Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:032/21
Data do Acordão:04/06/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
ACORDO DE ACTIVIDADE OCUPACIONAL
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:A competência para conhecer de acção em que está em causa um acidente sofrido por um trabalhador no âmbito de execução de um “contrato emprego-inserção”, ou similar, cabe aos tribunais judiciais.
Nº Convencional:JSTA000P29207
Nº do Documento:SAC20220406032
Data de Entrada:11/09/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL DO TRABALHO DO FUNCHAL SECÇÃO ÚNICA E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DO FUNCHAL
AUTOR: A......
RÉU: INSTITUTO DE EMPREGO DA MADEIRA, IP – RAM E JUNTA DE FREGUESIA DE SANTO ANTÓNIO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A………, identificado nos autos, intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal (TAF do Funchal), em 14.06.2013, acção contra o Instituto do Emprego da Madeira, IP-RAM e a Junta de Freguesia de Santo António, pedindo:
a) Que seja reconhecido que o Autor tem direito a ser indemnizado da quantia que vier a ser arbitrada em execução de sentença, pela Incapacidade Parcial Permanente que lhe foi fixada.
b) Que os Réus sejam condenados solidariamente a pagarem ao Autor a quantia que vier a ser fixada em sede de execução de sentença, acrescida dos respetivos juros legais que se vencerem até integral pagamento, pela Incapacidade Parcial Permanente que lhe for fixada no âmbito desta ação.
c) Que os Réus sejam solidariamente condenados a pagarem, em sede da verificação dos danos não patrimoniais e respetiva responsabilização em sede da responsabilidade civil, a uma indemnização equitativa a fixar pelo Digníssimo Tribunal de valor nunca inferior a, pelo menos, €10.000,00 (dez mil euros)
d) Que os Réus sejam condenados no pagamento das custas processuais e demais encargos com o processo.
Anteriormente o Tribunal de Trabalho do Funchal [Processo nº 110/11.9TTFUN], por despacho de 25.06.2012, julgou-se incompetente em razão da matéria, para conhecer do litígio por entender que “actuando o sinistrado no âmbito de um programa ocupacional, não se gerou uma típica relação de trabalho ou equiparada, desde logo pela ausência de um dos seus elementos típicos: a retribuição e o seu contraponto, a colocação da força de trabalho ao dispor da entidade beneficiária (…) a competência para a apreciação em serviço dos direitos decorrentes das consequências do acidente em serviço de que o sinistrado foi vítima não compete a este Tribunal do Trabalho, dado que não se trata de acidente abrangido pelo disposto no artigo 85º, c) da Lei 3/99, de 13 de Janeiro.” (cfr. fls. 218 e verso dos autos).
Em seguida, o A propôs a presente acção junto do TAF do Funchal. Os RR contestaram por impugnação e por excepção.
Deferido o pedido do A., formulado na resposta às excepções, foi admitida a intervenção provocada da companhia de seguros B……… – Sucursal em Portugal, para a qual o R Instituto de Emprego da Madeira – IP-RAM tinha transferido a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de quaisquer acidentes trabalhos, no âmbito do programa ocupacional em que o Autor se encontrava a desempenhar funções. A R Junta de Freguesia e a Chamada B……. suscitaram a incompetência material do Tribunal.
O TAF do Funchal, em saneador-sentença proferido em 02.09.2021, apoiando-se em jurisprudência do Tribunal dos Conflitos que tem uniformemente entendido que um acidente sofrido por trabalhador, beneficiário do rendimento social de inserção, a exercer funções para um ente público, no âmbito de um contrato emprego-inserção, no tempo e local do trabalho prestado, deve ser considerado como acidente de trabalho, nos termos dos artigos 3º, 8º e 9º, da Lei nº 98/2009, de 4/9, julgou-se também incompetente em razão da matéria.
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito pelo TAF do Funchal por despacho de 04.11.2021, foi o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos.
As partes notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11º da Lei nº 91/2019, nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar a presente acção aos tribunais judiciais.

