Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
I. Relatório
1. Nos presentes autos de recurso de revista vindos do Tribunal Central Administrativo Sul (“TCAS”), vêm AA e BB, com os sinais dos autos, recorrer do acórdão daquele tribunal de 19.03.2024, que, negando provimento ao recurso interposto da sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (“TAC Lisboa”), de 31.10.2023, manteve esta decisão, a qual, indeferiu liminarmente o requerimento inicial de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias dirigido contra os ora recorridos MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA e AGÊNCIA PARA A INTEGRAÇÃO, MIGRAÇÕES E ASILO – AIMA, I.P. (sucessora do SEF), e apresentado no âmbito do procedimento de autorização de residência com fundamento em atividade de investimento (aquisição de bens imóveis), em que era pedido o reagendamento de uma data para a diligência de recolha dos seus dados biométricos, a fim de se concluir o procedimento de autorização de residência e de reagrupamento familiar (artigos 90.º-A e 98.º e ss. – reagrupamento familiar –, todos da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho).
2. O primeiro recorrente submeteu, em 6.12.2021, um requerimento junto do SEF tendo em vista obter autorização de residência para atividade de investimento, ao abrigo do artigo 90.-A, n.º1, da Lei n. 23/2007 (“ARI”), e a segunda recorrente apresentou a respetiva candidatura de reagrupamento familiar, no âmbito do procedimento de ARI, tendo sido agendado o dia 20.04.2023, para a recolha dos dados biométricos, à qual, todavia, os recorrentes não compareceram por não terem disponibilidade para se deslocarem a Portugal na data designada.
Os ora recorrentes, argumentando que não conseguiram marcar uma nova data, o que os impede de exercerem o direito de livre circulação e têm suportado os custos inerentes à manutenção do imóvel que adquiriram como pressuposto da candidatura, sem dele poderem usufruir, apresentaram um requerimento de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, pedindo a intimação dos aqui recorridos «para, no prazo de 10 dias úteis, disponibilizarem aos Requerentes data para agendamento para a recolha dos dados biométricos, a fim de se concluir o pedido de autorização de residência e reagrupamento familiar.».
O TAC Lisboa rejeitou liminarmente o requerimento inicial por considerar não se ter demonstrado a indispensabilidade que subjaz ao meio processual utilizado. Referiu que «perante a ausência de motivos que justifiquem que a alegada demora no agendamento de uma data e consequente obtenção do título de residência implica a produção de danos imediatos ou previsíveis, e bem assim, [que a mesma ausência justifique] a urgência na tutela principal, torna-se forçoso concluir que não podem os Requerentes lançar mão da intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias, nos termos do art.º 109.º do CPTA.». Mais se entendeu não ser possível lançar mão do previsto no artigo 110.º-A, n.º 1, do mesmo normativo, atendendo a que no requerimento inicial não se alegara qualquer facto atinente a uma situação de urgência para o decretamento da providência.
Inconformados, os requerentes, ora recorrentes, apelaram para o TCAS.
Pelo acórdão ora recorrido, aquele tribunal negou provimento à apelação e manteve a decisão de primeira instância, por considerar, além do já invocado na sentença então recorrida, que «os requerentes, ao não terem comparecido na delegação de Portimão do então SEF ao agendamento de 20.04.2023, que apenas a eles é imputável, faz com que se esvazie, no caso em apreço, o critério da urgência/premência que preside ao acionamento do processo de intimação. Sendo que os próprios requerentes só acabaram por recorrer ao presente meio de intimação «seis meses após a não comparência ao primeiro agendamento (em 30/10/2023 – data da apresentação em juízo dos autos de intimação).».
3. Não se conformando, mais uma vez, os requerentes interpuseram recurso de revista, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões quanto ao mérito do recurso:
«3. Andou mal o Mmo. Tribunal “a quo” ao pugnar pela não admissão do articulado inicial fundada na falta de demonstração do requisito de indispensabilidade do meio processual de que os recorrentes lançaram mão – processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias – e, portanto, com fundamento na falta de verificação dos pressupostos exigidos no artigo 109º do CPTA.
4. Com o que incorreram em erro de interpretação e aplicação do disposto no artigo 109º n.º 1 do CPTA.
5. Assim, e nos termos que infra se exporá, deverá o acórdão recorrido ser revogado, e substituído por outro que, considerando verificados os requisitos para a instauração da intimação para proteção de direitos liberdades e garantias é o meio processual idóneo e adequado à tutela jurídica que a recorrente pretende obter – no sentido de se intimar/condenar os recorridos a disponibilizarem data para agendamento para recolha dos dados biométricos - ordene o normal prosseguimento da instância, nomeadamente, para citação dos recorridos para contestarem e ulteriores tramites processuais.
I - DA ADMISSIBILIDADE DA REVISTA (EXCECIONAL)
[…]
II - DO OBJETO DO RECURSO
Da indispensabilidade e subsidiariedade do meio processual - Intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias - e da verificação dos pressupostos previstos no artigo 109° do CPTA
25. Na sequência do supra alegado, não se conformam os aqui Recorrentes com a decisão proferida pelo Mmo. Tribunal a quo, por se entender que, diversamente do decidido, se impõe ajuizar no sentido de que a sentença proferida na 1ª instância, e o acórdão que a confirmou, incorreram em manifesto erro na aplicação do direito processual, porquanto, concluíram erradamente pela não verificação dos pressupostos previstos no artigo 109° n.º 1 do CPTA, e dos quais depende a possibilidade de lançar mão da Intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, e pela consequentemente errada decisão de indeferimento liminar do requerimento inicial.
26. Urge, pois e nos concretos termos infra, revogar o douto acórdão proferido, substituindo-o por outro que, considerando que se verificam, in casu, os requisitos previstos no artigo 109° n.º 1 do CPTA, determine o normal prosseguimento da instância para prolação de decisão urgente sobre o mérito da causa.
27. Têm para si os Recorrentes que estão preenchidos os pressupostos (processuais) inerentes à Intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, previstos no artigo 109° n.º 1 do CPTA, sendo esta tutela a única que pode evitar o arrastar da lesão grave e irreversível da esfera jurídica fundamental dos Recorrentes que se veem presentemente privados de fixar a sua residência em Portugal, por força da falta de título válido para o efeito.
