Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: | 01782/21.1BELRS |
Data do Acordão: | 07/03/2024 |
Tribunal: | 2 SECÇÃO |
Relator: | FRANCISCO ROTHES |
Descritores: | RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL APRECIAÇÃO PRELIMINAR |
Sumário: | I - O recurso de revista excepcional, previsto no art. 285.º do CPTT, visa funcionar como “válvula de segurança” do sistema, sendo admissível apenas se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão do recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, cumprindo ao recorrente alegar e demonstrar a factualidade necessária para integrar a verificação dos referidos requisitos de admissibilidade da revista (cf. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis). II - É de admitir a revista quanto à interpretação do n.º 5 do art. 45.º da LGT, designadamente a fim de saber se o alargamento do prazo de caducidade aí previsto exige que se deva verificar uma relação de prejudicialidade entre os factos que justifiquem a liquidação e aqueles que tenham determinado a abertura do inquérito criminal, ou seja, que esse alargamento do prazo só pode ocorrer quando a AT obtenha notícia de factos discutidos em processo-crime e desses factos dependa a liquidação. III - Essa questão assume relevância social fundamental, com um amplo interesse objectivo, transpondo os limites do caso concreto aqui em apreciação e, por outro lado, a admissão do recurso também se justifica para melhor aplicação do direito, atenta a controvérsia jurisprudencial verificada. |
Nº Convencional: | JSTA000P32490 |
Nº do Documento: | SA22024070301782/21 |
Recorrente: | AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA |
Recorrido 1: | A..., LDA |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Apreciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no Recorrente: Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) Recorrida: “A..., Lda.” 1. RELATÓRIO 1.1 A AT, inconformada com o acórdão de 15 de Fevereiro de 2024 do Tribunal Central Administrativo Sul (Disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/-/b621eb83f700f22080258acb00407112.) – que, concedendo provimento ao recurso interposto pela sociedade acima identificada e negando provimento ao recurso por interposto pela AT, revogou a sentença na parte impugnada e julgou a impugnação judicial procedente também nessa parte, o que significou que foram anuladas todas as liquidações impugnadas, respeitantes a Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) e juros compensatórios dos anos de 2013 a 2015 –, dele recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo, mediante a invocação do disposto no art. 285.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, apresentando a respectiva motivação, com conclusões do seguinte teor: «I. Interpõe-se o presente recurso do douto acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul por se encontrarem verificados os respectivos pressupostos de admissibilidade previstos no artigo 285.º do CPPT. II. Como se infere do art. 285.º do CPPT o recurso de revista pode ser admitido quando verificados um dos dois requisitos alternativos, bastando o preenchimento de qualquer deles para determinar a admissão do presente recurso: a) A questão a resolver assuma importância fundamental, por via da sua relevância jurídica ou social; ou b) A intervenção do Supremo Tribunal Administrativo se revele claramente necessária para uma melhor aplicação do direito. III. In casu, a questão que se pretende submeter à revista desse Tribunal Superior, consiste em determinar se, se só para as situações em que a liquidação resulte de factos apurados em processo-crime se justifica o alargamento do prazo de caducidade previsto no art. 45.º, n.º 5 da LGT IV. Quanto à relevância social, entendida no sentido de que a situação apresenta contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, afigura-se-nos que a mesma se encontra verificada no caso em apreço. V. Porquanto, a questão em causa, não tem um interesse meramente teórico, tendo sim uma grande capacidade de expansão, na medida em que o entendimento do TCA Sul no Acórdão recorrido limita as situações de alargamento do prazo de caducidade do direito à liquidação em que existe processo de inquérito, sendo de notar que na jurisprudência do STA em situações de facto semelhantes à dos autos se tem entendido que é aplicável o art. 45.º n.