Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:088/24.9BEFUN
Data do Acordão:07/03/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:GUSTAVO LOPES COURINHA
Descritores:AUXILIO DO ESTADO
GARANTIAS
DISPENSA
Sumário:Contrariamente ao que sucedia com o artigo 169.º, n.º 11 do CPPT quanto aos recursos próprios da União Europeia, não se prevê norma própria que, ao menos em termos diretos, impeça a aplicação das garantias processuais previstas naquele dispositivo à recuperação executiva de Auxílios de Estado ilegais.
Nº Convencional:JSTA000P32456
Nº do Documento:SA220240703088/24
Recorrente:A... SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA, ZFM
Recorrido 1:AT-RAM
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo


I – RELATÓRIO

I.1 Alegações
A... SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA, melhor identificada nos autos, vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, a qual julgou improcedente a reclamação por ela apresentada contra o indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia.
Apresenta as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões a fls. 154 a 179 do SITAF.
I. Interpõe a Recorrente o presente Recurso contra a Sentença proferida no âmbito do processo de Reclamação Judicial que correu os seus termos, sob o n.º 88/24.9BEFUN, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, e que foi apresentada contra a decisão de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia, que a antecedeu;
II. Subjacente à Sentença ora recorrida, está o seguinte entendimento do Tribunal a quo:
- “O que está na base dos presentes autos é a Decisão da Comissão Europeia (Decisão (UE) 2022/14 14 da Comissão, de 4 de dezembro de 2020 relativa ao regime de auxílios SA.21259 (2018/C) (ex - 2018/NN,) aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira (ZFM) — Regime III), e que ordenou a Portugal, enquanto Estado-Membro, a imediata e efetiva recuperação dos auxílios concedidos, sob a forma de redução de impostos, de forma ilegal (cfr. art.° 5° da Decisão).
- Ora, não há dúvidas de que Portugal está vinculado ao cumprimento de tal decisão. E quanto aos termos em que tal recuperação se processa, há que atender ao teor da Comunicação da Comissão relativa à recuperação de auxílios estatais ilegais e incompatíveis (2019/C247/01), e ainda ao Regulamento (EU 2015/1589 do Conselho (também denominado «Regulamento Processual»), dado que quer a Decisão, quer a Comunicação, quer o Regulamento Processual, constituem direito da União Europeia e logo aplicáveis em Portugal nos termos do n.º 4 do art.° 8.° da Constituição da República Portuguesa;
- Ora, visto o teor de tais atos, temos que o artigo16.°, n.º 3, do Regulamento Processual estabelece que «a recuperação será efetuada imediatamente e segundo as formalidades do direito nacional do Estado Membro em causa, desde que estas permitam uma execução imediata e efetiva da decisão da Comissão».
- Por outro lado, no ponto 37 da Comunicação estabelece-se que “(...) os princípios do primado e da efetividade do direito da União Europeia significam que os Estados-Membros e os beneficiários do auxílio não podem invocar o princípio da segurança jurídica para limitar uma recuperação no caso de um alegado conflito entre o direito nacional e o da União Europeia.
- O direito da União Europeia prevalece e as regras nacionais não devem ser aplicadas ou devem ser interpretadas de uma forma que preserve a efetividade do direito da União Europeia.
- E tal primazia tem até lugar, note-se, perante decisões judiciais já transitadas em julgado, como decorre do ponto 45 da Comunicação: “Ao abrigo do princípio do primado do direito da União Europeia, as regras da União Europeia em matéria de auxílios estatais prevalecem sobre leis nacionais divergentes, que não devem ser aplicadas. O mesmo se aplica às regras e decisões judiciais nacionais cujo efeito da aplicação do princípio da autoridade do caso julgado se traduza na violação das regras da União Europeia em matéria de auxílios estatais.”
- Mais se dispondo no ponto 69 que “(Uma decisão da Comissão dirigida a um Estado-Membro é vinculativa para todos os órgãos do Estado destinatário, incluindo os seus tribunais”. Ou seja, e volvendo ao caso que nos ocupa, a aplicação de normativos nacionais não é impedida pela execução de uiva decisão de recuperação de auxílio ilegais. Todavia, tais normativos não podem pôr em causa a decisão, e a obrigatoriedade da mesma ser imediata e efetiva.
