Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0159/21.3BELLE
Data do Acordão:07/03/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Sumário:Não se justifica a admissão de revista para melhor aplicação do direito se o acórdão sindicado se encontra adequadamente sustentado na jurisprudência, designadamente do TJUE, e a solução nele consagrada parece plenamente ajustada à factualidade fixada.
Nº Convencional:JSTA000P32481
Nº do Documento:SA2202407030159/23
Recorrente:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A..., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- Relatório -

1 – A Fazenda Pública vem, ao abrigo do disposto no artigo 285.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) interpor para este Supremo Tribunal recurso de revista do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 15 de fevereiro de 2024, que concedeu negou provimento ao recurso por si interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial do despacho de deferimento parcial do recurso hierárquico do indeferimento da reclamação graciosa tendo por objecto liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios.

A recorrente conclui as suas alegações de recurso nos seguintes termos:

I. Interpõe-se o presente recurso do douto acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul por se encontrarem verificados os respectivos pressupostos de admissibilidade previstos no artigo 285.º do CPPT.

II. Como se infere do art.º 285º do CPPT o recurso de revista pode ser admitido quando verificados um dos dois requisitos alternativos, bastando o preenchimento de qualquer deles para determinar a admissão do presente recurso:

a) A questão a resolver assuma importância fundamental, por via da sua relevância jurídica ou social; ou

b) A intervenção do Supremo Tribunal Administrativo se revele claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

III. In casu, a questão que se pretende submeter à revista desse Tribunal Superior, consiste em determinar se, a prestação de serviços de benfeitoria/obras se encontra sujeita a IVA, nos termos do art. 1º e 4º do CIVA quando corresponde ao pagamento de rendas (na medida em que deixando o sujeito passivo, em virtude de prestar esse serviço de benfeitoria, de pagar as rendas).

IV. Quanto à relevância social, entendida no sentido de que a situação apresenta contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, afigura-se-nos que a mesma se encontra verificada no caso em apreço.

V. Porquanto, a questão em causa, não tem um interesse meramente teórico, tendo sim uma grande capacidade de expansão, na medida em que se irá repetir sempre que esteja em causa o pagamento de uma prestação de serviços com uma outra prestação de serviços, nomeadamente quando o pagamento de rendas deixa de ser efetuado por contrapartida da realização de obras de benfeitoria.

VI. Consubstanciando a decisão a proferir uma orientação para a decisão uniforme desses casos futuros.

VII. No que concerne à necessidade da revista para uma melhor aplicação do direito verifica-se que, a decisão é efectivamente errada, devendo ser afastada a possibilidade de sustentar jurisprudencialmente outras subsequentes decisões erradas, sendo que o STA ainda não se pronunciou sobre a questão.

VIII. Sendo que, também é verificável, na questão dos autos, a existência de um claro interesse objectivo que transpõe os limites do caso concreto aqui em apreciação, constituindo um caso “tipo” “onde se deve reconhecer a utilidade de intervenção do STA, com vista a uma pronúncia que possa servir como orientação para os tribunais de que aquele Tribunal é órgão de cúpula.

IX. Pelo que se verifica a clara necessidade de intervenção do Supremo Tribunal Administrativo no sentido de evitar a propagação de uma interpretação errónea, nas situações em que subsequentemente esteja em causa aquela questão.

X. Tendo a questão sido decidida de modo juridicamente insustentável pelo TCA Sul, só uma intervenção desse Supremo Tribunal – necessária para uma melhor aplicação do direito – poderá evitar que uma juridicamente insustentável posição jurisprudencial se venha a consolidar.

XI. Pelo que, na situação dos autos, demonstram-se preenchidos os pressupostos dos quais depende a admissibilidade do recurso de revista, quer pela capacidade de expansão, quer por se revelar necessária e imprescindível uma actuação preventiva do órgão de cúpula (orientador dos restantes tribunais) de forma a evitar a aplicação desta interpretação errada.

