A GESTÃO DA CÓPIA PRIVADA E OUTROS.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Consulta Prejudicial n.º 4/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

A..., S.A., identificada nos autos, deduziu no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra impugnação judicial contra o acto de liquidação da "Compensação Equitativa relativa à Cópia Privada" efetuada relativamente ao 2º Trimestre de 2019, emitido pela Associação para a Gestão da Cópia Privada (AGECOP), contra a decisão que recaiu sobre o pedido de revisão oficiosa apresentado junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e contra o acto de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado à AGECOP.
A final, pede que seja:
"a) determinada a anulação da decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado à AGECOP; e,
b) determinada a anulação da liquidação consubstanciada no Aviso de Cobrança 103/2950, de 17 de julho de 2019, referente à Compensação Equitativa relativa à Cópia Privada respeitante ao 2.º Trimestre de 2019, devolvendo-se à Impugnante o montante de € 2.322.788,67 (dois milhões trezentos e vinte e dois mil setecentos e oitenta e oito euros e sessenta e sete cêntimos), acrescido dos respetivos juros indemnizatórios".
Alegou, em síntese, que é uma sociedade de direito português que prossegue, no âmbito do seu objecto social, a actividade principal de comercialização de produtos eléctricos e electrónicos, incluindo acessórios, peças, software, aplicações e outros conteúdos, bem como a prestação de serviços de instalação, reparação, suporte e manutenção e que, nos termos da Lei n.º 62/98, de 1 de Setembro (Lei da Cópia Privada), a qual regula o disposto no artigo 82.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos ("CDADC"), a Impugnante encontra-se sujeita ao pagamento da "Compensação Equitativa relativa à Cópia Privada".
Nessa medida, "foi notificada do ato tributário consubstanciado no Aviso de Cobrança 103/2950, de 17 de julho de 2019, referente à "Compensação Equitativa relativa à Cópia Privada" relativa ao 2.º Trimestre de 2019, emitido pela AGECOP” e procedeu ao pagamento do montante de 2.322.788,67€ (dois milhões trezentos e vinte e dois mil setecentos e oitenta e oito euros e sessenta e sete cêntimos).
Não se conformando, deduziu em 27.03.2020 um pedido de revisão oficiosa dirigido ao Presidente da Direcção da AGECOP e que, por dever de patrocínio e atenta a eventualidade de existir diferente entendimento quanto à competência para decidir, a Impugnante também apresentou na mesma data um pedido de revisão oficiosa junto da Autoridade Tributária e Aduaneira.
A Autoridade Tributária e Aduaneira declarou-se incompetente para a sua apreciação, concluindo pela rejeição liminar do respectivo pedido. Uma vez que não foi notificada de qualquer decisão referente ao pedido dirigido à AGECOP, a Impugnante presumiu que se formou indeferimento tácito do mesmo em 27.07.2020.
Em suma, entende a Impugnante que a compensação prevista nos artigos 2.º e 3.º da Lei n.º 62/98, de 1 de Setembro (Lei da Cópia Privada), com redacção dada pela Lei n.º 100/2017, de 23 de Agosto, é ilegal por violação do Direito Comunitário, designadamente da Directiva n.º. 2001/29/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2001, e por violação dos princípios constitucionais da reserva à intimidade da vida privada, da liberdade de aprendizagem e da liberdade de informação, cultural e de entretenimento, bem como do princípio do Estado Fiscal, do princípio da protecção da confiança, do princípio da proporcionalidade e do princípio da igualdade.
Considera, ainda, que a "compensação equitativa para a cópia privada" tem uma natureza jurídico-tributária. Invoca que o seu regime encerra presunções inilidíveis, incorrendo, assim, em violação do princípio da capacidade contributiva.
A Autoridade Tributária e Aduaneira e a AGECOP contestaram e, além do mais, suscitaram a excepção da incompetência do Tribunal em razão da matéria.
Por despacho da Sra. Juíza do TAF de Sintra, de 14.07.2022, foi decidido suscitar a Consulta Prejudicial deste Tribunal dos Conflitos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 15.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro, por se haver entendido - com os fundamentos do despacho de 07.06.2022 - que a questão da jurisdição competente levantava fundadas dúvidas.
Na sequência da notificação do despacho. de 07.06.2022, a Impugnante afirmou nada ter a opor a que fosse submetida a este Tribunal dos Conflitos a questão da competência material.