28. Do artigo 109. ° do CPTA resulta que a utilização deste mecanismo processual depende dos seguintes pressupostos:
a. Da necessidade de emissão urgente de uma decisão de mérito;
b. Que seja indispensável para proteção de um direito, liberdade ou garantia;
c. Da impossibilidade ou insuficiência do decretamento provisório de uma providência cautelar.
29. Relativamente ao primeiro pressuposto, recorde-se que o que está em causa nos autos é a continuada e injustificada inércia por parte da Administração, na tramitação do procedimento destinado a obtenção de autorização de residência e reagrupamento familiar dos Recorrentes.
30. Os Recorrentes são já titulares de um direito subjetivo - consubstanciado na decisão de deferimento de ARI e de Reagrupamento Familiar – porém, encontram-se privados do seu exercício e do efetivo prosseguimento dos autos para obtenção da ARI, pois os Requeridos simplesmente não procedem ao agendamento de data e hora para recolha dos dados biométricos e subsequente conclusão do processo de ARI, mediante a emissão do título/cartão de residência, mantendo, assim e indevidamente, o procedimento suspenso.
31. Ocorre, assim, uma injustificada restrição de direitos fundamentais dos recorrentes.
32. A omissão dos Requeridos, para além de não ter qualquer justificação possível, ultrapassando todos os limites do razoável, viola o princípio da tutela da confiança, corolário do princípio da boa-fé, a que a Administração está sujeita em subordinação à Constituição da República Portuguesa, por força do preceituado no artigo 266.° da Lei Fundamental, frustrando as legítimas expetativas de quem, com base num quadro legal vigente, definido pelo Governo Português, tomou a decisão de investir no nosso país, despendendo mais de € 905.000,00 e que, não obstante cumprir todos os requisitos definidos para a obtenção de ARI e Reagrupamento Familiar, é confrontado com um obstáculo meramente burocrático, isto é, a inércia dos Requeridos em proceder a agendamento para recolha de dados biométricos, que os impede de concluir o processo de candidatura a ARI e obter o título de residência.
33. O não agendamento para recolha de dados biométricos, ao obstar, em último ratio, à emissão do título de residência, impede os Requerentes de exercerem o direito de livre circulação no território dos Estados Membros da União Europeia, plasmado no artigo 45.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, incluindo a entrada, saída do território português.
34. Relativamente ao direito fundamental de livre circulação no território dos Estados Membros da União Europeia, importa referir que, uma vez plasmado no artigo 45.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, é qualificável como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias a que se refere o artigo 17.º da Constituição da República Portuguesa, beneficiando mesmo regime.
35. Atendendo ao primado do Direito da União Europeia, plasmado no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição e reconhecido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, que determina que as normas de direito da União Europeia prevalecem sobre o direito nacional, por maioria de razão, um Direito Fundamental da União Europeia não pode ter dignidade inferior aos direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República Portuguesa, sendo, assim, um direito de natureza análoga.
36. E sendo um direito de natureza análoga, o Direito Fundamental da União Europeia goza do mesmo regime que os direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República Portuguesa.
37. Ora, merecendo a mesma dignidade e beneficiando do mesmo regime que os direitos liberdades e garantias, os direitos análogos, mormente o direito fundamental de livre circulação no território dos Estados Membros da União Europeia, plasmado no artigo 45.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, podem ser tutelados pela Intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, regulada pelo artigo 109.° e seguintes do CPTA.
38. Mas o obstáculo ao direito fundamental de livre circulação que os Requeridos, ilegitimamente, estão a impor aos Requerentes, prejudica outros direitos, liberdades e garantias que o douto Tribunal não poderia deixar de atender em sede da presente Intimação.
39. É o exemplo do direito de propriedade privada: os Recorridos estão a privar os Recorrentes de usufruir cabalmente do imóvel que adquiriam, com o que perpetram cabal violação do seu direito de propriedade.
40. E nem se diga que o facto dos Recorrentes não estarem impedidos de se deslocar a Portugal, com visto turístico e de forma meramente temporária, não inculca, à mesma, violação ao seu direito de usufruir plenamente do imóvel que comprou,
41. Pois se o projeto de vida dos Recorrentes – decorrente de decisão legitimamente fundada em expectativas que o legislador português justificadamente lhes criou - passou por adquirir um imóvel para que pudessem residir cá permanentemente, não se pode considerar que a possibilidade de gozo meramente temporário do mesmo, concretizada em deslocações esporádicas e limitadas no tempo a Portugal (dada a falta de Autorização de residência), corresponda a um exercício pleno do seu direito de propriedade privada.
42. Direito esse que encontra igualmente consagração constitucional (Cfr. artigo 62º da Constituição da República Portuguesa) e ainda, no artigo 17° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, onde se refere expressamente que: Todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte. Ninguém pode ser privado da sua propriedade, exceto por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respetiva perda, em tempo útil.
43. Note-se ainda que não estando os Recorrentes habilitados com um título de residência válido, para além da privação da cabal fruição do seu património e dos constrangimentos e limitações inerentes à necessidade de solicitar visto de cada vez que pretendem deslocar-se a Portugal, tal impede-os igualmente de ter acesso a serviços públicos, nomeadamente, de saúde e proteção social, em condições de igualdade com os demais cidadãos de nacionalidade estrangeira que, como os Requerentes, cumprem todos os requisitos legalmente estabelecidos para a obtenção de autorização de residência.
44. A violação de direitos, liberdades e garantias integrados na esfera jurídica dos Recorrentes, face à omissão do dever de decisão dos Recorridos é grave e carece de urgente resolução.
45. Ademais, a urgência na obtenção da autorização de residência (ou na prossecução do procedimento à mesma tendente), que não existia no momento da submissão da candidatura, passou a existir com o decurso do tempo decorrente da inação das Entidades Demandadas, uma vez que os Requerentes pretende fixar o centro da sua vida social em Portugal, tendo, atualmente, essa expectativa e pretensão, indevidamente em suspenso há mais de dois anos.
