Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0770/14.9BELRS
Data do Acordão:06/09/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANIBAL FERRAZ
Descritores:IRS
MAIS VALIAS
REGIME TRANSITÓRIO
Sumário:À luz do disposto no artigo 5.º do Dec. Lei n.º 442-A/88 não são tributados, em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), os ganhos obtidos com a transmissão onerosa de prédio urbano, adquirido como rústico antes da entrada em vigor do Código do IRS e que ainda conservava essa natureza aquando do início da sua vigência (1 de janeiro de 1989), pese embora tenha, posteriormente, adquirido a natureza de urbano (terreno para construção) e sido alienado como tal.
Nº Convencional:JSTA000P27817
Nº do Documento:SA2202106090770/14
Data de Entrada:04/12/2021
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A……………..
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam do Supremo Tribunal Administrativo (STA), com sede em Lisboa;
# I.

A representação da Fazenda Pública (rFP) recorre da sentença, proferida no Tribunal Tributário (TT) de Lisboa, datada de 21 de dezembro de 2020, que julgou procedente impugnação judicial, deduzida contra ato de liquidação, adicional, de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), respeitante ao ano de 2009, no valor total de € 80.039,87 (mediante acerto de contas), apresentada por A………, …
A recorrente (rte) produziu alegação, finalizada com as seguintes conclusões: «

i. Não obstante a vocação de tributação de toda e qualquer mais-valia imobiliária prevista no CIRS, cumpre ter presente o regime transitório estabelecido pelo art.° 5°, do DL n.° 442-A/88, de 30 de Novembro, que aprovou o CIRS, segundo o qual, os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, segundo o Código do Imposto sobre as Mais-Valias (CIMV), aprovado pelo D.L n.° 46 673, de 9 de Junho de 1965, só ficam sujeitos a IRS se a aquisição dos bens tiver sido efetuada depois da entrada em vigor deste Código.

ii. Afigura-se, salvo o devido respeito por outro entendimento, que o regime transitório previsto no art.° 5° do DL 442-A/88, relativo aos prédios adquiridos antes da entrada em vigor do CIRS, procurou, por um lado, assegurar a continuidade da tributação dos ganhos que, à luz do anterior regime do CIMV, a ela se encontravam sujeitos, nomeadamente os ganhos resultantes da alienação de terrenos para construção, na aceção que lhe era dada pelo §2 do art.° 1° do CIMV.

iii. Por outro, pretendeu consagrar a não tributação das mais-valias não sujeitas a tributação, como sejam as provenientes da alienação de prédios rústicos e de prédios urbanos, que mantivessem essa mesma natureza no momento da sua alienação.

iv. E para estes efeitos, o momento relevante para aferir da sujeição, ou não, a tributação é o momento em que se verificam os ganhos da realização da mais-valia.

v. Ou seja, o que releva é o momento em que se opera a transmissão do terreno para construção.

vi. Nesta perspetiva, não se pode acompanhar o entendimento que tem vindo a ser acolhido pela jurisprudência, no sentido de considerar que o momento central para efeitos de aferir da sujeição, é o momento em que entrou em vigor o CIRS.

vii. E não se pode acompanhar, uma vez que o art.° 5° do DL 442-A/88 faz menção expressa aos ganhos que não eram sujeitos.

viii. Ganhos estes que apenas se verificam no concreto momento em que ocorre o facto gerador dos referidos ganhos, isto é, a transmissão do imóvel.
ix. Acresce ainda que, se o imposto incide sobre o ganho resultante da venda, parece-nos inequívoco que a disposição do nº 1 do art.º 5º do Dec-Lei nº 442-A/88 não constitui ela própria uma norma de incidência, tão só um preceito legal destinado a afastar da sujeição a imposto as vendas de imóveis adquiridos (urbanos ou rústicos) antes da entrada em vigor do CIRS, tanto mais que, relativamente aos terrenos para construção, em ambos os regimes, antes e após 1898, a mais-valia resultante da sua alienação sempre foi tributada.

x. Ora, é facto provado nos autos que os prédios, cuja alienação gerou mais-valia, não permaneceram no estado em que foram adquiridos pela impugnante em 1981.

xi. De facto, com a operação de loteamento em 2000, os prédios passaram a estar classificados como terrenos para construção, tendo sido nesta qualidade que foram alienados em 2009, conforme resulta da escritura de compra e venda junta aos autos.