Por seu turno, a AGECOP defendeu a desnecessidade da Consulta e pugnou pelo conhecimento da excepção invocada no sentido da incompetência material do Tribunal.
Remetidos os autos a este Tribunal dos Conflitos, face ao pedido de Consulta nos termos do n.º 1 do artigo 15.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro, foi dado cumprimento ao disposto no n.º 3 do artigo 11.º daquele diploma.
Na sequência, a Impugnante veio pronunciar-se no sentido de ser considerado competente em razão da matéria o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra por força do disposto no artigo 1.º n.º s 1 e 3 da LGT, assim como dos artigos 1.º, n.º 1 e 49.º, n.º 1, al. a) do ETAF e 212.º n.º 3 da CRP, por entender que “a causa de pedir não versa sobre a temática relacionada com o Direito de Autor e com a aplicação do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, antes e tão só à avaliação da conformidade desta compensação com os princípios jurídico-tributários e constitucionais, deve entender-se que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra é competente, em razão da matéria, para apreciar o litígio que corre termos no processo de impugnação judicial. (…) e que "não está em causa um debate sobre a interpretação jurídica de uma norma prevista na Lei n.º 62/98, de 1 de setembro, alterada pela Lei n.º 49/2015, de 5 de junho, ou a matéria em causa está relacionada com a substância do Direito de Autor ou com a aplicação de disposições do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, pelo que o artigo 111.º n.º 1, alínea k), da LOSJ não pode determinar a competência do Tribunal no caso em apreço".
Por sua vez, a AGECOP defendeu não existir necessidade de pronúncia no presente caso dado que "a competência da Jurisdição Administrativa e Fiscal para conhecer de litígios exatamente iguais aos presentes Autos mas referentes a outros períodos (...) já foi julgada 6 (seis) vezes, tendo-se sempre concluído pela competência dos Tribunais Comuns, mormente pelo Tribunal do Propriedade Intelectual", que num processo movido contra a Associação por outro Autor, no qual se discutia um tema relacionado com a não-cobrança da Compensação Equitativa, também o TAF do Porto considerou a Jurisdição Administrativa e Fiscal como incompetente e que o Tribunal da Relação de Lisboa, em sede de recurso em processo, que identifica, no qual se visava precisamente a Compensação Equitativa, confirmou expressamente a competência dos tribunais comuns. A ser emitida pronúncia, acrescenta, deverá ser no sentido de considerar como competente a jurisdição comum, mormente o Tribunal de Propriedade Intelectual, dado que "ao se pretender a anulação das Compensações Equitativas com base em violação por parte da Lei da Cópia Privada, de diretivas comunitárias e da Constituição, a causa de pedir nos presentes Autos versa sobre o regime jurídico da Cópia Privada, mais concretamente sobre um aspeto essencial desse regime que é o relacionado com a criação e regulamentação da figura da Compensação Equitativa".
O Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de não se dever conhecer da Consulta Prejudicial suscitada pelo TAF de Sintra por se encontrarem vários processos pendentes de recurso no TCAS.
Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, n.º1, da CRP, 64.º do CPC e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212.º, n.º 3, da CRP e 1.º, n.º 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do "âmbito da jurisdição" mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (n.ºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se viu, está em discussão nos autos a legalidade da cobrança da quantia prevista no artigo 82.º (Compensação devida pela reprodução ou gravação de obras) do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDAC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de Março, com subsequentes alterações, que dispõe: "No preço de venda ao público de todos e quaisquer aparelhos mecânicos, químicos, eléctricos, electrónicos ou outros que permitam a fixação e reprodução de obras e, bem assim, de todos e quaisquer suportes materiais das fixações e reproduções que por qualquer desses meios possam obter-se, incluir-se-á uma quantia destinada a beneficiar os autores, os artistas, intérpretes ou executantes, os editores e os produtores fonográficos e videográficos", exceptuando-se apenas o caso daqueles aparelhos e suportes serem adquiridos “por organismos de comunicação audiovisual ou produtores de fonogramas e videogramas exclusivamente para as suas próprias produções ou por organismos que os utilizem para fins exclusivos de auxílio a diminuídos físicos visuais ou auditivos”.