- O que sempre sucederia com os preceitos legais relativos à suspensão do processo de execução fiscal com dispensa de prestação de garantia. De onde, não merece censura a atuação da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira que desconsiderou os normativos nacionais atinentes à possibilidade de dispensa de prestação de garantia visando a suspensão do processo de execução fiscal;
III. Em primeiro lugar, e como a ora Recorrente tem sustentado ao longo das peças judiciais apresentadas, o raciocínio adotado pela Autoridade Tributária, agora corroborado pelo Tribunal a quo, padece de um erro de direito inultrapassável, o qual toma a presente Decisão ilegal;
IV. É que, ao contrário do que a Autoridade Tributária e o Tribunal a quo sustentam, a questão não se prende com a vinculação do Estado Português e respetivas instituições à Decisão da Comissão Europeia, mas apenas com a forma adotada na execução da referida Decisão;
V. É que como bem sabe o Tribunal a quo é o próprio Tribunal de Justiça da União Europeia a dizer que a execução das decisões de recuperação de auxílios de Estado considerados ilegais deve ser feita de acordo com a ordem jurídica interna dos Estados Membros;
VI. A este propósito veja-se a posição adotada pelo Tribunal Geral da União Europeia, em 27 de outubro de 2023, nos processos T-718/22 e T-723122. Diz então o Tribunal que “No caso de ser identificado um beneficiário do auxílio declarado ilegal e incompatível com o mercado interno, a Comissão esclareceu, no considerando 216 da decisão recorrida, o método com base no qual o montante do auxílio a restituir devia ser calculado pelas autoridades portuguesas”;
VII. Mais dizendo que: “É irrelevante para esta conclusão a alegação de que, na prática, as autoridades portuguesas quantificaram o montante dos auxílios a recuperar junto de cada beneficiário segundo um método fixo. Com efeito, essa crítica visa as modalidades de recuperação dos auxílios em causa, que estão sujeitas à fiscalização exclusiva dos órgãos jurisdicionais nacionais (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2011, A2A/Comissão, C-320/09 P, não publicado, EU:C:201 1:858, 11.0 162)” - assinalado pela Recorrente;
VIII. Isto porque:
- Ora, o contencioso relativo a essas medidas nacionais de recuperação, suscetível de determinar a sua anulação, à da competência exclusiva do juiz nacional e deve ser considerado uma simples emanação do princípio da proteção jurisdicional efetiva que constitui, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, um princípio geral do direito da União Europeia (v., neste sentido, Acórdãos de 13 de fevereiro de 2014, Mediaset, C-69/13, EU:C:2014:71, a,° 34, e de 11 de setembro de 2014, Comissão/Alemanha, C-527/12, EU: C:2014:2 193, n.º 45 e jurisprudência referida);
- Decorre do exposto que cabe ao órgão jurisdicional nacional, se for interpelado, pronunciar-se sobre a questão de saber se os auxílios concedidos às recorrentes ao abrigo do Regime III o foram: em conformidade com as Decisões de 2007 e de 2013 que o autorizaram e, por conseguinte, constituem «auxílios existentes» na aceção do artigo 1°, alínea b), ii), do Regulamento 2015/1589, eventualmente após ter submetido uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 267. TFUE;
- Assim, no âmbito dos presentes recursos, o Tribunal Geral examinará os fundamentos invocados pelas recorrentes apenas na parte em que dizem respeito à decisão recorrida e não às medidas nacionais de recuperação adotadas pelas autoridades portuguesas em execução desta última decisão (cfr. pontos 26, 27 e 28 da Decisão do Tribunal Geral da União Europeia).
IX. De onde se conclui que cabe aos juízes nacionais controlar juridicamente os moldes em que é feita a recuperação dos auxílios em execução da Decisão da Comissão, através da aplicação da legislação interna, o que não sucedeu, antes tendo optado o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo por não apreciar o mérito da pretensão como legalmente se impunha e agora se requer;
X. Com efeito, a decisão de não conhecer o mérito da pretensão como legalmente se impunha e ora se requer para além de ser manifestamente ilegal, teve consequências graves na situação económica da ora Recorrente;
XI. Conforme sobejamente demonstrado, foi a própria Autoridade Tributária que, incumbida de proceder à recuperação dos auxílios de Estado, decidiu liquidar adicionalmente imposto (IRC), como se este fosse devido nos anos em causa; e subsequentemente, em face da falta de pagamento voluntário do imposto adicional mente liquidado, instaurar os processos de cobrança coerciva a que ora se reage;