XII. Entendeu o douto Acórdão ora recorrido que, na situação em que o pagamento das rendas é efetuada por meio de benfeitorias / obras realizadas pelo locatário, essas benfeitorias / obras não consubstanciam uma prestação de serviços autónoma sujeita a IVA.

XIII. Todavia, uma vez que as benfeitorias correspondem a um serviço prestado pela locatária à locadora, e se encontram preenchidas as condições de sujeição a IVA dessa prestação de serviços, cf. art. 1º, 4º e 16º do CIVA, nomeadamente por se tratar de uma prestação de serviços onerosa, na medida em que a locatária obtém uma contraprestação correspondente ao valor das rendas que deixa de pagar, verifica-se que inexistem razões para a não sujeição a IVA dessa prestação de serviços.

XIV Tendo o Acórdão recorrido ao decidir em sentido contrário incorrido na violação dos citados artigos 1º, 4º e 16º do CIVA.

XV. Sendo que, uma vez que o conceito de “prestação de serviços a título oneroso” é um conceito próprio do direito comunitário, caso subsistam dúvidas relativamente ao facto de se estar, ou não, na presença de prestações de serviços a título oneroso, para efeitos do IVA, no que respeita às benfeitorias efectuadas pela recorrida, tendo como contraprestação o não pagamento das rendas, deverá a questão ser submetida à apreciação do TJUE, por reenvio prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE.

Nestes Termos e nos demais de direito, requer-se a V. Ex.ªs:

Que seja admitido e declarado procedente o presente recurso de revista,

Assim se fazendo a tão costumada Justiça

2 – Não foram apresentadas contra-alegações.

3 – O Ministério Público não emitiu parecer sobre a admissão da revista.

4 – Dá-se por reproduzido o probatório fixado no acórdão sindicado e respectiva motivação (fls. 3 a 25 da respectiva numeração autónoma).

Cumpre decidir da admissibilidade do recurso.


- Fundamentação -

6– Apreciando.

Dos pressupostos legais do recurso de revista.

O presente recurso foi interposto e admitido como recurso de revista, havendo, agora, que proceder à apreciação preliminar sumária da verificação in casu dos respectivos pressupostos da sua admissibilidade, ex vi do n.º 6 do artigo 285.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Dispõe o artigo 285.º do CPPT, na redacção vigente, sob a epígrafe “Recurso de Revista”:

1 – Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo, quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

2 – A revista só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual.

3 – Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

4 – O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

5 – Na revista de decisão de atribuição ou recusa de providência cautelar, o Supremo Tribunal Administrativo, quando não confirme a decisão recorrida, substitui-a por acórdão que decide a questão controvertida, aplicando os critérios de atribuição das providências cautelares por referência à matéria de facto fixada nas instâncias.

6 – A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Tributário.

Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do transcrito artigo a excepcionalidade do recurso de revista em apreço, sendo a sua admissibilidade condicionada não por critérios quantitativos mas por um critério qualitativo – o de que em causa esteja a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – devendo este recurso funcionar como uma válvula de segurança do sistema e não como uma instância generalizada de recurso.

E, na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal Administrativo - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 2 de abril de 2014, rec. n.º 1853/13 -, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória - nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.».

Constitui jurisprudência pacífica deste STA que, atento o carácter extraordinário do recurso de revista excepcional não pode este recurso ser utilizado para arguir nulidades do acórdão, devendo as mesmas ser arguidas em reclamação para o tribunal recorrido, nos termos do artigo 615.º n.º 4 do Código de Processo Civil (cfr., entre muitos outros, os Acórdãos do STA de 26 de Maio de 2010, rec. n.º 097/10, de 12 de Janeiro de 2012, rec. n.º 0899/11, de 8 de Janeiro de 2014, rec. n.º 01522/13 e de 29 de Abril de 2015, rec. n.º 01363/14). Também as questões de inconstitucionalidade não constituem objecto específico do recurso de revista, porquanto para estas existe recurso para o Tribunal Constitucional.

Vejamos, pois.