Aquele artigo 82.º veio a ser regulado pela Lei n.º 62/98, de 1 de Setembro (alterada pela Leis n.ºs 50/2004, de 24 de Agosto, 49/2015, de 05 de Junho, pelo Decreto-Lei n.º 100/2017, de 23 de Agosto e pela Lei n.º 2/2020, de 31 de Março), que estipula no artigo 2.º: “Com vista a beneficiar os autores, os artistas intérpretes ou executantes, os editores e os produtores fonográficos e videográficos, uma quantia é incluída no preço de venda ou disponibilização: a) De todos e quaisquer aparelhos que permitam a fixação de obras; b) Dos suportes materiais virgens digitais ou analógicos, com exceção do papel, previstos no n.º 4 do artigo 3.º, bem como das fixações e reproduções que por qualquer desses meios possam obter-se", estabelecendo o artigo 3.º, sob a epígrafe "Compensação equitativa", que:
"1 - A quantia referida no artigo anterior tem a natureza de compensação equitativa, visando compensar os titulares de direitos dos danos patrimoniais sofridos com a prática da cópia privada.
2 - Sempre que a utilização seja habitual e para servir o público mediante a prática de atos de comércio, o preço de venda ao público das fotocópias de obras, eletrocópias e demais suportes inclui uma compensação equitativa correspondente a 3 /prct. do valor do preço de venda, antes da aplicação do IVA, montante que é gerido pela entidade gestora a que se refere o artigo 6.º
3 - Para os efeitos do disposto no número anterior, e em ordem a permitir a sua correta exequibilidade, devem as entidades públicas e privadas que utilizem, nas condições supramencionadas, aparelhos que permitam afixação e a reprodução de obras e prestações, celebrar acordos com a entidade gestora referida no número anterior.
4 - No preço da primeira venda ou disponibilização em território nacional e antes da aplicação do IVA em cada um dos aparelhos, dispositivos e suportes analógicos e digitais que permitem a reprodução e armazenagem de obras, é incluído um valor compensatório nos termos da tabela anexa à presente lei e da qual faz parte integrante".
Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 62/98, de 1 de Setembro "A cobrança, gestão e distribuição da compensação equitativa a que se refere o artigo 3.º incumbem à AGECOP - Associação para a Gestão da Cópia Privada, adiante designada entidade gestora, pessoa coletiva, sem fins lucrativos, de natureza associativa, constituída por todas as entidades de gestão coletiva que em Portugal representam os autores, os artistas, intérpretes e executantes, os produtores de fonogramas, os produtores de videogramas, e os editores".
Aquela associação deve "afetar 20 /prct. do valor total das compensações equitativas percebidas para ações de incentivo à atividade cultural e à investigação e divulgação dos direitos de autor e direitos conexos" e, deduzidos os custos do seu funcionamento, em percentagem fixada consoante os casos "para os organismos representativos dos autores, para os organismos representativos dos editores, para os organismos representativos dos artistas, intérpretes ou executantes e para os organismos representativos dos produtores de fonogramas ou de videogramas” (artigo 7.º).

Previa-se, ainda, no artigo 5.º -A da mesma Lei, norma entretanto revogada pela Lei n.º 2/2020, de 31 de Março, que "A partir de 2015, em cada ano civil, caso o montante da compensação equitativa cobrado pela entidade gestora a que se refere o artigo 6.º seja superior a 15 milhões de euros, o montante superior a esse valor constitui receita própria do Fundo de Fomento Cultural e destina-se a contribuir para financiar programas de incentivo à promoção de atividades culturais e à criação cultural e artística, com prioridade ao investimento em novos talentos".
A Directiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação - transposta pela Lei n.º 50/2004 de 24 de Agosto, que introduziu alterações ao CDADC e à Lei n.º 62/98 -, admite que os Estados membros possam estabelecer excepções ou limitações ao direito de reprodução previsto no artigo 2.º da Directiva "em relação às reproduções em qualquer meio efectuadas por uma pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos, desde que os titulares dos direitos obtenham uma compensação equitativa que tome em conta a aplicação ou a não aplicação de medidas de carácter tecnológico, referidas no artigo 6.º, à obra ou outro material em causa" (artigo 5.º).
A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a propósito da interpretação da Directiva, tem considerado que o conceito de “compensação equitativa”, na acepção do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), da Directiva 2001/29, é um conceito autónomo de direito da União, que deve assim ser interpretado de maneira uniforme em todos os Estados-Membros que tenham introduzido uma excepção e que decorre dos considerandos 35 e 38 da Diretiva 2001/29 que a concepção e o nível da compensação equitativa estão ligados ao prejuízo que resulta para o autor da reprodução da sua obra protegida, efectuada sem a sua autorização. Nesta perspetiva, a compensação equitativa deve ser vista como a contrapartida do prejuízo sofrido pelo autor.