º 5 da LGT. VI. Consubstanciando a decisão a proferir uma orientação para a decisão uniforme desses casos futuros. VII. No que concerne à necessidade da revista para uma melhor aplicação do direito verifica-se que, a decisão é efectivamente errada, devendo ser afastada a possibilidade de sustentar jurisprudencialmente outras subsequentes decisões erradas, sendo das primeiras neste sentido VIII. Sendo que, também é verificável, na questão dos autos, a existência de um claro interesse objectivo que transpõe os limites do caso concreto aqui em apreciação, constituindo um caso “tipo” “onde se deve reconhecer a utilidade de intervenção do STA, com vista a uma pronúncia que possa servir como orientação para os tribunais de que aquele Tribunal é órgão de cúpula. IX. Pelo que se verifica a clara necessidade de intervenção do Supremo Tribunal Administrativo no sentido de evitar a propagação de uma interpretação errónea, nas situações em que subsequentemente esteja em causa aquela questão. X. Tendo a questão sido decidida de modo juridicamente insustentável pelo TCA Sul, só uma intervenção desse Supremo Tribunal – necessária para uma melhor aplicação do direito – poderá evitar que uma juridicamente insustentável posição jurisprudencial se possa consolidar. XI. Pelo que, na situação dos autos, demonstram-se preenchidos os pressupostos dos quais depende a admissibilidade do recurso de revista, quer pela capacidade de expansão, quer por se revelar necessária e imprescindível uma actuação preventiva do órgão de cúpula (orientador dos restantes tribunais) de forma a evitar a aplicação desta interpretação errada. XII. Sendo que a interpretação propugnada pelo TCA Sul no Acórdão recorrido não tem respaldo na lei, nada se referindo no art. 45.º n.º 5 da LGT quanto à necessidade de o conhecimento dos factos ter de ser obtido em processo crime, pelo que teremos de presumir, nos termos do art. 9.º n.º 3 do Código Civil (aplicável às normas fiscais cf. 11.º LGT), que naquela redacção do art. 45.º n.º 5 da LGT “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” . XIII. Não faria sentido que a liquidação pela AT com base em elementos do processo-crime e da definição da situação tributária em processo-crime, como parece resultar do Acórdão recorrido, não abrangesse além da factualidade a sua imputação subjectiva, sendo que nem da letra da lei nem da sua teleologia resulta que o alargamento do prazo, em causa no art. 45.º n.º 5 da LGT, depende da constituição como arguido ou condenação do devedor de imposto. XIV. O entendimento do Acórdão recorrido de que o alargamento do prazo de caducidade só se justificaria no caso de a AT ter obtido a notícia do crime em processo de inquérito e da definição da situação tributária neste processo-crime, também não parece defensável quer perante uma situação tributária de que dependa a qualificação criminal dos factos, como resulta dos arts. 42.º, n.ºs 2 e 4, 47.º, 48.º e 21.º, n.ºs 3 e 4, de que resulta a obrigação de suspender o processo penal até que esteja definida a situação tributária pelos meios procedimentais e processuais tributários, quer perante o facto de a obrigação de imposto se manter, independentemente da prática do crime tributário. XV. Tal como se decidiu no Ac. do STA proferido Processo n.º 1313/16, de 30 de Abril de 2019: O legislador estabeleceu que quando haja identidade entre os factos tributários e aqueles que estão a ser investigados em inquérito criminal, o prazo de caducidade da liquidação dos tributos suportados nesses factos tributários se estende até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano, sem desvendar a razão de tal opção ou lhe estabelecer restrições, o que impede o intérprete de o fazer. Assim, mesmo que a Autoridade Tributária disponha de todos os elementos necessários à liquidação, pode aguardar o desenrolar do processo criminal para proceder à liquidação. XVI. Sendo que, como também se refere neste Ac. do STA proferido Processo n.º 1313/16: O processo criminal que utiliza especializados e mais eficientes meios de investigação que os que estão ao alcance da Autoridade Tributária pode vir a encontrar elementos seguros que apontem para a liquidação do acto de liquidação ou que demonstrem que ela não deva ter lugar, ou que deva ter uma diferente amplitude daquela inicialmente antevista pela Autoridade Tributária, como pode não acrescentar qualquer elemento novo àqueles que já se conheciam no momento da instauração do inquérito sem que isso diminua o alargamento do prazo de caducidade de liquidação do tributo. XVII. Por outro lado, a consagração no art. 45.º n.º 5 da LGT deste alargamento do prazo de caducidade da liquidação do imposto respeitante a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal relaciona-se com o facto de a obrigação de imposto se manter, independentemente da prática do crime tributário, para garantir a liquidação dos impostos evadidos, tendo em conta a complexidade geralmente associada à investigação da criminalidade tributária. XVIII. Assim, a decisão do TCA Sul, no Acórdão ora recorrido, encontra-se em violação de lei (art. 45.º n.