Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0354/20.2BELRS
Data do Acordão:06/05/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FERNANDA ESTEVES
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P32337
Nº do Documento:SA2202406050354/20
Recorrente:A..., S.A.
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. Relatório

A..., S.A., devidamente identificada nos autos, inconformada, interpôs recurso da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou improcedente a impugnação judicial por si deduzida da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa das autoliquidações da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (doravante CESE), relativas ao ano de 2016.

Alegou, tendo concluído da seguinte forma:

A) O objeto do Recurso é constituído pela Sentença proferida nos autos de Impugnação Judicial n.º 354/20.4BELRS, em 11 de novembro de 2022, no segmento decisório dedicado à apreciação do mérito da causa e à consequente condenação da RECORRENTE em custas, concordando-se com a Sentença recorrida na parte em que o Tribunal a quo determina a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

B) A RECORRENTE entende que a Sentença recorrida incorre em vício de erro de julgamento no que tange à apreciação da alegada violação do princípio e regra da especificação orçamental.

C) Considerou o Tribunal a quo que, uma vez que o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), tirado no processo n.º 0810/18.2BESNT, se debruça sobre a mesma questão de direito e que «referindo-se à CESE do ano de 2017, aplica-se por identidades de razões aos presentes autos», seria de aderir, in totum, à fundamentação do mencionado aresto do STA.

D) Em suma, entendeu o STA - e, portanto, o Tribunal a quo que, «com referência ao ano de 2017, não se verifica a falta de autorização de cobrança da CESE em causa nos presentes autos no respetivo orçamento. A mesma está inscrita na citada Lei do Orçamento do Estado para 2017 (Mapa I anexo à Lei do Orçamento) e aí foi adequadamente classificada de acordo com a classificação económica a que a lei sujeita as receitas (receitas de capital v. receitas correntes), sendo incluída no artigo denominado “Impostos diretos diversos”, com o código 01.02.99, tudo como, relativamente ao imperativo de especificação das receitas, prescreve a Lei do Enquadramento Orçamental, no seu art.º 3.º, n.º 2», acrescentando o Tribunal a quo que «o mesmo se aplica à CESE para o ano 2016».

E) Entende, ainda, o STA e, portanto, o Tribunal a quo, que «para efeitos de determinação da alegada ilegalidade abstrata aqui suscitada pela recorrente, tão pouco releva a inscrição em bloco das receitas do FSSSE no Mapa V da Lei do Orçamento do Estado de 2017, uma vez que tal obedece ao disposto no artº 32, da Lei de Enquadramento Orçamental, onde se estabelece que as receitas dos fundos autónomos devem ser apenas globalmente especificadas»

F) Não pode a RECORRENTE conformar-se com um tal entendimento, o qual se apresenta em contradição com os fundamentos apresentados por si, ao longo de todo o processado.

G) A receita da CESE - tendo em conta a sua relevância orçamental e a sua natureza - não se encontra devida e suficientemente orçamentada à luz do princípio da discriminação orçamental, previsto pelo disposto no artigo 105.º, n.º 1, da CRP, e da regra da especificação orçamental, decorrente do artigo 105.º, n.º 3 da CRP e do artigo 17.º da LEO, quer - para o que aqui releva – na Lei do Orçamento do Estado de 2014, quer na Lei do Orçamento do 2016

H) Com efeito, a receita da CESE, na Lei do Orçamento do Estado para 2014, não é mencionada, especificamente, nem nos mapas orçamentais, nem nos desenvolvimentos orçamentais, concluindo-se que não se encontra inscrita de modo desagregado em nenhum mapa orçamental, do que decorre que, (i) no Orçamento do Estado para 2014 não é possível encontrar a receita da CESE no meio das demais receitas tributárias; (ii) não é, de todo, possível apurar o montante da receita que se previa arrecadar com a CESE; (iii) não foi cumprido o desiderato para o qual foi criada a CESE, isto é, a sua transferência, ainda que parcial, para o FSSSE.

I) Já no que respeita à Lei do Orçamento do Estado para 2016, de acordo com o Tribunal de Contas, a receita da CESE encontra-se englobada no Mapa I, em “impostos diretos diversos”, não sendo, porém, possível, extrair o valor concreto previsto arrecadar com a cobrança deste tributo. Tal valor revela-se apenas extrapolável a partir da referência feita à receita global do FSSSE, no Mapa V – 90 milhões. No entanto, a CESE não é a única fonte de receita do FSSSE, pelo que não é possível, sem mais informação, apurar o valor da CESE efetivamente orçamentado neste ano.

J) Nestes termos, é indubitável que ocorreu violação grosseira do princípio da discriminação da regra da especificação orçamental, pois que, embora a receita decorrente da CESE em causa se presuma prevista nas aludidas Leis do Orçamento do Estado – neste caso, por referência aos anos de 2014 e 2016 –, a especificação e o desdobramento orçamental desta receita não respeitam, categoricamente, o disposto na CRP e na LEO.