46. Vejamos, ainda, que o decurso do tempo, para além de violação do elementar princípio administrativo da decisão estatuído no artigo 13.º do CPA, também se demonstrou apto a bulir com o direito fundamental a uma boa administração que, para além de ser um direito fundamental, é também, um princípio jurídico ao qual as Entidades Demandadas se encontram vinculadas, em função do disposto no artigo 5.° do CPA.
47. A necessidade de uma decisão seria fundamental para poderem entrar e sair de Portugal, sem restrições ou constrangimentos, para, desse modo, fixar a sua residência em território nacional e estabilizar a situação familiar, em segurança, direito consagrado no artigo 27.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, como garantia do exercício seguro e tranquilo de direitos, liberto de ameaças ou agressões.
48. Ademais, o relacionamento entre os Recorridos e os Recorrentes deve pautar-se por padrões de razoabilidade, pois que, não pode o Estado Português disciplinar um concreto regime jurídico de concessão de ARI, cativando os investidores, acenando-lhes com uma promessa e criando neles uma expectativa, que para esse efeito fazem investimentos e os identificam como realizados junto do procedimento administrativo, que é aliás um dos requisitos para a apreciação do pedido tendo em vista a avaliação da decisão final a proferir, ficando depois a Administração votada ao silêncio.
49. Como bem nota o Acórdão do Tribunal Administrativo Sul, de 22.11.2022, Processo n.° 661/22.0BELSB, disponível em https://www.dgsi.pt/:
"[A]s regras da experiência, que aqui valem como presunção judicial, nos termos do art.° 607.°, n.° 4, do CPC, ex vi art.° 1.° do CPTA, indicam-nos que a falta de um título que permita a permanência, em termos de legalidade, do Recorrido no território nacional, podem pôr em causa o reduto básico, que se liga ao principio da dignidade da pessoa humana (cf. art.º 1.° da CRP) dos indicados direitos à liberdade, à livre deslocação no território nacional, à segurança (cf. art.°s. 27.° e 44.° da CRP), à identidade pessoal (art.° 26.°, n.° 1, da CRP), a trabalhar e à estabilidade no trabalho (cf. art.°s. 53.°, 58.° e 59.° da CRP) ou à saúde (cf. art.° 64.° da CRP)"
50. No mesmo sentido, veja-se o Douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 13.04.2023, Processo n.° 726/22.8BEALM, disponível em https://www.dgsi.pt/.
51. Posto este entendimento, que se sufraga na íntegra, têm para si os Recorrentes que a alegação da mera falta de um título de residência e os efeitos que daí emergem em termos de evidente, atual e prolongada restrição de direitos, liberdades e garantias - e que, face ao supra exposto resultam presumidos das regras da experiência a que o julgador deve atender - mostra-se suficiente e adequada para que possa dar-se por cumprido o preenchimento dos requisitos vertidos no artigo 109° n.º 1 do CPTA.
52. Não se podendo, assim, concordar com o entendimento vertido no douto acórdão recorrido de que o articulado inicial padece de alegação fáctica destinada a densificar os conceitos de urgência e indispensabilidade para o exercício de um direito, liberdade ou garantia porquanto a falta de autorização/título de residência válido é, só por si, um facto que legitima, sem mais, a necessidade de recurso a este meio processual.
53. Temos, igualmente, que sustentar o entendimento consignado no voto de vencido constante do douto acórdão recorrido – para o qual, por facilidade e brevidade se remete –, na medida em que se terá de se entender que o legislador não estabeleceu prazo para que se interponha uma intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, pelo que o inerente direito dos Requerentes não ficou precludido com o decurso do tempo.
54. Assim se discordando, em absoluto, do argumento vertido no Douto acórdão recorrido, quando aduz que "o processo de intimação não pode ser utilizado quando tenham entretanto transcorrido os prazos de que o interessado dispunha para reagir pela via processual normal”.
55. De igual modo, se discorda das asserções vertidas no douto aresto aqui posto em crise, no que tange à inverificação de uma situação de urgência, ante o decurso de mais de dois anos desde a data da submissão do pedido de candidatura a ARI.
56. É, precisamente, o decurso (injustificado e injustificável) de dois anos sem que a sua situação pessoal esteja resolvida, que torna premente e urgente a obtenção de uma decisão no procedimento e, portanto, legitima o recurso ao presente meio processual!
57. Apelando-se aqui, uma vez mais, ao doutamente vertido no voto de vencido do acórdão recorrido, cumpre ainda salientar o teor da Declaração de Voto constante do Douto Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 16.11.2023, processo n.° 455/23.5BELSB, que versa precisamente sobre esta questão, haverá que considerar que:
“[A] célere emissão de uma decisão que imponha à Administração o dever de decidir o pedido de autorização de residência formulado pelo Autor é indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, dos seus direitos, liberdades e garantias, em especial do seu direito à residência e, por essa via, à equiparação aos cidadãos nacionais, nos termos do artigo 15.°, n.° 1, da CRP, condição sine qua non para lhe garantir o acesso, entre outros, ao trabalho digno, à saúde e à habitação. A urgência não se determina pelo tempo de reação do requerente ao incumprimento dos prazos de decisão pela Administração, porque o direito fundamental em causa não é o direito à decisão. A urgência determina-se, sim, pelo risco de lesão do(s) direito(s) fundamental(ais) em que aquela decisão o investe, risco esse que é tanto maior quanto maior o tempo em que o requerente permanece indocumentado. (...)
O legislador não estabeleceu um prazo para que se requeira uma intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, precisamente, porque o pressuposto da mesma é a sua indispensabilidade para assegurar, em tempo útil, o exercício dos seus direitos, qualquer que seja a fonte da ameaça de lesão dos mesmos - neste sentido, v. o Acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo, de 16 de maio de 2019, proferido no Processo n.° 02762/17.7BELSB. E a fonte dessa ameaça, no caso concreto dos autos, não é apenas a falta de decisão no prazo legalmente estabelecido, é também o prolongamento excessivo do tempo de decisão”.
58. Face ao supra expendido, impõe-se, igualmente nesta sede, decidir em dissonância com o douto acórdão proferido, tendo sido o direito dos Requerentes tempestivamente exercido, na medida em que não estava sujeito a qualquer prazo.
59. Veio ainda o douto acórdão recorrido sustentar, por fim, que não está verificado o requisito da subsidiariedade do processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.
