Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01/22-CP
Data do Acordão:04/06/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:PARCELA DE TERRENO
DOMÍNIO PÚBLICO
Sumário:Cabe à Jurisdição Administrativa e Fiscal conhecer de uma acção em que se discute o direito de cedência de uma parcela de terreno ao domínio público municipal, pretendendo o Município que ocorra a sua restituição imediata.
Nº Convencional:JSTA000P29202
Nº do Documento:SAC2022040601
Data de Entrada:02/04/2022
Recorrente:CONSULTA DE JURISDIÇÃO (ARTº 16º Nº 2 DA LEI 91/2019), SUSCITADA PELA SECÇÃO ADMINISTRATIVA DO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LEIRIA NO PROCESSO Nº 858/16.1BELRA
AUTOR: MUNICÍPIO DE LEIRIA
RÉU: ESTADO PORTUGUÊS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: CONSULTA JURISDICIONAL nº 1/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

Por despacho da Sra. Juíza do TAF de Leiria, de 01.02.2022, foi decidido suscitar a consulta prejudicial deste Tribunal dos Conflitos, ao abrigo do art. 15º, nº 1 da Lei nº 91/2019, de 4/9, por se haver entendido - com os fundamentos do despacho de 14.12.2021 - que a questão da jurisdição competente levanta fundadas dúvidas.
Na sequência da notificação do despacho de 14.12.2021, o A. Município de Leiria, veio dizer que, não obstante entender que o TAF de Leiria é competente, em razão da matéria para julgar a presente acção, nada tem a opor a que se submeta a questão da competência material a este Tribunal dos Conflitos.
Por sua vez o Réu A…………..[entretanto habilitado como herdeiro dos réus B……….. e mulher – cfr. fls. 289/290] veio também dizer que havendo dúvidas sobre a competência material do Tribunal, suscitada oficiosamente, não se opõe à submissão da questão ao Tribunal dos Conflitos.

A presente acção ordinária foi intentada pelo Município de Leiria contra B………… e mulher C…………. e D………., Lda, no Tribunal Judicial de Leiria, sendo formulados, nomeadamente, os seguintes pedidos:
a) Declarar-se que a parcela descrita nos supra art.ºs 5º, 14º, 15º e 49º, actualmente registada em nome da empresa Ré, pertence ao domínio público do Município de Leiria, sendo este seu dono e legítimo proprietário;
b) Declarar-se que esta parcela, por força do alvará de loteamento n.º 484 constitui área de cedência do Loteamento n.º 27/81 destinando-se a espaço verde de utilização colectiva;
c) Declarar-se que de acordo com o citado alvará e planta anexa não lhe poderá ser dado qualquer outro uso;
d) Declarar-se que esta parcela mede 261,07 m2 e que confronta de Sul – Lote 1, do Nascente – Lote 2 e 3, do Norte – Com o edifício licenciado pelo processo n.º 1191/89, em nome da empresa Ré e do Poente com E……… e outros.
A condenação dos Réus a reconhecer o que vem pedido supra e, em consequência:
b) A restituir a parcela em litígio ao domínio público municipal;
c) A abster-se de praticar qualquer acto sobre a citada parcela, designadamente os muros ali existentes;
d) A remover tudo o que colocou sobre aquela, designadamente o lixo e materiais ali existentes.
Mais peticionou o A. que fossem declarados nulos os actos jurídicos que serviram de base ao registo predial da parcela em questão e ao cancelamento do referido registo predial.
Alegou o A., em síntese, que tinha emitido licença para loteamento e respectivas obras de urbanização de determinado terreno que era propriedade dos Réus, pessoas singulares, contra a cedência por parte destes àquele de determinada área destinada a espaço verde de fruição colectiva. Mais alega o A. que os Réus estavam obrigados de acordo com o alvará de loteamento a “obedecer às disposições regulamentares aplicáveis e aos condicionamentos impostos. Respeitar o projecto e localização e regulamento do loteamento”. E que, posteriormente, a Ré “D…………, Lda” terá adquirido aos RR., pessoas singulares, a parcela que deveria ser entregue ao Município, a qual integra o domínio público municipal, estando fora do comércio jurídico - nº 2 do art. 202º do Código Civil (CC).

Os Réus contestaram. A Sociedade Ré a fls. 303 a 306 e o R. A………. a fls. 320 a 338.

O Tribunal da Comarca de Leiria – Instância Local – Secção Cível – Juiz 4 proferiu sentença em 17.03.2016 na qual se declarou incompetente em razão da matéria para conhecer da acção, por entender que face à causa de pedir invocada pelo Autor, “(…) no caso concreto dúvidas inexistem que a relação jurídica estabelecida entre o A e os RR (os 1º RR) o foi no âmbito do direito administrativo.
É que o A. investido de “ius imperii” no âmbito das suas competências e fazendo uso das normas de direito administrativo (desde logo as referentes ao PDM e bem assim as relativas ao regime de urbanização e edificação urbana – decreto/lei nº 555/99 de [16 de] Dezembro – abundantemente alegadas) autorizou os 1ºs RR a efectuar determinado loteamento contra a entrega ao Município de determinada parcela daqueles lotes o que os mesmos não cumpriram.
Se assim é, temos que não foi no âmbito de qualquer contrato de natureza civil em que as partes estão em igual posição, que o A “contratou” com os RR.
E assim sendo, como é evidente, apesar dos pedidos serem dirigidos também contra R. (sociedade) que nenhuma intervenção teve com o A. é aos Tribunais Administrativos que compete apreciar os pedidos efectuados de acordo aliás com o nº 2 do artigo 4º do ETAF.
Ou seja, para a apreciação dos pedidos é isento de dúvidas que o presente Tribunal teria que apreciar não só normas de natureza jurídico-administrativas mas igualmente uma relação jurídica da mesma índole (a saber o concreto acordo celebrado entre A e RR pessoas singulares) pois que se os RR incumpriram com o decidido pelo Município levar-nos-ia à apreciação de matéria de índole pública para as quais somos incompetentes.
Aliás, quer-nos parecer que bastaria o 1º dos pedidos efectuados pelo A. “declarar que determinada parcela pertence ao domínio público” para afastar a nossa competência.”
Assim, o Tribunal Judicial da Comarca de Leiria declarou-se materialmente incompetente para conhecer do presente litígio, julgando competente a jurisdição administrativa e absolvendo os Réus da instância.