Tendo em conta as dificuldades práticas para identificar os utilizadores privados e os obrigar a indemnizar os titulares do direito exclusivo de reprodução do prejuízo que lhes causam, o Tribunal admitiu ser permitido aos Estados-Membros instaurar, para efeitos do financiamento da compensação equitativa, uma «taxa por cópia privada», a cargo, não das pessoas privadas visadas, mas das que disponibilizam os equipamentos, aparelhos e suportes de reprodução digital. No quadro desse sistema, é às pessoas que dispõem desses equipamentos, aparelhos e suportes de reprodução que incumbe pagar a taxa por cópia privada e uma vez que o referido sistema permite que os devedores repercutam o montante da taxa por cópia privada no preço da disponibilização dos referidos equipamentos, aparelhos e suportes de reprodução ou no preço do serviço de reprodução prestado, o encargo da taxa é, em definitivo, suportado pelo utilizador privado que paga esse preço, e isto em conformidade com o «justo equilíbrio» a encontrar entre os interesses dos titulares do direito exclusivo de reprodução e os dos utilizadores de material protegido (cfr., entre outros, acórdãos de 21.10.2001, Padawan, C-467/08, de 16.06.2011, Stichting de Thuiskopie, C-462/09, de 11.07.2013, Amazon.com International Sales e o., C-521/11 e de 5.03.2015, Copydan Bândkopi, C-463/12).
Tal como é referido no processo, algumas normas da Lei n.º 62/98 foram apreciadas pelo Tribunal Constitucional em processo de fiscalização abstracta sucessiva. No acórdão n.º 616/2003, o Tribunal Constitucional, sem tomar posição definitiva sobre a qualificação precisa da prestação pecuniária em causa, concluiu, com dois votos de vencido, "que, deva ou não ser rigorosamente caracterizada como imposto ou, antes, como receita coactiva "parafiscal", dele próxima, a "quantia" ou "remuneração" prevista na Lei n.º 62/98, de 1 de Setembro, deve ser tratada, do ponto de vista jurídico-constitucional, no quadro da norma do artigo 103º, n.º 2, da Constituição da República, que determina que caberá à lei determinar a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes (e isto, portanto, apenas no plano da tipicidade e da legalidade tributárias, deixando em aberto a constitucionalidade material desta figura, para além destes parâmetros).
Por conseguinte, o montante da remuneração devida - que, grosso modo, se aproxima do conceito de "taxa" do imposto - teria de ser fixado por lei, não podendo sê-lo, como se prevê no artigo 3º, n.º 1 da Lei n.º 62/98, através de despacho conjunto dos Ministros das Finanças e da Cultura, ou, nos termos do n.º 2 desse mesmo artigo 3º, através de acordo entre a associação criada pelo artigo 6º da Lei n.º 62/98 e as entidades públicas ou privadas que utilizem aparelhos que permitam a fixação e a reprodução de obras e prestações" tendo decidido "declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas do artigo 3º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 62/98, de 1 de Setembro, por violação do artigo 103º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa".
Em consequência foi alterada a Lei da Cópia Privada, através da Lei n.º 50/2004, de 24 de Agosto, passando o artigo 3.º a prever directamente as quantias a incluir no preço de venda ao público das compensações equitativas.
Também a doutrina se tem debruçado sobre a natureza jurídica da “compensação equitativa” com posições nem sempre coincidentes (cfr. a resenha feita em Compensação equitativa por cópia privada digital, Mariana Mourão Reis, in Revista Electrónica de Direito, Fev. 2019, pag. 24 e ss).
Todavia, para aferir a competência jurisdicional, importa saber se estamos perante uma relação jurídica fiscal porque, como se disse, cabe aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas "emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais".