XII. Assim, o que está a ser exigido à Recorrente é o pagamento de IRC, pelo que ao qualificar a quantia a recuperar como imposto e emitir atos tributários está a Autoridade Tributária vinculada a cumprir a lei (nomeadamente a possibilidade de pagamento em prestações ou da suspensão do processo de execução fiscal através da prestação de uma garantia ou através da sua dispensa);
XIII. Afastar a aplicação destes institutos jurídicos significa negar a natureza tributária da dívida (em manifesta contradição com os atos emitidos);
XIV. Certo é que o recurso ao procedimento tributário não possibilita a seleção parcial dos segmentos daquele regime, sendo igualmente certo que não existe qualquer procedimento específico para o efeito porque o Estado (enquanto legislador) não o previu;
XV. Centrando o tema que nos ocupa - a Sentença que indeferiu a Reclamação Judicial apresentada contra o pedido de dispensa da prestação da garantia - importa deixar claro que porque assim entendeu o Estado português, na origem destes autos está a emissão de liquidações de IRC, cuja falta de pagamento dentro do prazo de pagamento voluntário deu origem à instauração de processos de execução fiscal contra a Recorrente;
XVI. Ora, o processo de execução fiscal consiste num processo de execução simplificado face àquele que é o regime geral de execução (civil), porque assenta no princípio de que o Estado é uma entidade investida de maior autoridade e que se presume que atua de boa fé, circunstância que permite simplificar o processo (menos moroso e com menos etapas que o processo de execução civil), o que precisamente tem levado a um alargamento das dívidas (ainda que não fiscais, o que não é o caso dos autos), a serem cobradas coercivamente por esta via;
XVII. A este propósito, veja-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA Sul”) de 25/11/2021, proferido no processo 239/14.1BECTB: “O recurso ao processo executivo para cobrança de dívidas não fiscais, legalmente previsto, tem sido visto como uma forma apetecível para diversas entidades credoras, atenta a sua rapidez;, simplicidade e eficácia, quando comparado com a execução comum, o que nos deve levar a uma cuidada interpretação e aplicação do n°2 do artigo 148° do CPPT.”;
XVIII. Naturalmente e ainda que tendencialmente mais célere e simplificado, o processo de execução fiscal é um processo de cobrança coerciva, em que naturalmente (por imposição da própria justiça e da Constituição portuguesa), são consagradas diversas garantias aos executados;
XIX. Ou seja, aqui chegados o que se verifica é que em resultado da Decisão da Comissão que condena o Estado português à recuperação de auxílios ilegais concedidos no âmbito do reconhecimento da ZFM e do regime fiscal especial ao abrigo do qual as entidades com sede naquele local eram tributadas, a Autoridade Tributária optou por recuperar os auxílios de Estado em questão através de liquidações de imposto;
XX. E que o recurso àquele procedimento de liquidação de imposto (cfr. artigos 59.° e seguintes do CPPT) implica o cumprimento das normas que o regem, incluindo - com redobrada relevância - as normas que titulam as garantias dos contribuintes;
XXI. No que diz respeito à dispensa de prestação de garantia importa ainda notar que de acordo com o n.º 4, do artigo 52°, da LGT, para que o Executado possa ser isentado da prestação de garantia é necessário que i) a prestação de garantia lhe cause prejuízo irreparável ou ii) que seja manifesta a sua falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido e, bem assim, que iii) a insuficiência / inexistência de bens não seja da sua responsabilidade;
XXII. Estes requisitos, exigidos pelo n.º 4 do artigo 52° da LGT, são requisitos alternativos, como nos indica a conjunção disjuntiva “ou”, o que significa que a lei se basta com a verificação de um dos requisitos aí previstos, desde que não seja apurada a responsabilidade do executado pela insuficiência ou inexistência de bens ou de rendimentos (cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, no Processo: 02029/07, de 09-10-2007, in www.dgsi.E.t).
XXIII. Ora, a Recorrente não dispõe de meios financeiros ou quaisquer bens imóveis que possa oferecer à penhora e que lhe permitam suspender este processo de execução fiscal - situação essa que o Tribunal a quo não cuidou de analisar;
XXIV. Ficou demonstrado nos presentes autos a imperatividade da lei interna na execução da Decisão proferida pela Comissão Europeia, não restando senão concluir que a Sentença proferida pelo Tribunal a quo deve ser anulada por este Tribunal por ter sido proferida em sentido contrário à Legislação portuguesa aplicável, devendo ser determinada a baixa dos autos e condenado o Tribunal a quo a proferir uma Sentença que analise o mérito da pretensão da ora Recorrente, como legalmente se impõe.