º 5 LGT), pelo que deverá ser revogada. Nestes Termos e nos demais de direito, requer-se a V. Ex.as: Que seja admitido e declarado procedente o presente recurso de revista, Assim se fazendo a tão costumada Justiça». 1.2 A Recorrida apresentou contra-alegações, com conclusões do seguinte teor: «A) A questão que importa analisar e decidir no presente recurso respeita à interpretação que deve ser dada ao n.º 5 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária. B) No Acórdão Recorrido ficou consignado que «o alargamento do prazo de caducidade só ocorre quando a AT obtenha notícia de factos discutidos em processo-crime e desses factos, dependa a liquidação. Mas já não vale para as situações, como a dos autos, em que a AT apurou factos em procedimento de inspecção tributária (deduções de imposto contido em facturas falsas), participou os factos à competente autoridade judiciária e, simultaneamente, efectuou liquidações oficiosas de imposto com base nos factos apurados em sede inspectiva e não com base em quaisquer factos apurados no processo-crime, cujo desfecho, aliás, aguarda decisão final na impugnação judicial dessas liquidações, nos termos do art. 47.º do Regime Geral das Infracções Tributárias». C) Já para a Fazenda Pública, o alargamento do prazo de caducidade ocorre sempre que «haja identidade entre os factos tributários e aqueles que estão a ser investigados em inquérito criminal, (…) mesmo que o Inquérito Criminal tenta tido origem na comunicação de factos pela AT, e esta disponha de todos os elementos necessários à liquidação. Podendo a AT aguardar o desenrolar do processo criminal para proceder à liquidação». D) No entender da Recorrida, a interpretação defendida pelo Tribunal recorrido é a única que se afigura conforme com o espírito da lei, bem como a que encontra respaldo do ponto de vista sistemático e histórico. E) Para além disso, a Recorrida entende que só esta interpretação se encontra conforme com o espírito da lei e com os princípios constitucionais aplicáveis. F) Com efeito, constituindo o instituto da caducidade uma garantia fundamental do contribuinte, a limitação do seus direitos, liberdades e garantias só pode ocorrer em casos excepcionais, não podendo admitir-se, sob pena de violação dos princípios do Estado de Direito Democrático e da proporcionalidade (previstos nos artigos 2.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa), que a Administração tributária beneficie do alargamento do prazo de caducidade quando se verifica que tem todas as condições para apurar a dívida tributária – o que sucedeu no caso em apreço. G) E mesmo que, por hipótese de raciocínio, fosse de admitir que a instauração de inquérito criminal é susceptível de alargar o prazo de caducidade do direito à liquidação, não pode aceitar-se que esse alargamento seja automático e possa ocorrer sem conhecimento – e, portanto, controlo – por parte do contribuinte. Vejamos melhor: H) Ao contrário do que foi pressuposto na jurisprudência em que se funda a posição da Recorrente, a intenção expressa pelo legislador, ao introduzir o n.º 5 no artigo 45.º da Lei Geral Tributária, foi a de alargar o prazo de caducidade (apenas) nas situações em que o «correcto apuramento do imposto está dependente de factos apurados em inquérito criminal». I) Com efeito, no ponto 2.4, alínea a), do Programa de Estabilidade e Crescimento 2005-2009 (actualização de Dezembro de 2005), foi expressamente consignado o seguinte: «No domínio da melhoria da eficiência da administração fiscal e do combate à evasão fiscais, o Governo implementará um programa integrado de medidas de carácter legislativo, operativo e tecnológico, com vista a abranger todas as vertentes relevantes de um fenómeno que é complexo e multifacetado. Entre o leque variado de iniciativas legislativas cuja implementação estava programada a curto prazo, salientam-se: (…) alteração do regime da caducidade do direito à liquidação dos tributos no sentido de se prever que, estando o correcto apuramento do imposto dependente de factos apurados em inquérito criminal, aquele prazo é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da respectiva sentença, acrescido de um ano (já aprovados na Lei do Orçamento de Estado para 2006)» (sublinhado da Recorrida). J) Mais adiante, é ainda feita a seguinte referência «No Orçamento de Estado para 2006 foi alterado o regime da caducidade do direito à liquidação dos tributos (em regra, nos impostos periódicos, 4 anos a contar do ano seguinte àquele em que ocorreu o facto tributário e nos impostos de obrigação única, a contar da data da ocorrência do facto tributário) no sentido de se prever que, estando o correcto apuramento do imposto dependente de factos apurados em inquérito criminal, aquele prazo é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da respectiva sentença, acrescido de um ano. Com tal alteração visa-se, no essencial, prevenir que aqueles que são indiciados ou até acusados da prática de ilícitos criminais de natureza tributária não beneficiem, por virtude do decurso do prazo de caducidade, da não liquidação de imposto, com a inerente desobrigação de proceder ao seu pagamento, por virtude da prática daqueles ilícitos. Pretende-se, assim, a moralização do ordenamento jurídico-tributário e um mais eficaz combate à fraude e evasão fiscal» (cf. publicação disponível em https://www.parlamento.pt/orcamentoestado/documents/pec/pec2005-2009.pdf – o sublinhado é da Recorrida). K) Assim, tal como se reconheceu no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 06-12-2017, proferido no processo n.