60. Os Recorrentes estão cientes de que a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, fica reservada apenas para as situações em que a via dita "normal" não é possível ou suficiente, para assegurar o exercício em tempo útil e a título principal do direito, liberdade ou garantia que esteja em causa e cuja defesa reclame uma intervenção jurisdicional.
61. Tendo-se conformado com o segmento decisório proferido na 1ª instância a respeito desta questão, que determinou que "não é aplicável ao caso trazido à liça, a prerrogativa prevista no art.º 110º-A, n.º 1 do CPTA, pois considerando o pedido formulado pelos Requerentes, não é possível o recurso à tutela cautelar, com idêntico objeto.”
62. E de facto, assim é. Pelo que não se compreende o entendimento vertido no douto acórdão recorrido a este respeito.
63. Desde logo porque, salvo o devido respeito por diverso entendimento, se - como expressamente ali se diz - a questão da (im)possibilidade de conversão dos autos em providência cautelar não foi trazida à apreciação do Tribunal em sede de recurso, a pronuncia sobre a mesma está, naturalmente, excluído do âmbito dos poderes de cognição desta instância recursiva.
64. Mas de todo o modo, sempre se impõe salientar que, efetivamente, e considerando que o concreto pedido formulado nos autos é no sentido da intimação dos requeridos a, no prazo de 10 dias úteis, disponibilizarem aos requerentes data para agendamento para a recolha dos dados biométricos.
65. Ora, este concreto pedido corresponde a um ato que se esgota em si mesmo - agenda-se data para recolha dos dados biométricos e o mesmo mostra-se cumprido -, não sendo suscetível de ser realizado de forma provisória típica da tutela cautelar.
66. Não se pode, pois, aqui aplicar o mesmo raciocínio que estaria inerente à atribuição de uma autorização de residência provisória.
67. Mostra-se incontornável que, face à atual situação dos recorrentes e ao pedido formulado, e tendo em conta que se evidencia a necessidade de uma decisão de fundo, de mérito, tal concretização afigura-se incompatível com o tipo de avaliação realizada em sede de procedimentos cautelares, visto que estes são sempre, na sua globalidade, provisórios, quer sejam emitidos com especial urgência no início do processo cautelar ou não.
68. De igual modo, é desprovido de toda a razoabilidade considerar que uma eventual decisão de primeira instância numa ação administrativa (não urgente) ocorreria em tempo útil para os recorrentes, tendo em consideração o atraso que se verifica na jurisdição administrativa, podendo suceder que, aos dois anos que leva a aguardar uma decisão da Administração no processo de candidatura a ARI, se acrescentem mais dois até que consigam alcançar uma decisão relativa ao mérito da causa.
69. Assim e salvo o devido respeito por diverso entendimento, dúvidas não subsistem de que a instauração da intimação é o único meio processual idóneo à defesa dos direitos fundamentais que os recorrentes invocam, por poder ser o único a permitir-lhes, em tempo útil, obter a satisfação das suas pretensões.
70. Conforme decidiu o Tribunal Central Administrativo Sul, no Acórdão de 08.09.2023, proferido no Processo n.° 647/23.7BELSB, disponível em www.dgsi.pt:
"O cidadão estrangeiro, enquanto o requerido título de residência não lhe for emitido, ou enquanto a autorização de residência não lhe for concedida, padecerá de todos os males que decorrem de estar ilegal no país.
Deste modo, considera-se existir uma necessidade imediata da detenção de um título ou uma autorização para se poder manter a residir legalmente em Portugal e aqui continuar a viver e a trabalhar na qualidade de estrangeiro com título legal de permanência.
A legalização da permanência no nosso território, é uma condição sine qua non para estrangeiro consiga uma regular integração no mercado de trabalho, de forma igualmente legal, e para que beneficie dos demais direitos, como seja a segurança, tranquilidade, liberdade de circulação e saúde.”
71. Face ao entendimento supra vertido - com o qual se concorda na íntegra - temos que se mostram integralmente preenchidos os pressupostos exigidos pelo artigo 109.°, n.° 1 do CPTA, e de que depende não só o legítimo recurso por banda dos recorrentes a este meio processual - Intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias - , mas igualmente para que se dê provimento à sua pretensão.
72. Não é, assim, exigível aos ora Recorrentes que lancem mão de outro meio processual, por inexistir qualquer um que não a presente intimação que, em tempo útil acautele o seu direito fundamental lesado.
73. Ou seja, verifica-se a indispensabilidade do uso do presente meio processual.
74. Estando, assim, preenchidos os pressupostos de aplicação do mecanismo previsto no artigo 109º n.º 1 do CPTA.
75. Ao consignar diverso entendimento, o Mmo. Tribunal a quo incorreu em séria e flagrante violação do disposto nos artigos 109° n.° 1 do CPTA, impondo-se a sua revogação e substituição por outro que considerando adequado e indispensável o meio processual de que os recorrentes lançaram mão, ordene o normal prosseguimento da instância, para ulterior prolação de decisão de mérito, no sentido propugnado pelos recorrentes na petição inicial e assim se intimando os recorridos a designar data e hora para recolha dos dados biométricos.».
Os requeridos, ora recorridos, não contra-alegaram.
4. O presente recurso foi admitido por acórdão de 23.05.2024, proferido nos termos do artigo 150.º, n.º 6, do CPTA, tendo a Formação de Apreciação Preliminar fundamentado a sua decisão com base nas seguintes ordens de razão:
«Na presente revista os Recorrentes invocam que o acórdão recorrido, confirmativo da decisão do TAC de Lisboa, incorreu em erro de julgamento quanto à verificação dos requisitos de indispensabilidade e subsidiariedade exigidos pelo concreto meio processual previsto no art. 109° do CPTA. Alegam que são já titulares de um direito subjetivo – consubstanciado na decisão de deferimento de ARI e de Reagrupamento Familiar – estando, porém, privados do seu exercício e do efetivo prosseguimento dos autos para obtenção da ARI, mediante emissão do título/cartão de residência. Mantendo os Requeridos indevidamente suspenso o procedimento, ocorrendo, assim, uma injustificada restrição de direitos fundamentais dos Recorrentes, estando a ser confrontados com um obstáculo meramente burocrático, isto é, a inércia dos Requeridos em proceder a agendamento para recolha de dados biométricos, que os impede de concluir o processo de candidatura a ARI e obter o título de residência, em violação do princípio da tutela da confiança corolário do princípio da boa-fé a que a Administração está sujeita (cfr. art. 266º da CRP).