xii. E, portanto, quando o contribuinte altera a natureza do prédio para terreno para construção, juridicamente, queira-se ou não, constitui-se algo de novo.

xiii. E, no tocante à incidência real, quer pelo Código das Mais Valias (antes de 1989) que pelo CIRS, sempre se tributaram os ganhos provenientes da alienação de terrenos para construção, consequentemente, e aceitando-se a ótica da AT, sempre será de concluir pela inexistência de qualquer aplicação retroativa da norma de incidência.

xiv. Assim, nestas situações e no caso concreto, o momento relevante para aferir da natureza do bem transmitido deve ser o da sua alienação, e consequentemente a obtenção do ganho com a sua venda. É este ganho que constitui uma mais-valia e, nessa medida, objeto de tributação em IRS.

xv. Não havendo que apelar, nesta situação, ao momento da aquisição, porquanto já na vigência do CIRS se operou a alteração do estatuto jurídico fiscal dos prédios rústicos para terreno para construção, cujo efeito constitutivo nos deverá levar a concluir que já não estamos perante o mesmo prédio que foi alvo de aquisição, e cujo rendimento obtido com a sua alienação deveria impor a sua tributação.

xvi. A sentença recorrida não fez correta apreciação da matéria de direito, ao menosprezar a relevância da alteração da natureza do prédio objeto de alienação, concluindo que o mesmo foi adquirido em momento anterior à entrada em vigor do CIRS, julgando os rendimentos excluídos de tributação, nos termos do disposto no art. 5º, nº 1 do DL 442-A/88 de 30 de Novembro.


Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que julgue a impugnação judicial totalmente improcedente.
PORÉM V. EX.AS DECIDINDO FARÃO
A COSTUMADA JUSTIÇA »

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A recorrida (rda) formalizou contra-alegações e concluiu: «


1.ª - As Alegações de Recurso apresentadas pela Recorrente/F.P. não passam de uma espécie de muro das lamentações, só porque o tribunal “a quo” proferiu uma Sentença bem fundamentada de facto e de direito, a qual, por isso, não foi ao encontro dos seus interesses.
2.ª - E vai daí aqui d’El Rei que a douta Sentença recorrida julgou mal e imerecidamente contra os interesses da F.P., a qual tem uma teoria sobre a aplicação de determinado preceito legal, que o tribunal devia ter acolhido, embora seja, como manifestamente reconhece, uma visão que mais ninguém tem e que nem sequer resulta da lei, obviamente.
3.ª - Por isso bem andou a douta Sentença recorrida ao anular irremediavelmente a liquidação tributária impugnada.
4.ª - Daí que o presente Recurso esteja claramente votado ao insucesso.

Assim, nestes termos,
e nos demais de direito que V.ªs Ex.ªs doutamente suprirão, deverá o presente Recurso ser considerado improcedente e não provado, mantendo-se, consequentemente, a Sentença Recorrida em vigor e nos seus precisos termos. »

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O Exmo. Procurador-geral-adjunto emitiu parecer, concluindo, com suporte em jurisprudência reiterada do STA, no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso e mantida, integralmente, a sentença recorrida.

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Cumpridas as formalidades legais, compete conhecer e decidir.

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# II.


Na sentença recorrida, em sede de julgamento factual, encontra-se exarado: «

Compulsados os autos e analisada a prova produzida, com relevância para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

1) Em 24-02-1981, foi outorgado um documento com o seguinte teor, por extrato:


«Venda que fazem [...] e mulher [...] a …………. e outros.
No dia vinte e quatro de Fevereiro de mil novecentos e oitenta e um [...] perante mim [...] notário [...] compareceram:
Primeiro: [...] casado no regime de comunhão geral de bens com [...]
Segundo-a)- …….. [...] casado no regime da comunhão geral com D. …….. [...]
b)- A……………. [...]
e c)-B………….. [...]
Disseram:- Que, os segundos outorgantes e na proporção de Metade para o mencionado na alínea a) e de um/quarto para cada um dos mencionados nas alíneas b) e c), compram e o primeiro por si e dita qualidade vende, livre de encargos, Um prédio rústico com a área de cinco mil e doze metros quadrados, designado pelo numero quarenta e seis, destinado a fins hortícolas, sito em ………., ………., ……….., freguesia de Odivelas, concelho de Loures, descrito sob o numero vinte e sete mil trezentos e sessenta e dois, do livro B setenta e sete da Conservatória do Registo Predial de Loures onde a transmissão a favor dos vendedores se acha registada pela inscrição numero quarenta e seis mil quatrocentos e cinquenta e quatro, do livro G setenta, conforme consta de fotocopia dali emanada em 11 do corrente, que me exibiram, e está compreendido no prédio rústico inscrito na matriz cadastral, sob o artigo …….., secção ….., estando o dito prédio rústico sujeito a discriminação nos termos do artigo cinquenta e quatro, do Codigo da Sisa, como consta do conhecimento de sisa que adiante se menciona; [...]»
(cf. escritura a págs. 33 a 35 do ficheiro a fls. 1 a 40 do SITAF);

