Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0443/20.3BEALM.S1
Data do Acordão:01/18/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:I - Tratando-se uma oposição à execução fiscal, considera-se, nomeadamente para o efeito de saber qual é a lei aplicável à determinação da jurisdição competente, que a acção foi proposta na data na qual foi instaurada a execução fiscal.
II - Sendo essa data anterior à Lei n.º 114/2019, interessa a versão das normas relevantes do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais então em vigor.
III - Nos termos do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 4.º respectivo, cabe à Jurisdição Administrativa e Fiscal a sua apreciação; concretamente, e de acordo com a al. c) do artigo 49.º do mesmo Estatuto, aos Tribunais Tributários.
Nº Convencional:JSTA000P29059
Nº do Documento:SAC202201180443
Recorrente:SEIXAL – MUNICÍPIO
Recorrido 1:A...............
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 30 de Março de 2020, AA enviou à Câmara Municipal do Seixal, onde deu entrada no dia seguinte, oposição ao processo de execução fiscal (n.º 254/2018) que o Município do Seixal requereu contra si para cobrança coerciva de dívidas referentes a consumos de água. A oposição foi remetida ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, onde foi autuada em 22 de Julho de 2020.
Fundamentou a oposição na sua ilegitimidade passiva, por ter vendido o imóvel a que os consumos respeitam em data anterior à das certidões de dívida que servem de base à execução, e, “sem conceder”, na prescrição da dívida exequenda.
Por sentença de 8 de Fevereiro de 2021, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, considerando tratar-se de um litígio destinado à cobrança coerciva de dívidas provenientes do fornecimento de serviços públicos essenciais, excluído do âmbito da justiça administrativa e fiscal, nos termos do artigo 4.º, n.º 4, alínea e), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, julgou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer da causa, atribuindo a competência aos tribunais comuns. Para o efeito, considerou determinantes “a acção (pedido e causa de pedir), tal como foi proposta pelo Oponente” e a data em que a oposição foi deduzida, quando já estava em vigor a citada al. e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aditada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro.
Por despacho de 12 de Abril de 2021, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada determinou a remessa dos autos ao Juízo Local Cível do Seixal do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
Por despacho de 1 de Junho de 2021, o Juízo Local Cível do Seixal – J1, declarou-se incompetente para a tramitação e decisão dos autos e determinou a sua remessa aos Juízos de Execução de Almada, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
Remetidos os autos, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo de Execução de Almada – Juiz 1, por despacho de 13 de Setembro de 2021, julgou-se materialmente incompetente para a sua tramitação e decisão, que considerou ser da competência exclusiva dos Tribunais Tributários, nos termos do artigo 151.º, n.º 1, do Código do Procedimento e do Processo Tributário (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro), e absolveu da instância o exequente.
Foi requerida a resolução do conflito negativo de jurisdição.

2. Remetido o processo ao Tribunal dos Conflitos, por despacho do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça foi determinado que se seguissem os termos resultantes da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro.
As partes e o Ministério Público foram notificadas deste despacho; o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que “a competência para conhecer da presente acção deverá ser atribuída ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada”. Em seu entender, “não sofre dúvidas que, se o procedimento de cobrança das dívidas de fornecimento de água tivesse sido instaurado depois de 12/11/2019, a competência para a sua apreciação caberia aos tribunais judiciais. Todavia, em nosso parecer, esse procedimento iniciou-se em 1/6/18, com a instauração da execução fiscal de que a presente oposição é dependência”.
Os factos relevantes para a decisão do conflito constam do relatório

3. Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para a apreciação da presente oposição, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelo artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais; dentro destes, o artigo 49º define a competência dos tribunais tributários.
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal de Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção.

4. A al. e) do n.º 4.º do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que foi acrescentada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, veio excluir do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva” (al. e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais). Da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII, da qual veio a resultar a Lei n.º 114/2019, consta expressamente que se “Esclarece (…) que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”
A Lei 114/2019 entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo.
Tratando-se de uma alteração respeitante à competência material da jurisdição administrativa e fiscal, a aplicação no tempo dessa exclusão não atinge as acções pendentes, de acordo com o disposto no artigo 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. O mesmo princípio consta, aliás, do n.º 2 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, preceito incluído no Título V, relativo aos Tribunais Judiciais, e que prevê duas excepções, nas quais a lei nova é de aplicação às acções pendentes: a extinção do tribunal onde a acção foi proposta e a atribuição de competência a tribunal incompetente (assim, a título de exemplo, cfr. os acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 20 de Janeiro de 2021, www.dgsi.pt, processo n.º 01574/20.5T8CSC.S1, ou de 24 de Fevereiro de 2021, www.dgsi.pt, processo n.º 01573/20.7T8CSC.S1)