2. Os Factos
Os factos com interesse para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
Em síntese o A. alega que sofreu um acidente no exercício da prestação de trabalho executada ao serviço da Junta de Freguesia de Santo António, como participante no “Programa Ocupacional de Trabalhadores Subsidiados” desenvolvido pelo Instituto de Emprego da Madeira, IP-RAM, ao abrigo da Portaria nº 119/2007, de 9 de Novembro, dele resultando danos patrimoniais e não patrimoniais dos quais se pretende ver ressarcido.
O Programa Ocupacional dos Trabalhadores Subsidiados, aprovado e regulamentado pela Portaria nº 119/2007, de 9 de Novembro, publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, I Série tem como objectivos: “a) Proporcionar aos trabalhadores subsidiados uma ocupação em trabalho socialmente necessário; b) Possibilitar aos trabalhadores subsidiados uma experiência de trabalho e formação suplementar que lhes facilite, no futuro, a obtenção de um emprego estável ou a criação do próprio emprego; c) Contribuir para evitar o afastamento prolongado dos trabalhadores subsidiados relativamente ao mercado de trabalho; d) Sensibilizar as entidades promotoras destas actividades para a ocupação temporária destes trabalhadores e a sua possível inclusão no mercado de trabalho” (art. 2º).
No âmbito deste programa foi assinado entre o Autor, o Instituto do Emprego da Madeira, IP-RAM e a Junta de Freguesia de Santo António um acordo de actividade ocupacional conforme previsto no art. 5º da citada Portaria e onde constam direitos e deveres de cada uma das partes.
Ora, da celebração desse “Acordo de Actividade Ocupacional” não decorre o estabelecimento de qualquer vínculo de trabalho em funções públicas nos termos da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP).
Efectivamente, o art. 6º da LTFP (Lei nº 35/2014, de 20/6), prevê as modalidades de prestação de trabalho em funções públicas que se traduzem no vínculo de emprego público e no contrato de prestação de serviço. E, conforme o nº 3 deste preceito, as modalidades do vínculo de emprego público são o contrato de trabalho em funções públicas, a nomeação e a comissão de serviço. Por sua vez, o art. 10º dispõe que “O contrato de prestação de serviço para o exercício de funções públicas é celebrado para a prestação de trabalho em órgão ou serviço sem sujeição à respetiva disciplina e direção, nem horário de trabalho” e o n.º 2 que as suas modalidades são o contrato de tarefa e o contrato de avença.
Ora, o DL nº 503/99, de 20/11 (regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública) determina no seu artigo 2º que “O disposto no presente decreto-lei é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração directa e indirecta do Estado” (nº 1) e que “O disposto no presente decreto-lei é também aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nos serviços das administrações regionais e autárquicas e nos órgãos e serviços de apoio do Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do Ministério Público e respectivos órgãos de gestão e de outros órgãos independentes” (nº 2). Ao que acresce que “O disposto no presente decreto-lei é ainda aplicável aos membros dos gabinetes de apoio quer dos membros do Governo quer dos titulares dos órgãos referidos no número anterior” (nº 3).
Por outro lado, nos termos do nº 4: “Aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, devendo as respectivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos naquele Código”.
Por sua vez, de acordo com o nº 5: “O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação do regime de protecção social na eventualidade de doença profissional aos trabalhadores inscritos nas instituições de segurança social”. Por último, dispõe o n.º 6 que “As referências legais feitas a acidentes em serviço consideram-se feitas a acidentes de trabalho”.
Assim, não pode o acidente em apreço considerar-se abrangido pelo regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública.
Já a Lei nº 98/2009, de 4/9, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, prevê de forma ampla o seu âmbito de aplicação no que respeita a acidentes de trabalho e é parte integrante do regime do contrato de trabalho consagrado no Código do Trabalho. O art. 284º deste Código remete a regulamentação da prevenção e reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais para “legislação específica”, que é justamente a Lei nº 98/2009.
Na situação em apreço, a relação estabelecida entre entidade promotora da actividade ocupacional e o trabalhador cabe na previsão normativa do art. 3º, de acordo com a qual “O regime previsto na presente lei abrange o trabalhador por conta de outrem de qualquer actividade, seja ou não explorada com fins lucrativos” (nº 1) e “Quando a presente lei não impuser entendimento diferente, presume-se que o trabalhador está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços” (nº 2).
E que de acordo com o nº 3 do referido preceito: “Para além da situação do praticante, aprendiz e estagiário, considera-se situação de formação profissional a que tem por finalidade a preparação, promoção e actualização profissional do trabalhador, necessária ao desempenho de funções inerentes à actividade do empregador”.
A entidade por conta de quem o trabalho é prestado é obrigada a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na Lei nº 98/2009 para “entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro”, conforme o art. 79º, nº 1.


O acidente em causa nos autos é susceptível de ser considerado como um acidente de trabalho, nos termos dos arts. 3º, 8º e 9º, da Lei nº 98/2009, de 4/9, já que é subsumível ao conceito de acidente de trabalho previsto no art. 8º, nº 1, segundo o qual “é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução da capacidade de ganho ou a morte”.
O Tribunal dos Conflitos já se pronunciou em situação idêntica à dos presentes autos, nos casos em que estava em causa um acidente sofrido por um trabalhador no âmbito de execução de um “contrato emprego-inserção”, sendo uniforme a posição assumida de que cabe aos tribunais judiciais a competência para o seu conhecimento (cfr. Acórdãos do Tribunal dos Conflitos nº 15/17, de 19.10.2017, nº 53/17, de 25.01.2018, nº 40/18, de 31.01.2019, nº 42/18, de 28.02.2019, nº 15/19, de 30.01.2019 e nº 37/19, de 6.02.2019, 50/2029, 51/2019, 52/2019 de 25.06.2020, nº 44/19, de 03.11.2020, n.º 8/20, de 27.04.2021, n.º 31/20, de 08.07.2021 e nº 13/21, de 18.10.2021).
Esta jurisprudência é inteiramente transponível para o caso em apreço por se tratar de matéria em tudo semelhante.
Assim, e atento o disposto no art. 4º, nº 4, al. b), do ETAF - que excluí do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal os litígios “decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público” -, é de concluir, tal com tem vindo a ser decidido por este Tribunal dos Conflitos em casos idênticos, que o acidente em causa nos autos não pode considerar-se abrangido pelo Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública.
Antes devendo ser considerado um acidente de trabalho, nos termos da Lei nº 98/2009, razão pela qual a competência para conhecer do presente processo deve ser atribuída aos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em atribuir a competência para conhecer da presente acção ao Tribunal Judicial da Comarca da Madeira [Juízo do Trabalho do Funchal].
Sem custas.

Lisboa, 6 de Abril de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.