[…]
[Referindo a existência de anteriores apreciações sobre a questão em apreciação, e citando, a título de exemplo, o acórdão de 28.09.2023, Proc. 0455/23.5BELSB, de que se transcreve um excerto:[I]mpõe-se-nos concluir pela admissão do presente recurso de revista. Efetivamente, e desde logo, a sintonia dos “tribunais de instância” no sentido da decisão de indeferimento liminar assenta em “diferentes fundamentos”, (…) Estas discrepâncias jurídicas traduzem claramente, aliás, a divergência existente nas instâncias sobre a questão aqui litigada, a qual se mostra resolvida em aparente divergência com acórdão deste STA – AC STA de 11.09.2019 Rº0899/18.0BELSB.
Assim, para além de estarmos perante uma “questão” de relevância jurídica, acresce a necessidade de clarificar e solidificar o sentido da sua resolução, no âmbito dos “casos concretos trazidos a juízo”, o que é múnus do órgão máximo desta jurisdição." (cfr., v.g., os acórdãos desta Formação todos de 04.04.2024, Proc. n°s 180/23.7BECBR, 477/23.6BELSB e 741/23.4BELSB e de 22.03.2019, Proc. n° 02762/17.7BELSB).
Estes considerandos são absolutamente transponíveis para o caso em presença, sendo de toda a conveniência que o STA se pronuncie sobre a problemática dos pressupostos do meio processual previsto no art. 109º do CPTA, já que, além do mais, a questão da urgência representa um problema nesse domínio suscetível de se colocar repetidamente, justificando-se, portanto, admitir o recurso.».
5. O MP emitiu parecer, nos termos do artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, no sentido «de ser negado provimento à Revista», no essencial, com base nos seguintes fundamentos:
Sem desconhecer a jurisprudência do acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo [julgamento ampliado do recurso], de 6.06.2024, P. 741/23, «[e]entendemos, todavia, […] que no caso importa, antes do mais, determinar se, na concreta situação dos Autores, tal como a mesma emerge da factualidade alegada na petição inicial, esta ação de intimação é o meio processualmente idóneo para reagir à invocada situação de inércia da administração.
Tendo presente que, por regra, o meio processual normal, adequado para reagir contra a inércia da administração, é a ação de condenação à prática de ato devido (cfr. arts. 66º e ss. do CPTA).
O que, contudo, não exclui a possibilidade de o interessado recorrer à ação de intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias quando esteja em causa um procedimento que contenda com a satisfação de direitos fundamentais, nos termos do disposto no art. 109° e ss do CPTA.
Tal não dispensa, do nosso ponto de vista, a aferição, em concreto, da efetiva verificação desses pressupostos pois que, na verdade, a adequação do meio processual terá de aferir-se em função do pedido e da respetiva causa de pedir, tal como os Requerentes os configurou na sua petição inicial.
Tendo em conta, portanto, os concretos factos que, no cumprimento do ónus de alegação que sobre eles impende e relativamente ao qual o Tribunal não se lhes pode substituir (arts. 5°, n° 1, do CPC e 342° do Código Civil), foram concretamente alegados na petição inicial para fundar a sua pretensão.
[…]
Assim, para aferir da idoneidade do meio processual utilizado pelos Autores, importa analisar a específica situação dos autos – "é sempre a partir do caso concreto e do alegado na p.i. que o juiz a quo, para efeitos do despacho liminar, perscruta a existência, ou não, de fundamentos factuais que justifiquem a indispensabilidade do recurso ao processo de intimação", tal como refere o acórdão recorrido – aferida em função do pedido e da concreta factualidade que os Autores alegaram na petição inicial para consubstanciar a respetiva causa de pedir.
[…]
De acordo com as regras gerais em matéria de alegação e prova constantes dos arts. 5° do Cód. Proc. Civ. e 342° do Cód. Civil, competia aos Recorrentes alegar, além do mais, factos concretos – nas circunstâncias do caso – suscetíveis de revelar o preenchimento daquele pressuposto da indispensabilidade.
Na nossa perspetiva impunha-se que os Recorrentes, no requerimento inicial, tivessem alegado factos que permitam concluir que o exercício dos seus direitos ficaria inutilizado antes de poder obter decisão judicial em ação não urgente associada ao pedido de uma providência cautelar.
A indispensabilidade seria aferível pela iminência, a imediata perceção de uma violação que está a ocorrer ou em vias de ocorrer.
[…]
Todavia limitaram-se a argumentar, de forma vaga, imprecisa e genérica uma afetação da "vida quotidiana", da "liberdade individual", da ameaça do "direito à família e ao reagrupamento familiar" e mesmo da "segurança, tranquilidade e liberdade de circulação", invocando meros receios, conjeturas ou hipóteses de ameaças a direitos, olvidando alegar factos concretos que evidenciem ser indispensável o recurso ao processo de intimação.
Na verdade, conforme resulta das alegações de recurso, os próprios Recorrentes partem da premissa de que "a alegação da mera falta de um título de residência e os efeitos que daí emergem em termos de evidente, atual e prolongada restrição de direitos, liberdades e garantias – e que, face ao supra exposto resultam presumidos das regras da experiência a que o julgador deve atender – mostra-se suficiente e adequada para que possa dar-se por cumprido o preenchimento dos requisitos vertidos no artigo 109°n.° 1 do CPTA" (sublinhado nosso).
Deste modo, e admitindo-se embora que o facto de os Requerentes não verem agendada a recolha de dados biométricos e, consequentemente não lograrem a obtenção da ARI mediante emissão de título/cartão de residência, poderá, em abstrato, contender com o exercício de direitos, liberdades e garantias que invocam, falhando a demonstração dos pressupostos da indispensabilidade e, por inerência, da urgência, resulta a falta de idoneidade do meio processual utilizado, razão pela qual a decisão de rejeitar liminarmente o requerimento inicial nos parece acertada.».