O Supremo Tribunal Administrativo tem entendido (acórdão de 03.02.2016, proc. 0862/15) que o conceito de relação jurídica tributária "além de ter definição legal no nº 2 do art. 1º da LGT (é a relação estabelecida entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas) e de ter indicadas (no nº 2 do mesmo art.1º) as entidades da AT que podem figurar como sujeitos dessa relação, também tem o seu objecto normativamente especificado: dispõe-se no art. 30º da LGT que integram a relação jurídica tributária, o crédito e a dívida tributários; o direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição; o direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto; o direito a juros compensatórios; o direito a juros indemnizatórios (...) Daí que, (...) se deva considerar como consolidado o entendimento jurisprudencial no sentido de que constitui questão fiscal, aquela cuja apreciação e resolução exige a interpretação e aplicação de normas de direito fiscal, inscritas no domínio da actividade tributária da administração (Além do citado ac. do STA, Plenário, de 29/1/2014, proc. nº 01771/13, cfr., igualmente, os acs. do Plenário, de 21/3/2012, proc. nº 189/11; de 27/5/2009, proc. nº 119/08; de 2/4/2009, proc. nº 987/08)".

E no acórdão de 04.12.2019, Proc. 01898/14.0BELRS, o Supremo Tribunal Administrativo afirmou que "(...) deve entender-se por "questão fiscal", aquela que, de qualquer forma, imediata ou mediata, faça apelo à interpretação e aplicação de norma de direito fiscal com atinência ao exercício da função tributária da Administração ou à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos. Sendo assim "questão fiscal" aquela que emerge de resolução autoritária que imponha o pagamento de prestações pecuniárias com vista à satisfação de encargos públicos dos respectivos entes impositivos (cfr. Casalta Nabais in, “Direito Fiscal”, 2.ª edição, pág. 366). Ou, por outras palavras, está-se perante "questão fiscal" "quando a mesma diga respeito à interpretação e aplicação de normas legais de natureza tributária, ou seja, se refira a uma resolução autoritária que negue direito a não pagamento ou que imponha o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação dos encargos públicos do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que com elas estejam objetivamente conexas ou teleologicamente subordinadas" (vide, Acórdão do TCA Norte de 25/11/2011, Proc. 02750/10.4BEPRT, in www.dgsi.pt/jtcan)".
O Tribunal dos Conflitos também considerou, citando decisões do Supremo Tribunal Administrativo, que por "questões fiscais, deve entender-se tanto as resultantes de imposições autoritárias que postulem aos contribuintes o pagamento de toda e qualquer prestação pecuniária, em ordem à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos dos respectivos entes impositores, como também das que as dispensem ou isentem, ou, numa perspectiva mais abrangente, as respeitantes à interpretação e aplicação de normas de direito fiscal, com atinência ao exercício da função tributária da Administração Pública, em suma, ao regime legal dos tributos." (cfr. acórdão de 25.09.2014, Proc. 029/14, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, o que está em discussão no presente processo não respeita a uma relação jurídica tributária mas a uma relação jurídica privada.
De facto, a AGECOP é uma pessoa colectiva, sem fins lucrativos, de natureza associativa, constituída por todas as entidades de gestão colectiva que em Portugal representam os autores, os artistas, intérpretes e executantes, os produtores de fonogramas, os produtores de videogramas, e os editores e que tem por objecto cobrar, gerir e distribuir as quantias pagas a título de “compensação equitativa".
As quantias por ela cobradas destinam-se a compensar os titulares dos direitos de autor, sujeitos privados, pelos danos sofridos com a excepção da cópia privada, e não a satisfazer encargos públicos.
Em suma, não estamos perante uma relação jurídica tributária. A matéria em causa nos presentes autos refere-se a cobrança de receitas de natureza privada e as partes em litígio são ambas de natureza privada, não integrando qualquer delas a administração tributária. Está em discussão uma relação jurídica privada que não cabe na esfera de competência dos tribunais tributários.
Por outro lado, extrai-se da leitura do requerimento inicial que a Impugnante pretende a anulação das quantias pagas a título de compensação equitativa, com fundamento em alegadas ilegalidades da Lei 62/98 que regula o disposto no artigo 82.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos. Daí resulta que a causa de pedir no presente processo versa questões relativas ao regime jurídico da cópia privada e, nessa medida, a sua apreciação cabe na competência dos tribunais judiciais, mais concretamente ao Tribunal da Propriedade Intelectual por, nos termos da alínea k) do n.º 1 do artigo 111.º da LOSJ, lhe competir conhecer das questões relativas a acções em que a causa de pedir verse sobre o regime jurídico da cópia privada.

Pelo exposto, e nos termos do disposto no artigo 17.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro, acordam em emitir pronúncia no sentido de que cabe aos Tribunais Judiciais conhecer da presente acção, no caso ao Tribunal da Propriedade Intelectual.

Lisboa, 5 de julho de 2023. - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia (relator) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.