2) Em 31-01-2000, foi emitido o alvará de loteamento do prédio inscrito na matriz cadastral rústica da freguesia de Odivelas sob o ……., secção …., identificado em 1) (facto não controvertido e cf. certidão a fls. 131 a 163 e alvará a fls. 182 a 243 do PA apenso aos autos);
3) Em 23-05-2001, foi registada na Conservatória do Registo Predial de Odivelas a aquisição pela Impugnante e B…………. dos lotes n.ºs 54, 58, 59, 60, 61, 62, 63 e 64, por divisão de coisa comum, inscritos na respetiva matriz predial da freguesia da Ramada como terrenos para construção sob os artigos n.ºs….., ….., ……, ….., ……., ….., ….. e ….. (facto não controvertido, cf. artigo 21.º da PI, RIT a fls. 119 a 124 e certidão a fls. 131 a 163 do PA apenso aos autos);
4) Em 25-05-2009, foi outorgado um documento com o seguinte teor, por extrato:

«No dia vinte e cinco de Maio de dois mil e nove, em Lisboa [...] perante mim, o Notário [...] compareceram como outorgantes:
B……………… [...] e A…………… [...] outorgando ambos POR SI e ele ainda na qualidade de gerente e em representação da sociedade comercial por quotas [...]
Pelos outorgantes, POR SI, foi dito:
Que, pela presente escritura e pelo preço total de NOVECENTOS MIL EUROS, que já receberam da dita sociedade [...] a esta vendem, livres de ónus ou encargos, os seguintes bens:
-1:- [...] o prédio urbano constituído por um lote de terreno para construção [...] inscrito na respectiva matriz sob o artigo número …… [...]
-2:- o prédio urbano constituído por um lote de terreno para construção [...] inscrito na respectiva matriz sob o artigo número ……
-3:- [...] o prédio urbano constituído por um lote de terreno para construção [...] inscrito na respectiva matriz sob o artigo número …... [...]
-4:- [...] o prédio urbano constituído por um lote de terreno para construção [...] inscrito na respectiva matriz sob o artigo número …… [...]
-5:- [...] o prédio urbano constituído por um lote de terreno para construção [...] inscrito na respectiva matriz sob o artigo número …… [...]
-6:- [...] o prédio urbano constituído por um lote de terreno para construção [...] inscrito na respectiva matriz sob o artigo número …… [...]
-7:- [...] o prédio urbano constituído por um lote de terreno para construção [...] inscrito na respectiva matriz sob o artigo número …… [...]
-8:- [...] o prédio urbano constituído por um lote de terreno para construção [...] inscrito na respectiva matriz sob o artigo número …… [...]
Que sobre estes prédios incide o alvará de loteamento número um/dois mil, de trinta e um de Janeiro, registado pela apresentação quatro, de dezasseis de Junho de dois mil, da citada Conservatória.
Pelo outorgante varão, na qualidade em que figura, foi dito:
Que, para a sociedade sua representada, aceita o presente contrato nos termos exarados e que os referidos lotes se destinam a revenda. [...]»
(cf. escritura a págs. 25 a 32 do ficheiro a fls. 1 a 40 do SITAF);

5) Em 18-11-2013, os serviços da AT emitiram em nome da Impugnante a liquidação de IRS do ano de 2009 n.º 2013 5005523689 com valor a pagar de € 89.570,50 (cf. liquidação a págs. 24 do ficheiro a fls. 1 a 40 do SITAF);
6) Em 22-11-2013, os serviços da AT emitiram em nome da Impugnante a demonstração de acerto de contas relativa à liquidação de IRS do ano de 2009 n.º 2013 5005523689, com valor a pagar de € 80.039,87 (cf. demonstração a págs. 19 do ficheiro a fls. 1 a 40 do SITAF);
7) Em 04-04-2014, deram entrada os presentes autos neste Tribunal (cf. registo do SITAF). »