º 073/16 (em que foi Relatora a Senhora Conselheira Isabel Marques da Silva), «sem prejuízo da letra da lei, importa atender à teleologia da norma. (…) Conforme bem referem José Maria Fernandes Pires, Gonçalo Bulcão, José Ramos Vidal e Maria João Menezes in Lei Geral Tributária – anotada e comentada, 2015, p. 412, “o n.º 5 destina-se a impedir o decurso do prazo de caducidade na pendência do processo criminal por se entender que encontrando-se a liquidação dependente de sentença a proferir no âmbito desse processo tal liquidação não pode ser prejudicada pela demora da decisão judicial. Para o efeito alarga-se o prazo de caducidade até arquivamento do inquérito ou ao trânsito em julgado da sentença acrescido de um ano”». L) A interpretação que consta do Acórdão recorrido encontra-se, igualmente, sustentada do ponto de vista da interpretação sistemática e histórica dos preceitos relevantes. M) Na verdade, para além de, tecnicamente, o alargamento do prazo de caducidade não equivaler a uma suspensão desse prazo, importa ter em consideração que a suspensão a que alude a alínea a) do n.º 2 do artigo 46.º — e que constava já da versão inicial da Lei Geral Tributária — parece não ser de aplicar aos casos em que foi instaurado inquérito criminal. N) Desde logo porque, se a alínea a) do n.º 2 do artigo 46.º da Lei Geral Tributária já se reportasse a situações sob investigação criminal, certamente o legislador não teria qualquer necessidade de acrescentar um n.º 3 ao mesmo artigo 46.º (introduzido em 2003, através do Decreto-Lei n.º 160/2003, de 19 de Julho). O) Do mesmo modo, também não se justificaria a necessidade de se consagrar qualquer alargamento do prazo de caducidade em 2005, aquando da introdução do n.º 5 no artigo 45.º da Lei Geral Tributária, operada pela Lei do Orçamento do Estado para 2006; com efeito, se a suspensão do prazo de caducidade já se encontrava assegurada por força da alínea a) do n.º 2 do artigo 46.º, para que serviria a consagração de um alargamento do prazo em caso de instauração de inquérito criminal??? P) A convicção da Recorrida encontra-se, ainda, sustentada pela própria letra da lei, uma vez que a expressão litígio judicial a que se reporta a indicada alínea a) indicia, claramente, que o legislador se refere a uma acção judicial que oponha o contribuinte a qualquer outro sujeito processual e não a um inquérito criminal, o qual, como é sabido, não consubstancia um litígio judicial, mas um procedimento (conjunto de actos e diligências) levado a cabo pelos órgãos de investigação criminal, destinado a apurar a existência de factos com relevância criminal e que pode, inclusivamente, terminar sem que seja feita qualquer imputação a um indivíduo concreto, não existindo, até ao momento da acusação e em sentido próprio, um litígio judicial. Q) Também não colhe o entendimento segundo o qual «seria ainda mais grave (…) que o legislador o fizesse com uma estatuição distinta e mais favorável ao contribuinte potencialmente criminoso; ou seja, na interpretação veiculada na decisão arbitral em crise, haveria duas normas aplicáveis a situações de conhecimento prejudicial à liquidação, sendo a reservada aos crimes mais gravosa para a tutela dos interesses do credor fiscal do que a norma geral reservada às demais situações em que tal prejudicialidade ocorresse» (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no indicado Processo n.º 0111/21.9BALSB). R) É que esta diferença de regime ou consequência justifica-se pela simples, mas decisiva razão, de que, nos casos a que respeita o n.