I.2 – Contra-alegações
Foram proferidas contra alegações no âmbito da instância pela Representante da Fazenda Pública a fls. 185 a 201 no sentido e em resumo que “…não estão reunidos os pressupostos para a suspensão da execução, nem demonstradas as condições para a dispensa da prestação de garantia, em alternativa a essa prestação, pelo que a pretensa irregularidade da citação por omissão da menção prevista no 190.º, n.º 2 do CPPT, in fine, nunca teria prejudicado a defesa da Reclamante, ora Recorrente, e como tal nunca poderia configurar uma nulidade.”
Pelo que conclui que deve ser negado provimento ao presente recurso interposto pela reclamante, ora recorrente, confirmando-se a sentença recorrida.

I.3 - Ministério Público
Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, veio o Ministério Público emitir parecer com o seguinte conteúdo:
Vem o presente recurso interposto da douta Sentença, datada de 11.04.2024, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, a qual julgou improcedente a Reclamação Judicial deduzida pela ora Recorrente da Decisão indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia. Foram apresentadas contra-alegações de recurso.
Para uma aproximação da questão em causa permitimo-nos transcrever aqui os seguintes pontos da matéria dada como provada:
1. Pelo Serviço de Finanças do Funchal - 1 foi instaurado contra A... Sociedade Unipessoal, Lda., o PEF n.º ...61, por dívida de IRC do exercício de 2013 – recuperação de auxílios, no valor global de € 1 211 511,35 ;
2. Citada, a aqui Recorrente apresentou junto do Serviço de Finanças do Funchal – 1 requerimento a arguir a nulidade da citação, uma vez que a citação emitida lhe vedava, no seu entender, a possibilidade de suspensão do processo de execução fiscal através da prestação de garantia, de um pedido de dispensa de prestação de garantia ou efetuar o pagamento da dívida em prestações;
3. Por despacho de 25/01/2024 foi proferida decisão de indeferimento do pedido de reconhecimento de nulidade da citação apresentado pela Reclamante;
4. Notificada do despacho de indeferimento, a ora Recorrente apresentou Reclamação junto do TAF do Funchal.
ANÁLISE
Em sede de Conclusões a Recorrente vem invocar que, «ao contrário do que a Autoridade Tributária e o Tribunal a quo sustentam, a questão não se prende com a vinculação do Estado Português e respectivas instituições à Decisão da Comissão Europeia, mas apenas com a forma adotada na execução da referida Decisão.»
Com efeito, e como bem refere a Sentença aqui sob escrutínio, subjacente aos presentes autos está a «Decisão da Comissão Europeia (Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de dezembro de 2020 relativa ao regime de auxílios SA.21259 (2018/C) (ex - 2018/NN) aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira (ZFM) – Regime III), e que ordenou a Portugal, enquanto Estado-Membro, a imediata e efetiva recuperação dos auxílios concedidos, sob a forma de redução de impostos, de forma considerada ilegal (cfr. art.º 5.º da Decisão).»
Para a Recorrente, «cabe aos juízes nacionais controlar juridicamente os moldes em que é feita a recuperação de auxílios em execução da Decisão da Comissão, através da aplicação da legislação interna, o que não sucedeu, antes tendo optado o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo por não apreciar o mérito da pretensão como legalmente se impunha e agora se requer.»
Defende a Recorrente que foi a Autoridade Tributária que, incumbida de proceder à recuperação dos auxílios do Estado, decidiu liquidar adicionalmente o IRC.
Ou seja, em resultado da Decisão da Comissão em atribuir ao Estado Português a execução da recuperação dos auxílios ilegais, concedidos no âmbito do reconhecimento da Zona Franca da Madeira e do pertinente regime fiscal, a Autoridade Tributária optou por recuperar os auxílios em questão através de liquidações de imposto.
Em conformidade, continua a Recorrente, o recurso ao procedimento de liquidação de imposto implica o cumprimento das normas que o regem, incluindo as normas que titulam as garantias dos contribuintes (cfr. arts. 59º e ss. do CPPT).
Termina a Recorrente alegando que «ficou demonstrado nos presentes autos a imperatividade da lei interna na execução da Decisão proferida pela Comissão Europeia, não restando senão concluir que a Sentença proferida pelo Tribunal a quo deve ser anulada por este Tribunal por ter sido proferida em sentido contrário à legislação portuguesa aplicável, devendo ser determinada a baixa dos autos e condenado o Tribunal a quo a proferir uma Sentença que analise o mérito da pretensão da ora Recorrente, como legalmente se impõe.»
Diversamente, o Tribunal a quo entende que «há que atender ao teor da Comunicação da Comissão relativa à recuperação de auxílios estatais ilegais e incompatíveis (2019/C 247/01), e ainda ao Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho (também denominado «Regulamento Processual»), dado que quer a Decisão, quer a Comunicação, quer o Regulamento Processual, constituem direito da União Europeia e logo aplicáveis em Portugal nos termos do n.º 4 do art.º 8.º da Constituição da República Portuguesa. Ora, visto o teor de tais atos, temos que o artigo 16.º, n.º 3, do Regulamento Processual estabelece que “a recuperação será efetuada imediatamente e segundo as formalidades do direito nacional do Estado-Membro em causa, desde que estas permitam uma execução imediata e efetiva da decisão da Comissão”».
Nos termos da Sentença sob escrutínio, não pode considerar-se que a aplicação das leis nacionais é automaticamente vedada aquando de uma execução de uma decisão de recuperação de auxílios ilegais, o que acontece é que a aplicação de tais normativos nacionais têm de respeitar as normas europeias, nomeadamente as que resultam do citado nº 3 do art. 16º do Regulamento Processual, que estabelecem que tais normas haverão de viabilizar uma execução imediata e efetiva da Decisão da Comissão.
Ora, para o Tribunal a quo, tais desideratos seriam impedidos pelos preceitos legais do ordenamento jurídico português relativos à suspensão do processo de execução fiscal, nomeadamente através da prestação de garantia, da dispensa de prestação de garantia ou do pagamento em prestações.
Nos termos da mencionada Sentença «todos esses preceitos legais acabam por ter como consequência o protelar no tempo da execução da decisão de recuperação.»
Nos termos da mencionada Sentença «todos esses preceitos legais acabam por ter como consequência o protelar no tempo da execução da decisão de recuperação.»
Conclui o Tribunal a quo que «não merece censura a atuação da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira que desconsiderou os normativos nacionais atinentes à possibilidade de suspensão do processo de execução fiscal, através daqueles institutos processuais.»
Salvo o devido respeito por diversa posição, afigura-se-nos ser aqui de acolher a tese propugnada pelo Tribunal a quo atenta a bem estruturada e coerente fundamentação de que destacamos a relativa ao primado do direito comunitário e à especificidade da expressa conformação quanto à atuação do Estado Português no que concerne à aplicação do direito nacional no específico contexto da recuperação de auxílios ilegais. CONCLUSÃO.
Assim sendo, a nosso ver e sempre salvaguardando mais avisada posição, haverá de improceder o presente recurso, devendo a Decisão Recorrida manter-se na Ordem Jurídica.”