Os recorrentes responderam a este parecer, reiterando, no essencial, a posição defendida nas suas alegações de recurso (fls. 236 e ss.).
Sem vistos prévios (artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com disponibilização do projeto de acórdão aos Juízes Conselheiros adjuntos, vêm os autos à conferência para apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A) De facto
6. O tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:
«1.° - Os Recorrentes têm nacionalidade britânica e são portadores de passaportes britânicos (cf. docs. juntos com a p.i. - páginas 5 e 6 da numeração SITAF);
2.° - Em 06/12/2021, o 1.° Recorrente submeteu através do portal do SEF - "Portal ARI” - requerimento para obtenção de autorização de residência com fundamento em atividade de investimento/aquisição de bens imóveis (cf. docs. juntos com a p.i. - página 7 da numeração SITAF);
3.° - A 2.ª Recorrente apresentou candidatura de reagrupamento familiar (cf. docs. juntos com a p.i. - página 19 da numeração SITAF);
4.° - O 1.° Recorrente adquiriu um prédio habitacional em Portimão, pelo valor de €905.000,00 (cf. docs. juntos com a p.i. - página 10 da numeração SITAF);
5.° - Admitidas as candidaturas, os Recorrentes foram informados do agendamento para o posto de atendimento da delegação do SEF de Portimão, feito para o dia 20/04/2023, às 11h:00 (cf. docs. juntos com a p.i. - página 20 da numeração SITAF).».
B) De direito
7. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações (artigos 144º, n.º 2, do CPTA e 608º, n.º 2, 635.º, nºs 4 e 5, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC ex vi artigo 140º, n.º 3, do CPTA), pelo que, uma vez admitida a revista, importa decidir se o acórdão recorrido enferma de erro de julgamento ao julgar inobservados os requisitos da subsidiariedade, da indispensabilidade e da urgência que nesta vai co-implicada, de que depende a utilização da intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias.
Nas palavras dos próprios recorrentes, o «Tribunal a quo entendeu (corroborando idêntico entendimento da 1ª instância e no que apenas contende com o concreto objeto do presente recurso de revista), pela verificação da apontada falta do requisito de indispensabilidade exigida por este concreto meio processual e, de igual modo, do princípio da subsidiariedade, nos termos exigidos pelo artigo 109° n.º 1 do CPTA». Ou seja, «o que está em causa nos autos é [– apenas –] apreciar a adequação do processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias para reagir quanto à inércia dos Requeridos no âmbito de procedimento para obtenção de autorização de residência […].» (cfr. as conclusões 13 e 14 das suas alegações de recurso, e que são corroboradas pelo teor das conclusões 60 a 69).
8. Os recorrentes requereram a intimação dos recorridos, ao abrigo do disposto no artigo 109.º, n.º 1, do CPTA, para num dado prazo lhes disponibilizarem uma data para a recolha dos dados biométricos, a fim de se concluir o procedimento relativo à obtenção de uma ARI e de reagrupamento familiar.
Segundo tal preceito, a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.
Em vista disso, invocam os recorrentes um conjunto de situações, que, segundo os próprios, corresponderiam a ameaças – ou mesmo lesões – atuais a direitos fundamentais daquela categoria (cfr. as conclusões 31 a 44 e 47 das respetivas alegações). Reforçando a urgência inerente à indispensabilidade do meio processual em causa – a qual não existiria no momento de apresentação do pedido de ARI –, referem os recorrentes que a mesma passou a existir com o decurso do tempo decorrente da inação das entidades demandadas, «uma vez que os Requerentes [– aqui recorrentes –] pretende[m] fixar o centro da sua vida social em Portugal, tendo, atualmente, essa expectativa e pretensão, indevidamente em suspenso há mais de dois anos».
Mencionando a relevância das regras da experiência como presunção judicial, nos termos do artigo 604.º, n.º 4, do CPC, consideram os recorrentes que a alegação da mera falta de um título de residência e os efeitos que daí emergem em termos de evidente, atual e prolongada restrição de direitos, liberdades e garantias se mostra suficiente e adequada para que possa dar-se por cumprido o preenchimento dos requisitos vertidos no artigo 109° n.º 1 do CPTA, pelo que discordam do entendimento vertido no acórdão recorrido de que o articulado inicial padece de alegação fáctica destinada a densificar os conceitos de urgência e indispensabilidade para o exercício de um direito, liberdade ou garantia; a falta de autorização/título de residência válido será, só por si, um facto que legitima, sem mais, a necessidade de recurso ao meio processual em causa (cfr. as conclusões 51 e 52; v. também as conclusões 29 e 56).
9. Contudo, tal automatismo ou suficiência não se coaduna com o aludido requisito positivo da indispensabilidade para assegurar o exercício em tempo útil de um determinado direito. Como a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo – e bem – o meio processual previsto naquele artigo 109.º, n.º 1, é de utilização excecional. No acórdão recorrido, refere-se a este propósito:
«Entre os pressupostos do processo de intimação, prescritos pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, impõe-se destacar o da sua indispensabilidade […].
Em termos sintéticos, a indispensabilidade do processo de intimação significa, de acordo com a doutrina inscrita na obra e pelos autores já atrás assinalados [– Mário Aroso de Almeida e Carlos Fernandes Cadilha no seu Comentário ao CPTA –], que a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias “não é a via normal de reação a utilizar em situações de lesão ou ameaça de lesão de direitos, liberdades e garantias. A via normal de reação é a da propositura de uma ação não urgente (...)”, “associada à dedução do pedido de decretamento de uma providência cautelar, destinada a assegurar a utilidade da sentença que, a seu tempo, vier a ser proferida no âmbito dessa ação. Só quando, no caso concreto, se verifique que a utilização das vias não urgentes de tutela não é possível ou suficiente para assegurar o exercício, em tempo útil, do direito, liberdade ou garantia é que deve entrar em cena o processo de intimação” […].
Portanto, é sempre a partir do caso concreto e do alegado na p.i. que o juiz a quo, para efeitos do despacho liminar, perscruta a existência, ou não, de fundamentos factuais que justifiquem a indispensabilidade do recurso ao processo de intimação.».