º 5 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária, a Administração tributária não tem de proceder a qualquer averiguação / investigação adicional de relevo, sendo a sua acção restringida ao apuramento do imposto com base nos factos investigados e fixados no inquérito criminal. S) Por esse motivo, ou seja, aproveitando a Administração tributária de todo o trabalho de investigação e definição já realizado no inquérito criminal, ou no processo subsequente (que, como é reconhecido pelos Tribunais Superiores, constituem processos em que o poder de investigação e os meios disponíveis para esse efeito são muito mais abrangentes e especializados), o legislador entendeu que seria razoável que a Administração tributária dispusesse do prazo de um ano após o termo do procedimento criminal para praticar o acto de liquidação correspondente aos factos investigados em procedimento criminal. T) De resto, a circunstância de o alargamento do prazo de caducidade só se verificar em caso de identidade dos factos investigados com os que estão na origem da liquidação do imposto confirma, precisamente, a intenção do legislador de fazer corresponder a liquidação ao acto de apuramento do imposto devido quanto aos factos apurados em procedimento criminal. U) Acresce que a interpretação prevista no Acórdão recorrido é também aquela que articula, de forma correcta, o disposto nos artigos 45.º e 46.º da Lei Geral Tributária com o regime previsto no artigo 47.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT). V) De facto, ao contrário do que parece ser pressuposto pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (invocada no recurso da Fazenda Pública), o artigo 47.º do RGIT só deve (pode) ser aplicado nas situações em que a Administração tributária não se encontra limitada ou condicionada na sua actuação, sendo, antes, o procedimento criminal que se encontra dependente (condicionado) da actuação da Administração tributária e do que for decidido em processo de natureza tributária em que se discuta a natureza dos factos. W) E é esta também a razão que justifica a alínea c) do n.º 5 do artigo 36.º do RCPITA (aditada pela Lei n.º 75.º-A/2014, de 30 de Setembro), segundo a qual o prazo para a conclusão do procedimento suspende-se quando «Seja instaurado processo de inquérito criminal sem que seja feita a liquidação dos impostos em dívida, mantendo-se a suspensão até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença». X) Com efeito, decorre deste preceito que o procedimento de inspecção deve suspender-se se for instaurado inquérito criminal sem que seja feita a liquidação, posto que, neste caso, a Administração tributária deve aguardar pela conclusão do processo criminal para proceder ao apuramento do imposto, não se encontrando limitada pelo decurso do prazo de caducidade (já que beneficia do alargamento do mesmo prazo, em conformidade com o previsto no n.º 5 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária). Y) Dito isto, deve ser negado provimento à revista peticionada pela Recorrente, pelos motivos que acima se apontaram, mantendo-se o Acórdão Recorrido. Z) Mas mais: a interpretação que foi consignada no Acórdão recorrido é a que melhor se coaduna com os princípios inerentes ao estabelecimento do prazo de caducidade, ou seja, com os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, e também com o princípio da proporcionalidade, que, como é sabido, deve ser aplicado sempre esteja em causa a restrição de direitos, liberdades e garantias dos administrados. AA) Constituindo o instituto da caducidade uma garantia fundamental do contribuinte, motivada por razões de certeza e segurança jurídicas, a sua restrição deve limitar-se ao mínimo necessário para assegurar a receita tributária, pelo que não se deverá admitir o alargamento do prazo de caducidade sine dia, sem que tal seja determinante para assegurar os direitos do Estado à liquidação e à arrecadação da receita tributária. BB) Por esse motivo, desde que o interesse público – arrecadação dos tributos devidos – não se encontre condicionado ou limitado, em caso algum se justifica o alargamento do prazo de caducidade, sob pena de violação do mencionado princípio constitucional da proporcionalidade, ínsito no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa. CC) Assim, o regime do alargamento do prazo de caducidade previsto no n.º 5 do artigo 45.º da LGT deverá aplicar-se, apenas, às situações em que a Administração tributária está dependente de uma decisão no âmbito do processo criminal em curso, por a liquidação do imposto estar, de alguma forma, condicionada pela qualificação e/ou quantificação criminal de determinados factos tributários que será realizada no âmbito desse processo criminal, tal como foi consignado no Acórdão recorrido. DD) Na verdade, como indicam José Maria Fernandes Pires, Gonçalo Bulcão, José Ramos Vida e Maria João Menezes, «[e]m resultado da existência de determinado processo criminal poderão resultar certos factos, cuja qualificação e quantificação como factos tributários depende do que for considerado definitivamente assente em termos criminais, nomeadamente da determinação da existência e medida da responsabilidade criminal do arguido. Por outro lado, tratando-se de factos graves, e atendendo às consequências onerosas, em termos