I.5 - Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo (cfr. artigo 657.º, n.º 4 do Código do Processo Civil e artigo 278.º, n.º 5 do CPPT), cumpre apreciar e decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – De facto
A decisão recorrida considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. Pelo Serviço de Finanças do Funchal - 1 foi instaurado contra A... Sociedade Unipessoal, Lda., o processo de execução fiscal n.º ...61, por dívida de IRC do exercício de 2013 – recuperação de auxílios, no valor global de € 1 211 511,35 (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual e citação junta à p.i.);
2. Citada, a aqui Reclamante apresentou junto do Serviço de Finanças do Funchal - 1 requerimento a arguir a nulidade da citação, uma vez que a citação emitida lhe vedava, no seu entender, a possibilidade de suspensão do processo de execução fiscal através da prestação de garantia, de um pedido de dispensa de prestação de garantia ou efetuar o pagamento da dívida em prestações (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual e citação junta à p.i.)
3. Por despacho de 25/01/2024, foi proferida decisão de indeferimento do pedido de reconhecimento de nulidade da citação apresentado pela Reclamante (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual e despacho e informação de suporte juntos à p.i.);
4. Notificada do despacho de indeferimento, veio a Reclamante apresentar a presente ação (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual e despacho de indeferimento junto à p.i.).