No mesmo sentido, afirma Vieira de Andrade:
«Exige-se, desde logo, a urgência da decisão para evitar a lesão ou inutilização do direito, na falta da qual deverá haver lugar a uma ação administrativa normal – sublinhe-se, no entanto, o carácter relativo ou gradativo da urgência, que depende das circunstâncias do caso concreto, avaliadas de acordo com um critério composto, que, nas espécies radicais de “especial urgência”, associa apreciações temporais de iminência a juízos de valor, numa ponderação própria das situações de necessidade.» (v. Autor cit., A Justiça Administrativa, 19.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, p. 265).
Ou Anabela Leão:
«A Intimação pressupõe ainda a urgência e indispensabilidade. Uma vez que se associa à célere emissão de uma decisão que permita assegurar o exercício de um direito em tempo útil, a Intimação está associada a uma situação de urgência. Trata-se de uma urgência concreta, que cabe ao requerente da Intimação alegar e demonstrar. Caso esta urgência principal (não cautelar […]) não se verifique, o recurso à Intimação não é admissível.» (v. Autora cit., “Intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias” in Carla Amado Gomes et alii (Coord.), Comentários à Legislação Processual Administrativa, vol. II, 6.ª ed., AAFDL, Lisboa, 2024, p. 709 e ss., pp. 729-730).
Daí que, na síntese de Mário Aroso de Almeida e Carlos Fernandes Cadilha, o requisito positivo em análise exija o seguinte:
«[O] preenchimento deste requisito pressupõe que o requerente concretize na petição os seguintes aspetos: a existência de uma situação jurídica individualizada que caracterize um direito, liberdade e garantia, cujo conteúdo se encontre suficientemente concretizado na CRP ou na lei para ser jurisdicionalmente exigível por esta via processual; e a ocorrência de uma situação, no caso concreto, de ameaça do direito, liberdade e garantia em causa, que só possa ser evitada através do processo urgente de intimação. Não releva, por isso, a mera invocação genérica de um direito, liberdade ou garantia: impõe-se a descrição de uma situação factual de ofensa ou preterição do direito fundamental que possa justificar, à partida, ao menos numa análise perfunctória de aparência do direito, que o tribunal venha a intimar a Administração, através de um processo célere e expedito, a adotar uma conduta (positiva ou negativa) que permita assegurar o exercício em tempo útil desse direito.» (v. Autores cits., Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, anot. 1 ao art. 109.º, pp. 929-930).
10. No caso vertente, conforme o que foi julgado pelas instâncias, os ora recorrentes não alegaram qualquer facto concreto que evidencie ser indispensável o recurso ao processo de intimação, ou seja, em termos factuais, não transparece do requerimento inicial nem das conclusões de recurso – designadamente das conclusões 31 a 44, 46 e 47 –, qualquer lesão séria ou ameaça de lesão dos direitos que invocam.
Com efeito, os recorrentes não se encontram a residir em Portugal nem impedidos de entrar no país e também não invocam estarem separados ou impedidos de viver em família ou de acederem a cuidados de saúde ou à segurança social no país da sua residência atual. Também não se mostra posto em causa o direito de propriedade sobre o bem imóvel que adquiriram em Portugal.
Como refere o Ministério Público, e resulta amplamente demonstrado no acórdão recorrido, «impunha-se que os Recorrentes, no requerimento inicial, tivessem alegado factos que permitam concluir que o exercício dos seus direitos ficaria inutilizado antes de poder obter decisão judicial em ação não urgente associada ao pedido de uma providência cautelar. A indispensabilidade seria aferível pela iminência, a imediata perceção de uma violação que está a ocorrer ou em vias de ocorrer. […] Todavia limitaram-se a argumentar, de forma vaga, imprecisa e genérica uma afetação da "vida quotidiana", da "liberdade individual", da ameaça do "direito à família e ao reagrupamento familiar" e mesmo da "segurança, tranquilidade e liberdade de circulação", invocando meros receios, conjeturas ou hipóteses de ameaças a direitos, olvidando alegar factos concretos que evidenciem ser indispensável o recurso ao processo de intimação». O que, de resto, é coerente com a tese que os mesmos recorrentes perfilham relativamente à suficiência da alegação da mera falta de um título de residência e os efeitos que daí emergem em termos de evidente, atual e prolongada restrição de direitos, liberdades e garantias para que se possa dar por cumprido o preenchimento dos requisitos vertidos no artigo 109° n.º 1 do CPTA (cfr. supra o n.º 8, in fine).
A situação é, assim, muito diferente da que esteve na base do decidido, em formação alargada, no Ac. STA [FA], de 6.06.2024, P. 741/23.4BELSB. Como resulta dos pontos do respetivo sumário a seguir transcritos, as regras da experiência, valendo como presunção judicial, permitiram chegar, nesse caso, a uma convicção diametralmente oposta (cfr. https://www.dgsi.pt/jsta.nsf?OpenDatabase):
«IV- A permanência de um cidadão estrangeiro indocumentado em território nacional por razões alheias ao mesmo, assacáveis aos serviços a quem legalmente está atribuída a incumbência de tramitar o procedimento para a emissão da decisão final, não é compatível com o leque de direitos que lhe são formalmente reconhecidos pela Constituição da República Portuguesa (CRP) e pelos tratados internacionais, que reconhecem direitos a qualquer pessoa, independentemente da nacionalidade ou estatuto legal.
V- Está em causa um verdadeiro direito de cidadania previsto no n.º 1 do artigo 26.º da CRP, entendido no sentido lato que resulta da previsão do artigo 15.º relativo à equiparação entre estrangeiros e cidadãos nacionais. A falta de um título de residência temporária, que permita a permanência de um imigrante no território nacional, durante um período certo, afeta o reduto básico de direitos pessoais e sociais, que se ligam, todos eles, ao princípio da dignidade da pessoa humana (cfr. artigo 1.º da CRP).
VI- Enquanto a autorização de residência temporária não for concedida o recorrente permanece vulnerável a abusos, designadamente, a nível laboral, sujeito a aproveitamentos indevidos da sua condição de clandestino.
VII- Estando em jogo o exercício de direitos, liberdades e garantias fundamentais, formalmente reconhecidos pela CRP e por instrumentos de direito internacional ao cidadão estrangeiro, mas cuja efetividade se encontra materialmente comprometida pela falta de decisão do pedido de autorização de residência, a garantia do gozo de tais direitos por parte do mesmo não se compagina com uma tutela precária, num cenário que é contingente para o mesmo.