de sanção, advenientes do estabelecimento dessa responsabilidade, o processo-crime é revestido de especiais garantias de defesa, podendo a sua duração ser bastante dilatada, o que não é compatível com os breves prazos de caducidade normalmente vigentes no âmbito do direito tributário. Além disso, o facto de se estabelecer que a caducidade só decorrerá após um ano sobre o termo do processo criminal, destina-se a permitir que haja lugar aos procedimentos e diligências legal e tecnicamente indispensáveis à existência de uma liquidação válida e a sua liquidação (…) Por isso, este prazo de um ano subsequente ao arquivamento do inquérito ou trânsito em julgado do processo-crime é, por vezes, designado de prazo técnico de efectuação da liquidação, ou seja, é o prazo que o legislador teve como razoável para que a AT possa levar a cabo todas as diligências que esta acarreta» (cf. op. cit. p. 412). EE) Tendo em consideração tudo o que antecede, a Recorrida não pode deixar de peticionar a VV. Exas. a declaração da inconstitucionalidade material do artigo 45.º, n.º 5, da Lei Geral Tributária, por violação dos artigos 2.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa, quando interpretado no sentido de incluir no âmbito do alargamento do prazo de caducidade aí regulado os casos em que o desfecho do respectivo inquérito criminal não seja necessário – ou, sequer, relevante. FF) Por fim, a Recorrida não pode deixar de manifestar que, em seu entender, mesmo que fosse de admitir que a instauração de inquérito criminal seria susceptível de alargar o prazo de caducidade do direito à liquidação – o que aqui apenas se consigna por hipótese de raciocínio e dever de patrocínio –, em caso algum se poderia aceitar que esse alargamento do prazo fosse automático e pudesse ocorrer sem conhecimento – e, portanto, controlo – por parte do contribuinte. GG) De facto, ainda que a instauração de procedimento criminal possa – por mera hipótese de raciocínio – provocar esse efeito de alargamento e correlativa restrição ou condicionamento da garantia constitucional de que o contribuinte dispõe, parece evidente que essa restrição só poderá ter eficácia a partir do momento em que o contribuinte tome conhecimento da mesma, sob pena de evidente violação do disposto no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa. HH) De resto, não se antevê qualquer justificação atendível para que se possa admitir que o prazo de caducidade se pode alargar indefinidamente desde que tenha sido instaurado inquérito criminal quanto aos mesmos factos, podendo o contribuinte tomar conhecimento dessa circunstância apenas muitos anos depois (o que, infelizmente, se verifica com muita frequência no contexto actual). II) Neste contexto, sob pena de violação do disposto no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, o artigo 45.º, n.º 5, da LGT deve ser interpretado no sentido de que esse alargamento do prazo de caducidade pressupõe que tenha sido dado conhecimento ao contribuinte do facto que justifica tal alargamento, ou, melhor dizendo, do facto que restringe ou condiciona a sua garantia. JJ) Vertendo tal entendimento para o caso em apreço, impor-se-ia concluir que o alargamento do prazo de caducidade apenas poderia, no limite, ter impacto no prazo do direito à liquidação de IVA do período de 2015. KK) Admitindo, ainda – mais uma vez, por mera hipótese de raciocínio –, que possa ser concedido provimento ao presente recurso de revista (o que, naturalmente, não se aceita), deve o Supremo Tribunal Administrativo determinar a baixa dos Autos ao Tribunal Central Administrativo Sul para apreciação das questões que ficaram prejudicadas com a decisão a que se chegou no Acórdão recorrido. LL) Com efeito, tendo dado por verificado um dos vícios apontados pela Recorrida à sentença proferida em primeira instância, o Tribunal Central Administrativo Sul concedeu provimento total ao mesmo e considerou prejudicada a apreciação das demais questões (quer de facto, quer de direito) suscitadas pela Recorrida no seu recurso. MM) Ora, tendo obtido provimento total quanto ao seu recurso, a Recorrida encontra-se impossibilitada de apresentar recurso subordinado ou de solicitar a ampliação da revista. NN) Neste contexto, se, porventura, for de conceder provimento à revista, impõe-se ao Supremo Tribunal Administrativo mandar baixar os Autos ao Tribunal recorrido para que sejam apreciadas as demais questões suscitadas pela Recorrida e que ficaram prejudicadas em função da deliberação tomada nesse Tribunal, sob pena de violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, a que alude o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa. Termos em que, sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser negado provimento ao presente Recurso de Revista, mantendo-se o Acórdão recorrido». 