II.2 – De Direito
I. O presente recurso tem por objecto a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, datada de 11 de Abril de 2024, a qual julgou improcedente a reclamação interposta pela reclamante ora recorrente “A... Sociedade Unipessoal, Lda.”, visando a suspensão do processo de execução fiscal nº ...61, tendente à cobrança coerciva da dívida decorrente do procedimento de recuperação de auxílios de Estado concedidos a empresas a operar no âmbito institucional da Zona Franca da Madeira, com dispensa de prestação de garantia.

II. Para decidir pela improcedência da reclamação, o tribunal a quo considerou que “…a aplicação de normativos nacionais não é automaticamente impedida pela execução de uma decisão de recuperação de auxílios ilegais. Todavia, tais normativos não podem pôr em causa a decisão de recuperação, e a obrigatoriedade da mesma ser imediata e efetiva.
O que sempre sucederia com os preceitos legais do ordenamento jurídico português relativos à suspensão do processo de execução fiscal, seja através da prestação de garantia, da dispensa de prestação de garantia ou do pagamento em prestações. Com efeito, todos esses preceitos legais acabam por ter como consequência o protelar no tempo da execução da decisão de recuperação.
De onde, não merece censura a atuação da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira que desconsiderou os normativos nacionais atinentes à possibilidade de suspensão do processo de execução fiscal, através daqueles institutos processuais. Até porque, a suspensão com prestação de garantia é algo considerado inadmissível por parte da Comunicação.”
Neste sentido entendeu ainda o tribunal recorrido que “…não é admissível qualquer medida que vise o retardamento da restituição do auxílio declarado ilegal, de que constitui exemplo a pretendida suspensão do processo de execução fiscal através, designadamente, da prestação de garantia, dispensa de prestação de garantia ou pagamento em prestações, até porque isso faria com que a decisão de recuperação não fosse executada de forma imediata e efetiva, como se impõe nos respetivos termos da Decisão.”