K) Esta situação (i) permitiu a existência de um crédito orçamental secreto, resultado esse cujo impedimento constitui a razão de ser da previsão do princípio da especificação orçamental; (ii) potenciou a aprovação do orçamento sem que os Srs. Deputados tivessem conhecimento do montante da receita cuja cobrança autorizavam; (iii) não permite a fiscalização da execução orçamental, que compete também aos Srs. Deputados realizar, sacrificando o fator de accountability, também inerente à aprovação parlamentar do orçamento anual.

L) Nesta medida, a receita escapou, inevitavelmente, ao crivo parlamentar, uma vez que a votação dos dois orçamentos em crise - e de todos os Orçamentos entre 2014 e 2022 -, foi efetuada sem pleno e cabal conhecimento do montante de receita previsto cobrar a título de CESE, o que é passível de permitir a utilização de verbas públicas para finalidades não previstas na Lei - o que é proibido pela CRP e, também, pela LEO, que determina, quer na redação de 2001, quer na de 2015, a nulidade dos créditos que possibilitem a existência de dotações para utilização confidencial ou para fundos secretos (ainda que essa utilização não se verifique).

M) Assim, a não especificação da receita em crise, concreta e individualizada, nos termos da CRP e da LEO, equivale, em termos práticos, à sua não inscrição - e, portanto, à sua não autorização - no correspondente Mapa da Lei do Orçamento do Estado.

N) Com a entrada em vigor do Código de Procedimento Administrativo (CPA), publicado em 7 de janeiro de 2015, pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, o legislador procedeu à anulação da antiga cláusula geral de nulidade do antigo CPA, passando a prever quatro novos casos de nulidade no atual artigo 161.º daquele diploma, de entre os quais a alínea k), onde se dispõe que são nulos “Os atos que criem obrigações pecuniárias não previstas na lei”. Assim, o ato de (auto)liquidação da CESE aqui em apreço enferma de um vício gerador de ilegalidade abstrata, porquanto a sua liquidação e cobrança não terão sido devidamente autorizados em conformidade com a CRP e a LEO, o que está para além da mera inexigibilidade da dívida, sendo mesmo equiparável ao vício de inexistência do tributo.

O) Assim, é forçoso concluir-se que as deficiências de orçamentação da CESE, desde a sua criação até à presente data são tão graves que este tributo deve ter-se, mesmo, por não orçamentado, com a consequente nulidade das respetivas (auto)liquidações, ao abrigo da alínea k) do artigo 161.º do CPA, e, bem assim, do artigo 8.º, n.º 6, da LEO de 2001, do artigo 17.º, n.º 3, da LEO de 2015, do que deriva a nulidade do ato de liquidação controvertido, por padecer de ilegalidade abstrata.

P) No plano normativo, a violação do princípio da especificação orçamental localiza-se, por referência à CESE, em dois momentos fundamentais (i) no momento da criação do Regime jurídico da CESE, com a aprovação do artigo 228.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014, e (ii) no momento em que a sua vigência foi prorrogada, para o ano 2016, por via do artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 159-C/2015, de 30 de dezembro.

Q) Assim, a violação do princípio da especificação orçamental apresenta-se como uma doença congénita que contamina, em rigor, todas as normas que instituem e regulam a CESE.

R) Do que antecede, suscita-se a inconstitucionalidade e a ilegalidade, por violação de lei de valor reforçado, (i) da norma que instituiu o regime jurídico da CESE, i.e. da norma resultante do artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013; (ii) da norma que manteve em vigor, no ano 2016, o regime jurídico da CESE, i.e. da norma contida no artigo 6.º, n.º 1, primeira parte, da Lei n.º 159-C/2015, de 30 de dezembro; (iii) da norma que se retira do artigo 1.º do regime jurídico da CESE e que define o objeto do tributo; (iv) da norma que se retira do artigo 2.º do regime jurídico da CESE e que determina a incidência subjetiva do tributo; (v) da norma que se retira do artigo 3.º do regime jurídico da CESE e que determina a incidência objetiva do tributo; (vi) a norma que se retira do artigo 6.º do regime jurídico da CESE e que determina a taxa aplicável; (vii) a norma que se retira do artigo 11.º do regime jurídico da CESE e que determina a consignação da receita ao FSSSE, bem como (viii) da norma que se retira do artigo 12.º do regime jurídico da CESE e que determina a não dedutibilidade da CESE.

S) Assim, como se crê ter demonstrado, e se escusa de repetir, o alcance e o propósito da previsão de tal princípio e de tal regra são muito mais largos do que julgou – por remissão – o Tribunal a quo, servindo o próprio princípio de Estado de Direito Democrático. Depois, vimos já que, mesmo que a CESE se tratasse de uma contribuição financeira (no que não se concede), tal circunstância não é apta a aligeirar as exigências dos princípios e regras em causa, porque quer a CRP, quer a LEO, apenas se referem a receitas, e depois porque a sua natureza de receita consignada sempre implicaria, pelo contrário, uma maior exigência discriminativa e especificativa.