5. Os presentes autos tiveram a sua origem nos Autos de Execução Fiscal Administrativa n.º 254/2018, instaurados, em 1 de Junho de 2018, pelo Município do Seixal, junto do respetivo serviço de execução fiscal, para cobrança coerciva de dívidas referentes a consumos de água.
Posteriormente, como se viu já, por requerimento de 30 de Março de 2021, o executado veio entregar a oposição à execução fiscal na Câmara Municipal do Seixal, que a remeteu ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.
Nos termos do artigo 149.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, “Considera-se, para efeitos do presente Código, órgão da execução fiscal o serviço da administração tributária onde deva legalmente correr a execução ou, quando esta deva correr nos tribunais comuns, o tribunal competente.”
Segundo os n.ºs 1 e 2 do artigo 150.º, “1 - É competente para a execução fiscal a administração tributária. 2 - A instauração e os atos da execução são praticados no órgão da administração tributária designado, mediante despacho, pelo dirigente máximo do serviço.
De acordo com o disposto no artigo. 151.º, “1 - Compete ao tribunal tributário de 1.ª instância da área do domicílio ou sede do devedor originário, depois de ouvido o Ministério Público nos termos do presente Código, decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, e a reclamação dos atos praticados pelos órgãos da execução fiscal. 2 - O disposto no presente artigo não se aplica quando a execução fiscal deva correr nos tribunais comuns, caso em que cabe a estes tribunais o integral conhecimento das questões referidas no número anterior.
Finalmente, releva especialmente o disposto no n.º 1 do artigo 103.º da LGT (Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro), que atribui ao “processo de execução fiscal” “natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos atos que não tenham natureza jurisdicional.
Ora, tendo em conta que a presente oposição respeita à execução fiscal administrativa requerida contra o executado, considera-se, nomeadamente para o efeito de saber qual é a lei aplicável à determinação da jurisdição competente, que a acção foi proposta em 1 de Junho de 2018, data na qual foi instaurada a execução fiscal, e que é anterior à entrada em vigor da Lei n.º 114/2019. Interessa, portanto, a versão das normas relevantes do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em vigor em 1 de Junho de 2018.

6. Nos termos do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o presente litígio pertence ao âmbito da Jurisdição Administrativa e Fiscal e, de acordo com a al. c) do artigo 49.º do mesmo Estatuto, é da competência dos Tribunais Tributários, como se vai demonstrar, seguindo de perto o que já se escreveu no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 13 de Setembro de 2021, www.dgsipt, proc. n.º 05016/19.0T8MTS.P1.S1.
Na data relevante, 1 de Junho de 2018, o n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, resultante do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, era a seguinte: “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”. «Não obstante não conter a menção aos “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (como sucede actualmente), certo é que a al. o) do n.º 1 do artigo 4.º, para o qual remetia aquele artigo 1.º, contemplava expressamente as relações jurídicas administrativas e fiscais.
Sobre a noção de “Relação jurídica administrativa”, escreveu Vieira de Andrade, (A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 53: “na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…). A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica. Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
(…) O Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto, estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos.
Prevê-se no respetivo preâmbulo que As actividades de abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos constituem serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança colectiva das populações, às actividades económicas e à protecção do ambiente. Estes serviços devem pautar-se por princípios de universalidade no acesso, de continuidade e qualidade de serviço e de eficiência e equidade dos tarifários aplicados.
O actual regime de abastecimento de água, saneamento de águas residuais e gestão de resíduos urbanos assenta na dicotomia entre sistemas municipais, situados na esfera dos municípios, onde se incluem também os sistemas intermunicipais, e sistemas multimunicipais, situados na esfera do Estado.
No quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais, os municípios encontram-se incumbidos de assegurar a provisão de serviços municipais de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, nos termos previstos na Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro, sem prejuízo da possibilidade de criação de sistemas multimunicipais, de titularidade estatal. (…)
E resulta dos artigos 2.º, n.º 1, 6.º, n.º 1, e 7.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20/08, na redação da Lei 12/14, de 6 de Março, que a gestão dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos é uma atribuição dos municípios, podendo ser concessionada a entidades terceiras.”»
Acresce que, tal como se entendeu no acórdão de 17 de Fevereiro de 2021 do Supremo Tribunal Administrativo, www.dgsi.pt, proc. n.º 01685/18.7BEBRG quanto às quantias então devidas, as que aqui estão em causa – como contrapartida do fornecimento de água – “assumem a natureza de taxas”, sendo fixadas unilateralmente. Aliás, segundo o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de Abril de 2013, www.dgsi.pt, proc. n.º 012/12, que se segue, “No domínio da Lei das Finanças Locais de 2007 (Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro) e do DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto, cabe na competência dos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes de abastecimento público de águas (…)”.
O litígio a que respeita a oposição em causa nestes actos é, insere-se, assim, numa relação de natureza administrativa: um dos seus sujeitos é uma entidade pública que actua com vista à prossecução de um interesse público que lhe é cometido por lei e respeita à cobrança coerciva de taxas, contrapartida pelo serviço prestado, cuja quantia é unilateralmente definida. Cabe no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (al.d) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e, especificamente, dos tribunais tributários (al. d) do n.º 1 do aro 49.º, também do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).

7. Nestes termos, julga-se que a apreciação da presente oposição cabe à Jurisdição Administrativa e Fiscal; concretamente, aos Tribunais Tributários e, dentro destes, ao Juízo Tributário Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal ... (artigos n.º 1 do artigo 151.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário).

Sem custas (artigo 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

Lisboa, 18 de Janeiro de 2022. – Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.