III. Inconformada com a referida decisão de indeferimento, vem dela a ora Recorrente interpor recurso para esta instância superior, alegando que “…ao contrário do que a Autoridade Tributária e o Tribunal a quo sustentam, a questão não se prende com a vinculação do Estado Português e respectivas instituições à Decisão da Comissão Europeia, mas apenas com a forma adotada na execução da referida Decisão.”
Mais alega a Recorrente que, “…cabe aos juízes nacionais controlar juridicamente os moldes em que é feita a recuperação de auxílios em execução da Decisão da Comissão, através da aplicação da legislação interna, o que não sucedeu, antes tendo optado o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo por não apreciar o mérito da pretensão como legalmente se impunha e agora se requer.”
Pelo que, termina o Recorrente, “…ficou demonstrado nos presentes autos a imperatividade da lei interna na execução da Decisão proferida pela Comissão Europeia, não restando senão concluir que a Sentença proferida pelo Tribunal a quo deve ser anulada por este Tribunal por ter sido proferida em sentido contrário à legislação portuguesa aplicável, devendo ser determinada a baixa dos autos e condenado o Tribunal a quo a proferir uma Sentença que analise o mérito da pretensão da ora Recorrente, como legalmente se impõe”.
Cumpre, portanto, conhecer se a douta sentença padece de erro de julgamento por ter julgado improcedente a reclamação interposta pelo recorrente sem ter lugar a possibilidade de suspensão do processo executivo (seja mediante prestação de garantia idónea, seja mediante autorização de dispensa de prestação de garantia) ou ao pagamento em prestações da dívida exequenda.
Cumpre decidir.

IV. Comecemos por sublinhar que, pese embora os termos menos rigorosos em que vem formulado o presente recurso e a delimitação do objeto do mesmo, o que ora se discute é a regularidade da citação e a obrigatoriedade (ou não) da referência à possibilidade legal de dispensa de garantia no âmbito do mesmo ato de citação.

V. Entende a decisão formulada pelo órgão de execução fiscal, e sufragada nos seus termos pela decisão recorrida, que as garantias processuais relativas ao processo de execução fiscal são inaplicáveis sempre que se traduzam no “retardamento da restituição do auxílio declarado ilegal”, devendo tal restrição de meios de tutela do contribuinte ser alargada a toda e “qualquer medida” que possa conduzir a esse fim.
Assim, se bem entendemos a sentença recorrida, a regulamentação jurídica já de si ultra-simplificada do processo de execução fiscal constante do CPPT deveria ser, ainda mais, depurada de todos os mecanismos que pudessem comprometer a celeridade na recuperação de auxílios de estado ilegais. E, segundo a sentença recorrida, por força do disposto no artigo 16.º do Regulamento (UE) n.º 215/1589, do Conselho, de 13 de Julho de 2015 (Regulamento), o pagamento em prestações, a prestação de garantia com efeito suspensivo ou, até, a sua dispensa seriam exemplos destes “empecilhos” (salvo melhor expressão) à celeridade processual.
Foi, ainda, concordante com a decisão recorrida a leitura constante do Parecer do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal.

VI. Ora, salvo o devido respeito, não nos parece adequada tal leitura.
Comecemos por recordar o que dispõe o mencionado artigo 16.º do mencionado regulamento, que sustenta amplamente a argumentação aduzida na sentença recorrida: “Sem prejuízo de uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia nos termos do artigo 278.º do TFUE, a recuperação será efetuada imediatamente e segundo as formalidades do direito nacional do Estado-Membro em causa, desde que estas permitam uma execução imediata e efetiva da decisão da Comissão. Para o efeito e na eventualidade de um processo nos tribunais nacionais, os Estados-Membros interessados tomarão as medidas necessárias previstas no seu sistema jurídico, incluindo medidas provisórias, sem prejuízo da legislação da União.” (sublinhados nossos).

VII. Ora, na forma como o Tribunal a quo interpreta este normativo e procede à sua concatenação com o ordenamento nacional, ficaria na disponibilidade dos órgãos administrativos (e quaisquer outros de aplicação da lei nacional) escolher que partes do dispositivo de regulação da execução fiscal seriam aplicáveis in casu, atentos os efeitos de redução da celeridade processual que lhe estivessem associados.
Quer dizer, poderia prescindir-se de qualquer regulamentação especial para a recuperação de auxílios de estado ilegais, bastando a derrogação das garantias processuais que se revelassem “incompatíveis” com a exigência europeia de que “a decisão de recuperação… fosse executada de forma imediata e efetiva”.