VIII- Para a tutela de tais direitos, a adoção de uma providência cautelar traduzida na atribuição de uma autorização de residência provisória não é suficiente. A atribuição de residência provisória no âmbito da tutela cautelar é uma autorização com termo incerto, que a qualquer momento pode cessar, não conferindo ao cidadão estrangeiro um horizonte temporal mínimo de estabilidade e de previsibilidade em relação à duração da sua permanência regular em território português.
IX- A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é o meio processual mobilizável quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar – artigo 109.º, n.º 1, do CPTA.
X- Dispor de um tempo mínimo de residência regular em território nacional é condição necessária para que um cidadão estrangeiro possa delinear o seu projeto de vida com alguma segurança e estabilidade, a que acrescem ainda facilidades procedimentais (artigos 76.º, n.º3 e 82.º, n.º7 da Lei n.º 23/2007).
XI- Estando em causa a urgência na obtenção de uma decisão principal ou de mérito para a tutela de direitos, liberdades e garantias fundamentais, a Intimação prevista nos artigos 109.º a 111.º do CPTA é meio processual adequado.» (no mesmo sentido, v. o acórdão do TCAS, de 8.09.2023, P. 647/23.7BELSB, citado na conclusão 70 das alegações de revista).
Improcedem, pelo exposto, as conclusões 31 a 44, 46 e 47 e, consequentemente, as conclusões 51 e 52, todas das alegações de revista.
11. A alegada superveniência da situação de urgência – que não existia no momento da submissão da candidatura à ARI – e que «passou a existir com o decurso do tempo decorrente da inação das Entidades Demandadas, uma vez que os Requerentes [–aqui recorrentes –] pretende[m] fixar o centro da sua vida social em Portugal, tendo, atualmente, essa expectativa e pretensão indevidamente em suspenso há mais de dois anos» (assim a conclusão 45 das alegações de revista), não altera os dados fundamentais da questão.
Na verdade, e sem prejuízo deste Tribunal acompanhar o voto de vencido aposto no acórdão STA, de 16.11.2023, P. 455/23.5BELSB (parcialmente transcrito na conclusão 57), assim como a declaração de voto junta ao acórdão ora recorrido, o que releva é, uma vez mais, a omissão de concretização de direitos, liberdades e garantias ameaçados pela demora da conclusão do procedimento administrativo de ARI. Desse ponto de vista, a situação é idêntica antes e depois de os recorrentes terem firmado o seu propósito firme de “fixar o centro da sua vida social em Portugal”.
12. No fundo, por via do presente processo, os aqui recorrentes, insurgindo-se contra a inércia da Administração, pretendem reagir contra a mesma.
Mas, como é salientado no acórdão recorrido, ambas as instâncias apenas se debruçaram sobre uma questão processual prévia:
«[I]mporta frisar que a decisão recorrida não apreciou o mérito da causa nem os fundamentos da pretensão material que os Recorrentes formulam em sede do articulado inicial, já que, da sentença recorrida, não se infere em parte alguma qualquer pronúncia sobre o bem ou mal fundado dessa pretensão material, ou seja, o Tribunal a quo não emite qualquer decisão que concretamente se debruce sobre o direito dos Recorrentes ao requerido reagendamento da diligência de recolha dos dados biométricos ou sequer sobre o direito de autorização de residência (ou falta desses direitos).
Em rigor, a decisão recorrida deteve-se num aspeto adjetivo prévio, que se encontra inculcado a montante da fase de sindicância do mérito da causa. Isto é, tendo o Tribunal a quo que emitir um despacho liminar, a proferir no prazo máximo de 48 horas, nos termos do artigo 110.º, n.º 1, do CPTA, é nesse preciso momento inicial que se impõe ao juiz aquilatar sobre a verificação dos pressupostos do processo de intimação, que se encontram plasmados no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
[…]
[Assim], o que realmente importa salientar é que a sentença recorrida não recusou a tutela dos direitos inscritos na legislação infraconstitucional aos quais se arrogam os Recorrentes (seja o de reagendamento da diligência para a recolha dos dados biométricos, seja o da emissão da autorização de residência), assim como, não apreciou sequer a alegada violação dos supra mencionados princípios, nem, muito menos, sindicou a legalidade ou ilegalidade da alegada omissão dos Recorridos, posto que, como é cristalino, a decisão recorrida limitou-se a considerar na fase embrionária do processo que era inadequado ou impróprio o meio processual escolhido pelos Recorrentes em ordem à efetivação da tutela dos direitos por si clamados, sem que desse juízo liminar do Tribunal a quo tivesse emergido qualquer concreta apreciação sobre o mérito ou demérito dos direitos peticionados.».
Com efeito, as instâncias, pelas razões anteriormente expostas, entenderam – e bem – que a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias não é o meio adequado para tal, quando a referida inércia administrativa, segundo o alegado pelo requerente não o deixe numa situação em que um seu direito liberdade ou garantia esteja a ser lesado ou fique na iminência de ser lesado, tornando-se indispensável e urgente para evitar ou eliminar tal lesão continuada tutelá-lo a título principal (e não meramente cautelar).
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, manter o acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 11 de julho de 2024. – Pedro Manuel Pena Chancerelle de Machete (relator) – Cláudio Ramos Monteiro – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (com declaração de voto).
Declaração de voto
Voto a decisão, pelas razões que votei vencida no processo n.º 726/22.8BEALM. Não acompanho a decisão na parte em que considera que a factualidade aqui subjacente é distinta da que estava subjacente ao processo n.º 726/22.8BEALM. Considero, aliás, que o pedido e a decisão em ambos se remete (só pode remeter-se face à factualidade assente) à questão do direito a uma decisão administrativa em tempo útil para operacionalizar direitos fundamentais (neste caso o direito à habitação/fixação de residência ao abrigo do regime jurídico da Lei n.º 23/2007, relativamente ao qual já se operacionalizaram, até, actos materiais de investimento da confiança respeitantes àquele direito).
Lisboa, 11 de julho de 2024
Suzana Tavares da Silva. |