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A sentença recorrida, julgou procedente esta impugnação judicial, no pressuposto de que “no caso em apreço, …, resulta demonstrado nos autos que a Impugnante, em 24-02-1981, antes, portanto, da entrada em vigor do CIRS, adquiriu 1/4 de um terreno rústico, sendo igualmente certo que apenas com a emissão do alvará de loteamento, este sim, após a entrada em vigor do CIRS, o terreno rústico deu origem aos 8 lotes de terreno para construção cuja realização deu origem à liquidação em crise. Decorre, portanto, do exposto, ser aplicável no caso dos autos o regime transitório previsto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, (…).”. Mais, se acoitou em jurisprudência, reiterada e uniforme, do STA, afirmativa de que “à luz do disposto no artigo 5.º do Dec. Lei n.º 442-A/88 não são tributados em sede de IRS os ganhos obtidos com a transmissão onerosa de prédio urbano adquirido como rústico antes da entrada em vigor do Código do IRS e que ainda conservava essa natureza no momento da entrada em vigor deste Código, pese embora tenha, posteriormente, adquirido a natureza de urbano (terreno para construção) e sido alienado como tal.”.
A rte, apontando não desconhecer esta jurisprudência, sustenta que não a pode acompanhar, desenvolvendo, sobretudo, uma tese em torno do que identifica como “o momento relevante para aferir da sujeição, ou não, a tributação” - conclusão iv.
Ora, ponderados os argumentos que colige, não encontramos substrato suficiente para defender uma inflexão no que, sobre a matéria em apreço, tem sido entendido e julgado, sem brechas, por este Supremo Tribunal, pelo que, reiteramos pronúncia no sentido de que “para saber se se verificam os pressupostos da tributação, releva a qualidade que o bem detinha no momento da entrada em vigor do CIRS, (…).
Daí que, para o efeito de que nos ocupamos, não se possa relevar a eventual qualidade do prédio como terreno para construção na data da alienação, pois tal qualidade foi adquirida em momento ulterior ao da entrada em vigor do CIRS. (…).
…, o prédio em causa era, à data da entrada em vigor do CIRS - 1 de Janeiro de 1989 - um prédio rústico, tendo sido adquirido também nessa qualidade, antes da vigência do referido diploma legal, em 1979. Independentemente, pois, de posteriormente ter ocorrido algum facto modificativo do conteúdo do respectivo direito de propriedade (designadamente por via do pedido de loteamento, em 1994), se não estavam, na vigência do abolido IMV, sujeitos a esse tributo os ganhos resultantes da sua transmissão, afastados estão, também, da sujeição a IRS, porque abrangidos no regime transitório previsto no n.º 1 do art. 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 na redacção do Decreto-Lei n.º 141/92, de 17 de Junho” - cf. acórdão, do STA, de 20 de maio de 2015 (0149/15).

Antes de decidir, um breve apontamento para referenciar que, visto a rte ter ido colher apoio para o seu entendimento, também, no acórdão, do TCAN, de 13 de março de 2006 (984/04 - Viseu) ( Ponto 5. das alegações.) [dando-se a coincidência de o relator deste ser, também, responsável pela elaboração do presente aresto], além de, à data, não existir, ainda, jurisprudência firmada do STA, a, ressuscitada, pronúncia do TCAN, fundou-se num específico cenário factual, sintetizado nos pontos 11. a 13. do respetivo sumário (disponível em www.dgsi.pt), que o coletivo, então, julgou acertado valorar, no sentido de que permitia “assumir a ocorrência de indícios seguros e relevantes de que, no momento da transmissão em apreço, o propósito, por parte dos intervenientes no negócio, era de afectar o terreno integrante de tal prédio à construção urbana, particularmente, comercial e/ou industrial.”.
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# III.


Pelo expendido, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, acordamos negar provimento ao recurso.

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Custas pela recorrente.

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[texto redigido em meio informático e revisto]

Lisboa, 9 de junho de 2021


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Pelos Exmos. Senhores Conselheiros Pedro Nuno Pinto Vergueiro (intervindo em substituição legal) e Francisco António Pedrosa de Areal Rothes, na condição de adjuntos, foi transmitido, enquanto relator, a mim, Aníbal Augusto Ruivo Ferraz, voto de conformidade, com os fundamentos e a decisão supra - artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março.

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