T) Com efeito, e contrariamente ao pugnado pelo STA - e, por remissão, pelo Tribunal a quo - da previsão das receitas globais do FSSSE do Mapa V, não resulta a suficiência da discriminação e da especificação realizada no Orçamento em questão, primeiro porque ela é absolutamente inexistente e depois porque, acrescentando a esta equação o facto de estarmos perante receita consignada, as exigências são mais - e não menos - apertadas.

U) Importa, ainda, chamar à colação o teor do recentíssimo Acórdão n.º 411/2022, do Tribunal Constitucional (TC), ), no qual este Tribunal se dedica à análise da eventual violação do princípio da discriminação e da regra da especificação orçamental, pelo disposto no artigo 11.º, n.º 1, do Regime Jurídico da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE), no qual, salvo melhor opinião, ao mesmo tempo que se defende que a violação do princípio da discriminação da regra da especificação não poderá ter consequências – nem sequer reflexas – ao nível normativo, se defende que tal violação deverá, porém, inquinar o próprio ato de liquidação do crédito, na medida em que os créditos que lhes subjazem são inválidos.

V) Do que antecede decorre que o TC relega a palavra final para os tribunais tributários, uma vez que, de acordo com o Acórdão em escrutínio, o vício decorrente da violação arguida adere ao ato de liquidação e não à norma que prevê a consignação do tributo, i.e., o 11.º, n.º 1, do RCESE (norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada pela ali Recorrente).

W) Em face de tudo quanto antecede, e sem prescindir, a douta sentença recorrida incorreu, nesta parte, em erro de julgamento, devendo, em consequência ser anulada, com todas as consequências legais.

TERMOS EM QUE O PRESENTE RECURSO DEVE SER JULGADO PROCEDENTE, POR PROVADO, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, DESIGNADAMENTE A DECLARAÇÃO DE NULIDADE DO ATO DE (AUTO)LIQUIDAÇÃO CONTROVERTIDO E, BEM ASSIM, A DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DAS NORMAS CONTIDAS NOS ARTIGOS 1.º, 2º, 3º, 6.º, 11º E 12º DO REGIME JURÍDICO DA “CONTRIBUIÇÃO EXTRAORDINÁRIA SOBRE O SECTOR ENERGÉTICO” (CRIADA PELO ARTIGO 228º DA LEI N.º 83º-C/2013, DE 31 DE DEZEMBRO), EM VIGOR EM 2016 POR FORÇA DO ARTIGO 6º, N.º 1, DA LEI N.º 159-C/2015, DE 30 DE DEZEMBRO, E, BEM ASSIM, DAQUELAS CONTIDAS NOS ARTIGOS 228º DA LEI N.º 83º-C/2013, DE 31 DE DEZEMBRO E 6.º DA LEI N.º 159-C/2015, DE 30 DE DEZEMBRO.


Não houve contra - alegações.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.

Cumpre decidir.

2. Fundamentação

2.1.Remete-se para a matéria de facto que consta da decisão recorrida, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida (cf. artigo 663.º, n.º 6, do CPC, aplicável ex vi do artigo 679.º do mesmo Código).

2.2. O direito

Está em causa no presente recurso a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida do indeferimento da reclamação graciosa tendo por objecto as autoliquidações de Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE), referentes ao ano de 2016.

Face às conclusões de recurso, a única questão que vem colocada pela Recorrente reconduz-se a saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao concluir pela improcedência da questão de inconstitucionalidade abstracta da CESE consubstanciada na violação do princípio da não discriminação orçamental.

Sucede que este Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou quanto a esta questão em diversos acórdãos, designadamente nos acórdãos de 8/9/2021, Processo 545/19.9BEPRT e Processo 01587/18.7BEPRT; de 2/2/2022, Processo 810/18.2BESNT, entendimento posteriormente reiterado, inclusive no acórdão de 21/4/2022, Processo 0316/18.0BESNT [em que estava em causa a CESE do mesmo ano que a destes autos (2016)] e no acórdão de 13/12/2023, Processo 240/20.6BELRA.

Porque se trata de jurisprudência cuja fundamentação jurídica tem plena aplicação no caso vertente, e que se subscreve integralmente, e também com vista a promover uma interpretação e aplicação uniformes do direito (artigo 8,º, n.º 3 do CC), limitamo-nos a remeter, nos termos do disposto nos artigos 663.º, n.º 5, 2.ª parte, e 679.º, ambos do CPC, aplicável ex vi do artigo 281.º do CPPT, para o discurso fundamentador do primeiro destes acórdãos (Processo 01587/18.7 BEPRT) cuja junção aos autos nos dispensamos de fazer por se encontrar integralmente disponível para consulta em www.dgsi.pt.

Na esteira desta jurisprudência, que aqui se reitera, é de concluir pela improcedência do recurso.

3. Decisão

Assim, pelo exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente, com dispensa do remanescente da taxa de justiça (nos termos do artigo 6.°, n.º 7 do Regulamento das Custas Processuais) atento o carácter remissivo da decisão.

Lisboa, 5 de Junho de 2024. - Fernanda de Fátima Esteves (relatora) - Anabela Ferreira Alves e Russo - José Gomes Correia.