1.3 O Desembargador relator no Tribunal Central Administrativo Sul, verificando a legitimidade da Recorrente e a tempestividade do recurso, ordenou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo. 1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal e dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral-Adjunto pronunciou-se no sentido de que «[a]o Ministério Público não compete emitir Parecer sobre a admissão ou não admissão do Recurso de Revista (artigo 285.º n.º 6 do CPPT). Caso venha a ser admitido pronunciar-se-á sobre o seu mérito». 1.5 Cumpre apreciar e decidir da admissibilidade do recurso, nos termos dos n.ºs 1 e 6 do art. 285.º do CPPT. * * * 2. FUNDAMENTAÇÃO 2.1 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO 2.1.1 Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo; mas, excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: i) quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental, ou ii) quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (cfr. art. 285.º, n.º 1, do CPPT). 2.1.2 Como a jurisprudência tem vindo a salientar, incumbe ao recorrente alegar e demonstrar essa excepcionalidade, que a questão que coloca ao Supremo Tribunal Administrativo assume uma relevância jurídica ou social de importância fundamental ou que o recurso é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito. Ou seja, em ordem à admissão do recurso de revista, a lei não se satisfaz com a invocação da existência de erro de julgamento no acórdão recorrido, devendo o recorrente alegar e demonstrar que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista (cf. art. 144.º, n.º 2, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicáveis). 2.1.3 Na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória – nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema» (Cf., por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Abril de 2014, proferido no processo n.º 1853/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/aa70d808c531e1d580257cb3003b66fc.). 2.1.4 Referidos que ficaram os pressupostos da admissibilidade da revista excepcional e o seu âmbito abstracto, passemos a verificar, preliminar e sumariamente (cf. art. 285.º, n.ºs 1 e 6, do CPPT) e à luz dos requisitos invocados pela Recorrente, se o recurso pode ser admitido. 2.2.2 O CASO SUB JUDICE A questão que a Recorrente pretende ver reapreciada por este Supremo Tribunal em sede de revista é a de saber se o alargamento do prazo de caducidade nos termos previstos no n.º 5 do art. 45.º da LGT pressupõe que o acto de liquidação esteja condicionado ao desfecho do processo-crime, isto é, se o referido alargamento só opera relativamente a factos de que a AT teve conhecimento em processo-crime e que desses factos dependa a liquidação, como entendeu o acórdão recorrido; ou, pelo contrário e como sustenta a Recorrente, aquele alargamento do prazo de caducidade se basta com a circunstância de no processo-crime estarem, ou terem estado, em causa os mesmos factos em que assenta a liquidação. «1. Na interpretação que fazemos do art.º 45/5 da LGT, o alargamento do prazo de caducidade só ocorre quando a AT obtenha notícia de factos discutidos em processo-crime e desses factos, dependa a liquidação. 2.3 CONCLUSÕES Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões: I - O recurso de revista excepcional, previsto no art. 285.º do CPTT, visa funcionar como “válvula de segurança” do sistema, sendo admissível apenas se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão do recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, cumprindo ao recorrente alegar e demonstrar a factualidade necessária para integrar a verificação dos referidos requisitos de admissibilidade da revista (cf. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis). II - É de admitir a revista quanto à interpretação do n.º 5 do art. 45.º da LGT, designadamente a fim de saber se o alargamento do prazo de caducidade aí previsto exige que se deva verificar uma relação de prejudicialidade entre os factos que justifiquem a liquidação e aqueles que tenham determinado a abertura do inquérito criminal, ou seja, que esse alargamento do prazo só pode ocorrer quando a AT obtenha notícia de factos discutidos em processo-crime e desses factos dependa a liquidação. III - Essa questão assume relevância social fundamental, com um amplo interesse objectivo, transpondo os limites do caso concreto aqui em apreciação e, por outro lado, a admissão do recurso também se justifica para melhor aplicação do direito, atenta a controvérsia jurisprudencial verificada. * * * 3. DECISÃO Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência da formação prevista no n.º 6 do art. 285.º do CPPT, em admitir o presente recurso. Custas a determinar a final. * |