Remetidos os autos a este Tribunal dos Conflitos, face ao pedido de consulta, nos termos do art. 15º nº 1 da Lei nº 91/2019, de 4/9 foi dado cumprimento ao disposto no art. 11º, nº 3 daquele diploma.
A Exma Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser emitida decisão que atribua a competência material para conhecer da presente acção à jurisdição administrativa.

Vejamos.
O Autor intentou a acção supra indicada pedindo, além do mais, que o Tribunal:
a) Declarar-se que a parcela descrita nos supra art.ºs 5º, 14º, 15º e 49º, actualmente registada em nome da empresa Ré, pertence ao domínio público do Município de Leiria, sendo este seu dono e legítimo proprietário;
b) Declarar-se que esta parcela, por força do alvará de loteamento n.º 484 constitui área de cedência do Loteamento n.º 27/81 destinando-se a espaço verde de utilização colectiva;
c) Declarar-se que de acordo com o citado alvará e planta anexa não lhe poderá ser dado qualquer outro uso;
d) Declarar-se que esta parcela mede 261,07 m2 e que confronta de Sul – Lote 1, do Nascente – Lote 2 e 3, do Norte – Com o edifício licenciado pelo processo n.º 1191/89, em nome da empresa Ré e do Poente com E……….. e outros.
Pediu ainda a condenação dos Réus, “A restituir a parcela em litígio ao domínio público municipal;” e, “A abster-se de praticar qualquer acto sobre a citada parcela, designadamente os muros ali existentes;”

Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. nº 08/14, «A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo». (cfr. igualmente o Acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 04.02.2016, Proc. nº 046/15, disponíveis em www.dgsi.pt).
Da petição inicial do A. Município de Leiria resulta clara a alegação de que a parcela em causa nos autos integra o domínio público municipal, cedida por força do alvará de loteamento, e, que considera ter sido ofendido pela acção do RR., pretendendo, com o que peticiona, acautelar a continuação no domínio público da referida parcela de terreno assim cedida, tal como expressamente vem alegado nos artigos 5º a 15º, 17º, 18º a 23º, 30º a 41º, 52º e 53º daquele seu articulado.
É consabida a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos segundo a qual a acção em que se peça a declaração de propriedade sobre uma coisa e a condenação do réu, que a detenha, a restitui-la, consubstancia uma reivindicação, e que esse tipo de acções reais não se incluem em qualquer das hipóteses do art. 4º, nºs 1 e 2 do ETAF, devendo ser julgadas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual (cfr., v.g., os acs. de 13.12.2010, Proc. nº 043/18, de 24.05.2017, Proc. nº 01/17, de 26.01.2017, Proc. nº 052/14 e de 04.02.2016, Proc. nº 04.02.2016, todos consultáveis no sítio supra indicado).
No entanto, no caso presente não estamos perante uma reivindicação de propriedade, já que a alegação do A. Município é a de que a parcela de terreno em causa é legitimamente do domínio público municipal, já que, foi “(…) por força do alvará de loteamento n.º 484 (…) cedida ao Município de Leiria a fim de nela ser executado um espaço verde de uso colectivo”.
O que significa que a pretensão principal que o Autor formula não é enquadrável numa típica acção de reivindicação, de acordo com o art. 1311º do CC, pois, o pedido de reconhecimento não tem por base o direito de propriedade sobre um imóvel e condenação do réu que o ocupou a restitui-lo. Antes, lhe subjaz o pedido de reconhecimento de que a parcela entrou no domínio público da autarquia por força de uma regra de direito público, que se firmou na sequência de uma deliberação da Câmara Municipal de Leiria de aprovação do alvará de loteamento e das respectivas áreas de cedência para equipamentos e espaços públicos, daí que o A. invoque o disposto no nº 2 do art. 202º do CC. Trata-se, portanto, na acção de um reconhecimento de uma titularidade dominial e não de um típico pedido de reivindicação de propriedade, estando em causa a relação que se estabelece entre o titular do domínio e o sujeito dominial, a qual constitui uma relação de direito administrativo, sendo as obrigações dela resultantes, relações de direito administrativo.
Como tal, o que releva é que, conforme o alegado pelo A. Município, os RR. violaram o direito de cedência da dita parcela ao domínio público municipal, sendo clara a vontade daquele de que ocorra a sua restituição imediata (cfr. ac. deste Tribunal de 03.11.2004, Proc. nº 012/04).
De acordo com o art. 4º, nº 1, alínea o), do ETAF, está incluída no âmbito da jurisdição administrativa “Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.”.
Deste modo, tem de concluir-se que nas circunstâncias do caso, é a jurisdição administrativa e fiscal a competente para conhecer da acção.

Pelo exposto, e nos termos do disposto no art. 17º da Lei nº 91/2019, de 4/9, acordam em emitir pronúncia no sentido de que cabe à Jurisdição Administrativa e Fiscal, no caso o direito de cedência da dita parcela ao domínio público municipal, sendo clara a vontade daquele de que ocorra a sua restituição imediata TAF de Leiria, conhecer da presente acção.

Lisboa, 6 de Abril de 2022 . – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.