VIII. Parece-nos errada uma tal leitura daquele dispositivo, bem como dos demais corolários extraídos pelo Tribunal a quo quer da Comunicação da Comissão relativa à recuperação de auxílios estatais ilegais e incompatíveis (2019/C 247/01), quer da Decisão da Comissão Europeia relativa ao regime de auxílios SA.21259 (2018/C) (ex - 2018/NN) aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira (ZFM) – Regime III) - Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de Dezembro de 2020.
Salvo o devido respeito, o que resulta de tais dados normativos é, ao invés, a concessão de uma liberdade aos Estados de se valerem dos regimes processuais que, no seu ordenamento interno, melhor assegurem “uma execução imediata e efetiva da decisão da Comissão”. Quer dizer, cada Estado Membro da União pode seleccionar os mecanismos legais nacionais aplicáveis à cobrança deste tipo concreto de dívida.
Porém, isso não equivale a permitir que se deva entender que cabe às entidades administrativas construir autênticos regimes ad hoc para lograr tal desiderato, adaptando as partes que entenda úteis a tal celeridade e desaplicando aquelas outras que conflituem com o mesmo.

IX. Cabe, portanto, ao legislador estabelecer um regime que – porventura, em termos ainda menos garantísticos do que os que normalmente se encontram associados ao processo de execução fiscal – permita aumentar a celeridade na cobrança dos créditos relativos a Auxílios de Estado reputados pela Comissão de ilegais.
E aponta neste sentido a solução introduzida, a respeito da recuperação de recursos próprios da União, no artigo 169.º, n.º 11 do CPPT, sob a epígrafe “Suspensão da Execução. Garantias”, onde se pode ler – curiosa e precisamente a respeito da regulamentação das matérias aqui em causa – que: “O disposto no presente artigo não se aplica às dívidas de recursos próprios comunitários.” (sublinhado nosso) (Norma que foi, entretanto, revogada pela Lei n.º 7/2021, de 26 de Fevereiro.).
Quer dizer: de modo a lograr a celeridade processual executiva exigida pelo Direito europeu a respeito de recuperação de recursos próprios da União Europeia, foi o legislador em abstracto (e não a administração em concreto, note-se) que entendeu reputar as garantias processuais executivas como inconvenientes à celeridade processual que deve pautar a recuperação dos recursos próprios europeus e por isso afastou a aplicação das “garantias” semelhantes àquelas aqui invocadas pela Recorrente no presente caso.

X. Sucede que não existe semelhante disposição no que concerne às quantias exequendas respeitantes a Auxílios de Estado ilegalmente concedidos.
E tão-pouco cabe a este Supremo Tribunal substituir-se à Administração Fiscal (e, em última análise, ao Tribunal recorrido) na fundamentação da decisão de recusa de reconhecimento das garantias relativas à possibilidade legal de dispensa de garantia nos processos executivos com vista à suspensão dos seus efeitos.
Sendo certo que essa fundamentação tem de se traduzir numa fundamentação legal, não podendo (como acertadamente sublinha a Recorrente) traduzir-se numa “seleção parcial dos segmentos daquele regime” tidos por mais conformes com o Direito Europeu por parte dos órgãos administrativos.

XI. Em suma, impõe-se conceder provimento ao recurso, anulando-se a sentença recorrida bem como a decisão reclamada.


III. CONCLUSÕES
Contrariamente ao que sucedia com o artigo 169.º, n.º 11 do CPPT quanto aos recursos próprios da União Europeia, não se prevê norma própria que, ao menos em termos diretos, impeça a aplicação das garantias processuais previstas naquele dispositivo à recuperação executiva de Auxílios de Estado ilegais.


IV. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Supremo Tribunal em conceder provimento ao presente recurso, revogar a sentença recorrida e anular a decisão reclamada.

Custas pela Recorrida.

Lisboa, 3 de Julho de 2024. – Gustavo André Simões Lopes Courinha (relator) - Joaquim Manuel Charneca Condesso - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes.