Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0128/23.9BEVIS
Data do Acordão:07/03/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANÍBAL FERRAZ
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P32458
Nº do Documento:SA2202407030128/23
Recorrente:A..., S.A.
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), com sede em Lisboa;

1

A..., S.A., …, e B..., S.A., …, recorrem de sentença, proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Viseu, em 9 de novembro de 2023, que julgou improcedente impugnação judicial (Do “indeferimento de Reclamações Graciosas, as quais por sua vez tiveram por objeto as autoliquidações da Contribuição Extraordinária sobre o setor energético e liquidação de juros compensatórios referentes ao exercício de 2020”.)
As recorrentes (partes) produziram alegação e concluíram: «


A. A sentença recorrida enferma de erro de julgamento de Direito, na medida em que o Tribunal a quo fez uma incorreta interpretação e aplicação do Direito, limitando-se principalmente a remeter para jurisprudência do TC, cujos fundamentos não são os mesmos da CESE em causa nos autos.
B. Com efeito, está em causa o regime da CESE e a conformação das suas normas com a CRP, na sequência das alterações introduzidas pela LOE 2019 (e mantidas em vigor pela LOE 2020) e à luz do recente Acórdão n.º 101/23 do TC
C. As referidas alterações introduzidas pela LOE 2019 (e mantidas em 2020) condicionaram a isenção até então aplicável aos produtores de eletricidade com recurso a energia renovável nos casos em que a estes fosse aplicável um regime de remuneração garantida – realidade perfeitamente identificada na lei, para os casos de PRE, mormente no Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de agosto.
D. Ora, conforme decorre claramente da jurisprudência do TC – neste caso, desde o Acórdão n.º 7/2019 – as entidades que se encontram em semelhante condição já contribuem para a finalidade principal da CESE – implementação de medidas sociais e ambientais em matéria de eficiência energética, razão pela qual beneficiavam da dita isenção.
E. Tal contributo foi efetuado, conforme foi muito bem referido pelo TC, no seguinte conjunto de medidas:
(i) Eliminação, para o futuro, do regime de subsidiação à tarifa da produção em regime especial (a partir de fontes renováveis), com a entrada em vigor da nova redação dos Decretos-Lei n.º 29/2006 e 172/2006, dada pelos Decretos-Lei n.º 215-A/2012 e 215-B/2012; e
(ii) Imposição, aos centros electroprodutores eólicos já instalados, de uma compensação anual ao SEN, durante o período de sete anos, compreendido entre 2013 e 2020 (artigos 5.º e 9.º do Decreto-Lei n.º 35/2013, de 28 de fevereiro).
F. Face ao exposto – e contando com o próprio assentido do TC – entendem as Recorrentes que se torna indiscernível que facto ou circunstância, entretanto ocorridos, justificaram que, à luz da pena do legislador, não contribuíssem para qualquer tipo de medidas sociais e ambientais em matéria de eficiência energética, dado que apenas nesse caso faria sentido colocá-las lado a lado com as entidade que já se encontravam sujeitas ao pagamento da CESE (e nunca haviam beneficiado de qualquer isenção).
G. Em função do exposto, e apoiando-se novamente na jurisprudência do TC, entenderam as Recorrentes que aquilo que subjaz aos presentes autos não pode, de forma alguma, considerar-se incluído “dentro da lógica do Acórdão n.º 7/2019”, na aceção sublinhada pelo Acórdão n.º 513/2021 do TC.
H. De onde decorre, em termos necessários, que a CESE incidente sobre as Recorrentes é uma realidade inteiramente nova, que, como tal, não pode (nem poderia) considerar-se abrangida pelas conclusões do TC, tal como enunciadas no Acórdão n.º 7/2019 e replicada nos Acórdãos n.ºs 285/2021, 301/2021, 303/2021, 436/2021, 437/2021, 438/2021, 756/2021 e 837/2022.
I. Se, conforme refere o TC no Acórdão n.º 101/2023, entre 2014 e 2017, ocorreu uma alteração dos pressupostos de facto e de direito relevantes para efeitos da CESE, torna-se imperativo concluir que também o ano de 2019 está enquadrado numa nova lógica.
J. É que se a dívida tarifária do SEN, em 2019, foi inclusive inferior à de 2018, ainda sem contemplar o efeito económico-financeiro da receita adicional de CESE provenientes da cobrança a entidades como as Recorrentes, torna-se imperativo concluir que a jurisprudência deste Tribunal, e segundo a qual “a maior parte dos operadores isentos da CESE dão o respetivo contributo nesta matéria através do exercício das respetivas atividades, que, em si, internalizam os custos ambientais e de escassez de produtos energéticos primários, seja a produção elétrica a partir de fontes renováveis (para a Europa a estratégia da eficiência energética é hoje indissociável da geração a partir de fontes renováveis), seja a produção de biocombustíveis, seja a cogeração (em si um dos eixos fundamentais da eficiência energética)”, tem ainda maior aplicabilidade.
K. Acresce que o financiamento de medidas de regulação, de apoio às empresas e de cariz social e ambiental, relacionadas com a eficiência energética, deixou de corresponder ao destino legal das receitas da CESE, em virtude das alterações introduzidas no regime jurídico do FSSSE.
L. Tal é ainda reforçado pois, incidindo a CESE sobre ativos, uma entidade que tenha um acervo de ativos de maior dimensão paga necessariamente mais CESE que uma outra, com ativos de menor dimensão, mesmo que esta última beneficie de um regime de remuneração garantida que tenha um contributo mais acentuado para a dívida tarifária do SEN!
M. Assim sendo, constata-se que a subordinação de uma norma de isenção plenamente legitimada pelo TC, para casos como o das Recorrentes, foi objeto de uma compressão ilegítima, porquanto desprovida de um fundamento lógico e discernível face aos pressupostos do regime da CESE.
N. Mais, a alteração encetada à referida norma de isenção, em 2019, introduziu um critério (os ditos regimes de remuneração garantida) que apenas pode ser relevado em termos ficcionais, como se entidades como as Recorrentes tivessem feito ou atuado após 2019 ao abrigo de pressupostos totalmente distintos dos que vigoraram desde 2014, cenário manifestamente desmentido pela realidade fática e jurídica.
O. Só esta ficção – sem aderência à realidade – permite ao legislador vislumbrar um nexo de equivalência de grupo que está totalmente ausente, com a necessária descaracterização da CESE enquanto contribuição financeira.
P. Assim, em relação à qualificação da CESE, sobretudo tendo por referência as alterações oferecidas pela LOE 2019, entendem as Recorrentes que a mesma não pode reconduzir-se ao universo das contribuições financeiras, dado que:
(i) Em primeiro lugar, não se denota a existência de homogeneidade de grupo;
(ii) Em segundo lugar, não existe igualmente qualquer especial responsabilidade de financiamento imputável ao grupo em causa – a responsabilidade de grupo – e, por maioria de razão, imputável às Recorrentes; e
(iii) Em terceiro e último lugar, não existe igualmente qualquer participação das Recorrentes num benefício ou utilidade grupalmente projetados – a utilidade de grupo.
Q. Verifica-se, por esta via – e, sobretudo, após as alterações encetadas pela LOE 2019 e respetivos critérios de base – que a CESE visa “recuperar”, pela via fiscal, um conjunto de gastos “não-realizados” ou de algum modo “economizados” pelos sujeitos passivos, relativamente a despesas que o erário público teria suportado em sua substituição.
R. Sucede que tais despesas não existem ou (existindo) não podem ser imputáveis às Recorrentes, na medida em que não só beneficiaram do regime remuneratório correspondente à PRE, nos termos expressamente previstos na lei, como, inclusive, participaram na implementação de medidas totalmente afins dos pressupostos a que se encontra vinculada a CESE.
S. Este tipo de racional demonstra que a CESE em vigor em 2020 deve qualificar-se como uma contribuição especial, porquanto, na sua componente mais substancial, apresenta a estrutura de uma contribuição de melhoria, associada ao especial desgaste de um bem público, neste caso o próprio SEN, ainda que sem qualquer fundamento digno de tutela jurídica ao abrigo de um regime com tal esta conformação.
T. Em complemento, e mesmo que, por hipótese, não se entendesse a CESE como uma contribuição especial a manifesta ausência de correspondência com o princípio da equivalência (mormente, enquanto equivalência de grupo, como seria próprio de uma contribuição financeira), sempre levaria a aplicar à CESE, enquanto imposição
patrimonial pública, o regime constitucional dos impostos.
U. Em conformidade, na impossibilidade de proceder à sua recondução à categoria das contribuições financeiras, a estruturação do regime da CESE de acordo com uma base de ativos, ao que acresce a vigência de um regime de remuneração garantida (como conditio sine qua non para a restrição à isenção consagrada no artigo 4.º, alínea a) do regime da CESE), viola o princípio da tributação pelo lucro real, tal como consagrado no artigo 104.º, n.º 2, da CRP.
V. Ou seja, a norma prevista no artigo 3.º, n.º 1, do Regime da CESE (aprovado pelo artigo 228.º da Lei 83.º-C/2013, de 31 de dezembro), ao ser interpretada no sentido de prever que este tributo incide sobre os elementos do ativo dos respetivos sujeitos passivos, será inconstitucional por violação do princípio da tributação pelo lucro real, ínsito no artigo 104.º, n.º 2, da CRP.
W. Sem prejuízo, mesmo que assim não se considere em relação à qualificação jurídico-tributária da CESE enquanto contribuição especial, existem outros vícios de desconformidade constitucional totalmente independentes daquela qualificação, porquanto se relacionam com a violação de princípios constitucionais gerais.
X. A violação do caráter “extraordinário” da CESE, tal como consagrado nos termos do artigo 1.º do Regime da CESE, associada à eliminação da isenção que se encontrava prevista para a produção de eletricidade por intermédio de centros electroprodutores que utilizem fontes de energia renováveis e que estava em vigor há cinco anos, tendo por base a abrangência de regimes de remuneração garantida, degenera num vício de inconstitucionalidade material, por violação do Princípio da Segurança Jurídica, na sua vertente enquanto Proteção da Confiança, tal como decorre do disposto no artigo 2.º da CRP.
Y. Ou seja, a norma prevista no artigo 376.º, n.º 1, da LOE 2020, interpretada no sentido de manter em vigor, para o ano de 2020, a CESE, violando o seu caráter “extraordinário”, tal como consagrado nos termos do artigo 1.º do Regime da CESE, será inconstitucional por violação do Princípio da Segurança Jurídica, na sua vertente enquanto Proteção da Confiança, tal como decorre do disposto no artigo 2.º da CRP.
Z. Ademais, a norma prevista no artigo 313.º, n.º 2, da LOE 2019, que alterou a alínea a) do artigo 4.º do Regime da CESE, interpretada no sentido de eliminar a isenção que se encontrava prevista para a produção de eletricidade por intermédio de centros electroprodutores que utilizem fontes de energia renováveis e que estava em vigor há cinco anos, tendo por base a abrangência de regimes de remuneração garantida, será inconstitucional por violação do Princípio da Segurança Jurídica, na sua vertente enquanto Proteção da Confiança, tal como decorre do disposto no artigo 2.º da CRP.
AA. Ao mesmo tempo, a circunstância de os sujeitos passivos, que sejam titulares de centros electroprodutores com recurso a fonte renovável, deverem financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético, viola o princípio da proporcionalidade, inscrito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, mormente nas suas vertentes enquanto necessidade e proibição do excesso.
BB. E tal sucede, no essencial, porquanto, para o mesmo conjunto de finalidades almejado pelo regime da CESE, as entidades até 2019 isentas já haviam oferecido o seu contributo, sem que qualquer outro houvesse por que considerar-se exigível.
CC. Decorre do exposto que a norma prevista no artigo 1.º, n.º 2, do Regime da CESE, conjugada com o artigo 2.º, alínea b) do mesmo regime, interpretada no sentido de que os sujeitos passivos, que sejam titulares de centros electroprodutores com recurso a fonte renovável, devem financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético, será inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade, inscrito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, mormente nas suas vertentes enquanto necessidade e proibição do excesso.
DD. Por último, e à luz do disposto no artigo 16.º, n.º 3, da LEO, o disposto no artigo 11.º, n.º 1, do regime que cria a CESE padece de uma inconstitucionalidade indireta, na medida em que, ao estabelecer a consignação das receitas da CESE, não consagrou ou reconheceu, como era devido, o seu caráter excecional e temporário – acabando, assim, por colidir com o disposto no artigo por violação do artigo 112.º, n.º 3 da CRP.
EE. Assim sendo, a norma prevista no artigo 11.º, n.º 1, do Regime da CESE, conjugada com o artigo 376.º, n.º 1, da LOE 2020, que mantém em vigor a CESE para o ano de 2020 e a previsão da consignação da receita obtida com este tributo ao FSSSE, pelo sétimo ano consecutivo, viola o artigo 16.º, n.º 3, da Lei n.º 151/2015, de 11 de setembro (Lei de Enquadramento Orçamental), pelo que será indiretamente inconstitucional, por violação do artigo 112.º, n.º 3 da CRP.

Termos em que, com o devido suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e condenando-se a Recorrida, AT, nos termos peticionados na p.i..
Mais se requer a V. Exas. a dispensa do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 7 do RCP. »

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Não aconteceu a formalização de contra-alegações.

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O Exmo. Procurador-geral-adjunto emitiu parecer, no sentido, em conclusão, de que “deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se, na íntegra, a douta sentença recorrida”.

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2

Na sentença recorrida, expressou-se: «


Compulsados os autos, com relevância para a decisão a proferir, dão-se como provados os seguintes factos:

1. As Impugnantes são sociedades de direito português que detêm centros electroprodutores, com recurso a fontes de energia renovável, enquadráveis, por via das alterações introduzidas pela Lei nº 71/2018, de 31 de dezembro, LOE de 2019, no regime da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE), factualidade confessada pelas Partes, conforme artigos 31 a 34º da petição inicial e 10º e 13º , da contestação, resultando também dos demais elementos dos autos, entenda-se processo virtual, consultável via SITAF, sendo atinentes ao processo virtual as demais referências infra mencionadas;
2. Nessa conformidade efetuaram a autoliquidação da CESE relativa ao exercício de 2020, autoliquidações que vieram a questionar, com argumentação similar à apresentada nestes autos, através de Reclamações Graciosas, as quais, depois de ter sido dado a conhecer às Impugnantes projeto de indeferimento, dado o silêncio destas, a Autoridade Tributária converteu em despacho de indeferimento, em 12-12-2022, comunicados às Impugnantes, através de ofícios datados de 15-12-2022, vide os docs. instrutores da petição inicial;
3. Inconformadas com o indeferimento das Reclamações Graciosas as Impugnante apresentaram, em 20-03-2023, a petição inicial que originou os presentes autos, cfr. págs. 1 a 3. »

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As questões suscitadas neste apelo, concretizadas na síntese das conclusões inicialmente reproduzidas, foram versadas, entre outros (Cf., v.g., acórdão, do STA, de 11 de outubro de 2023, processo n.º 1074/22.9BEPRT; disponível em www.dgsi.pt), no acórdão, do STA, de 5 de julho de 2023, processo n.º 765/22.9BEBRG.

Em função deste antecedente, visto, depois, com força legiferante transversal, o estatuído no artigo (art.) 8.º n.° 3 do Código Civil (CC) e usando da faculdade concedida pela 2.ª parte do n.° 5 do art. 663.° do Código de Processo Civil (CPC), ex vi do art. 281.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), porque concordamos, na íntegra, com o que, ali, ficou decidido e respetiva motivação, remetemos para a fundamentação jurídica, adotada no aresto identificado, em apoio da decisão sequente.


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3

Face ao exposto, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, concordamos negar provimento ao recurso.


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Custas pelas recorrentes, em partes iguais, dispensando-se, o pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte que excede € 275.000,00, considerado, sobretudo, o cariz remissivo desta decisão colegial.

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Não procedemos à junção de cópia do acórdão remetido, porque, além do mais, se encontra disponível no sítio www.dgsi.pt (com acesso livre).

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[texto redigido em meio informático e revisto]



Lisboa, 3 de julho de 2024. – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz (relator) – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos – Joaquim Manuel Charneca Condesso.