O acórdão sob escrutínio, no segmento sindicado pela Fazenda Pública, confirmou a sentença do TAF de Loulé de procedência da impugnação, ao considerar que “a realidade fática supra descrita não permite, de todo, dar por verificados os pressupostos em que tem de assentar a sujeição a IVA, porquanto no caso vertente o que sucedeu foi que as partes, mediante contrato celebrado no domínio da autonomia da vontade e da liberdade contratual que lhes subjaz, estabeleceram que o pagamento das rendas seria pago mediante a forma de benfeitorias/obras, sendo que essa concreta compensação em nada pode ser configurada como prestação de serviços prestada pela Recorrida à sociedade “B... HOTÉIS, S.A.”. Ademais, reitere-se e sublinhe-se que as aludidas benfeitorias integram o imóvel visado e não permitem fundar qualquer possibilidade de remuneração/indemnização futura.”. Considerou ainda o acórdão, remetendo para outro do TCA que analisou factualidade similar, que “Entendemos, como a sentença, que a realização das obras/benfeitorias e a compensação do valor das mesmas em rendas consubstancia uma forma de pagamento das rendas que seriam devidas não fora a realização das obras e o acordo estabelecido, livremente, entre as partes no âmbito do contrato entre ambas celebrado.// O que se passou foi que, em vez do pagamento da renda mensal, foi efectuado o pagamento das rendas sob a forma de benfeitorias/obras. Tendo o valor das rendas sido compensado pelo valor das obras.// O TJUE, a propósito da falta de autonomia deste tipo de obras, refere, no Acórdão proferido no âmbito do processo nº C-278/18, de 28 de Fevereiro de 2019, o seguinte: “(…) o Tribunal de Justiça declarou que uma prestação deve ser considerada única quando dois ou vários elementos ou atos fornecidos pelo sujeito passivo estejam tão estreitamente ligados que formam, objetivamente, uma única prestação económica indissociável, cuja divisão revestiria caráter artificial (Acórdão de 19 de dezembro de 2018, Mailat, C-17/18, EU:C:2018:1038, n.º 33 e jurisprudência referida).” //De resto, a própria AT, ora Recorrente, tem entendido, referindo o Acórdão do TJUE citado, em Informações Vinculativas de sua autoria, de que é exemplo a que foi emitida no processo nº 16432, que a realização de benfeitorias acompanha a isenção de IVA da locação de imóveis, nos seguintes termos (…)// Assim, entendemos, como a sentença, que a compensação de rendas ocorrida não está sujeita a IVA.”

Alega a recorrente ser necessária a admissão da revista, porquanto in casu a questão é de importância jurídica e social fundamental, bem como é necessária a admissão da revista “para melhor aplicação do direito”, para que não se consolide entendimento que a recorrente reputa de juridicamente insustentável (conclusão X das alegações de recurso).

Não o entendemos assim.

É manifesto, atento o respectivo teor, que o acórdão se encontra juridicamente sustentado, designadamente da jurisprudência do TJUE, e a solução adoptada não só é plenamente plausível como se afigura preliminarmente como a que melhor se ajusta à factualidade provada, repugnando, neste exame liminar, aderir à posição da recorrente que pretende ficcionar a existência de duas operações, sem respaldo na factualidade fixada.

Acresce que, contrariamente ao alegado, não vemos que a presente decisão seja susceptível de poder ser tida como arquétipo para casos idênticos, porquanto a autonomia ou não das benfeitorias depende dos concretos termos do aditamento ao contrato celebrado.

CONCLUINDO:

Não se justifica a admissão de revista para melhor aplicação do direito se o acórdão sindicado se encontra adequadamente sustentado na jurisprudência, designadamente do TJUE, e a solução nele consagrada parece plenamente ajustada à factualidade fixada.

Termos em que a revista não será admitida.


- Decisão -

6 - Termos em que, face ao exposto, acorda-se em não admitir o presente recurso de revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 3 de julho de 2024. - Isabel Marques da Silva (relatora) - Francisco Rothes - Aragão Seia.