Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02364/18.0BELSB
Data do Acordão:11/05/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:PEDIDO
PROTECÇÃO INTERNACIONAL
ADMISSIBILIDADE
Sumário:I – Cada pedido de protecção internacional deve ser apreciado tendo em consideração a situação e as circunstâncias pessoais específicas do requerente e no estrito cumprimento da disciplina jurídica existente e vigente.
II – A constatação da existência de falhas sistémicas num determinado país de acolhimento não é necessariamente sinónimo de que os requerentes de protecção internacional vão ser sujeitos a tratamentos desumanos e degradantes nesse país.
Nº Convencional:JSTA000P26705
Nº do Documento:SA12020110502364/18
Data de Entrada:10/02/2020
Recorrente:MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Recorrido 1:A..........
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – RELATÓRIO

1. Ministério da Administração Interna (MAI), devidamente identificado nos autos, recorre para este Supremo Tribunal do acórdão do TCAS, de 14.05.2020, que julgou o recurso por si intentado improcedente e confirmou a sentença recorrida, embora com distinta fundamentação. A decisão foi acompanhada pelos dois desembargadores adjuntos que, todavia, apresentaram declaração de voto, ambas no sentido de não subscreverem a fundamentação do acórdão na parte em que se refere à existência de falhas sistémicas em Itália.

Na origem do recurso interposto para o TCAS esteve uma decisão do TAC de Lisboa, de 22.03.2019, que julgou procedente a acção administrativa intentada contra o Ministério da Administração Interna (MAI) por A………. e, em consequência: “I. Anul[o]u a decisão do Senhor Director Nacional Adjunto do SEF, de 27 de Novembro de 2018, que considerou inadmissível o pedido de protecção internacional formulado pelo A., determinando a sua transferência para Itália; II. Conden[o]u a Entidade Demandada a proferir nova decisão, depois de instruir o procedimento nos termos supra expostos”.

Na presente acção administrativa, o A., A………., com os sinais nos autos, veio impugnar o despacho do Director Nacional Adjunto do SEF, de 27.11.2018, que considerou inadmissível a concessão de protecção internacional que requerera, tanto no que se refere ao pedido de asilo, como no que respeita ao pedido de autorização de residência por razões humanitárias, e determinou a sua transferência para Itália.

2. Inconformado, o R., ora recorrente, apresentou alegações, concluindo do seguinte modo (cfr. fls. 372-87 – paginação SITAF):

1ª - Resulta evidente que o Tribunal ad quo na sua ponderação e julgamento do caso sub judice, e refutando a decisão do recorrente, não deu cumprimento às normas legais vigentes em matéria de asilo, mormente no que respeita ao mecanismo da Retoma a Cargo, ao qual a Itália está vinculada;

2ª- Revela-se, pois, imprescindível a admissão do presente Recurso de Revista atenta a clara necessidade de melhor aplicação do Direito, face ao entendimento sustentado nos vereditos a quo;

3ª - É evidente que o Acórdão escrutinado na sua ponderação e julgamento do caso sub judice, e refutando a decisão do recorrente, não deu cumprimento às normas legais e não se coaduna com as normas legais vigentes em matéria de asilo acima referenciadas;

4ª - Está in casu em causa o abalo na confiança jurídica, corolário do princípio da certeza e segurança que se impõe a um Estado de direito, também, e sobretudo, na aplicação da justiça, como outrossim e diretamente, o princípio da legalidade;

5ª - Verifica-se, assim, que a Entidade Demandada observou as exigências previstas no artigo 5º do Regulamento supra mencionado, tendo realizado, antes da decisão que determinou a transferência, uma entrevista pessoal com o requerente, ora Autor e, bem assim, elaborado um resumo escrito, através de relatório/formulário, do qual constam as principais informações facultadas pelo requerente e facultada ao requerente a possibilidade de pronúncia quanto à eventual decisão de tomada a cargo a proferir pelo Estado onde o pedido foi apresentado, bem como alegar elementos suscetíveis de afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade e, consequentemente, a sua transferência para Itália.

6ª - O ora recorrido nada referiu quanto à falta de acolhimento ou que esta se traduziria numa falta de respeito pelos seus direitos, decorrendo das suas declarações que não são as condições de acolhimento que estiveram na origem da sua saída do território italiano, não fazendo qualquer alusão a riscos efetivos ou potenciais do seu receio de regressar a Itália;

7ª - Apenas referiu que quando esteve em Itália não foi vítima de maus tratos ou de outras medidas persecutórias, Deixou Itália para ir para a Alemanha, onde esteve sete meses, e depois decidiu vir para um país onde tivesse paz e veio para Portugal, não referindo que durante o período em que esteve naqueles países, mormente em Itália, tivesse sofrido qualquer situação de ofensa aos seus direitos fundamentais ou tivesse sido alvo de tratamento desumano ou degradante na aceção do Artigo 4.º da CDFUE;

8ª - Compulsados os autos, verifica-se que não foi feita uma alegação concreta, densa e particularmente grave pelo Recorrido para que se possa concluir pela aplicação da “cláusula de salvaguarda”, previsto no art.º 3º, 2º parágrafo do nº 2, do Regulamento Dublin ou para imposição à Entidade Administrativa da promoção de diligências instrutórias;

9ª - Assim sendo, não se vislumbra, por força das declarações do próprio Recorrido, que a Entidade Demandada omitiu qualquer dever instrutório, isto é, que devesse ter averiguado outros factos que se revelassem adequados e necessários à tomada de decisão, antes de ditar a transferência do A. para Itália;

10ª - Contrariamente ao que o douto acórdão refere, ao ora recorrente outra solução não restava que não fosse propalar a competente decisão de inadmissibilidade e de transferência, a qual não padece de qualquer vício de facto ou de direito;

11ª - No âmbito do Procedimento Especial previsto no Capítulo IV da Lei de Asilo (artigos 36.º a 40.º) relativo à determinação do Estado-membro responsável pela análise o pedido, na medida em que não se vai analisar o mérito do pedido nem os fundamentos em que se baseiam a pretensão do requerente, não se impõe à Administração que adotasse quaisquer outras diligências de prova ou de instrução do pedido, ao contrario do invocado pelo douto acórdão ora recorrido;

12º - Idêntico entendimento foi sufragado em diversos Acórdãos do TCAS (processos nºs 1353/18.0BELSB, 1740/18.3BELSB, 559/19.9BELSB, 743/19.5BELSB, 1069/19.0BESNT, 1258/19.7BELSB, 1361/19.3BELSB, 2195/19.0BELSB, 2206/19.0BELSB, 2368/19.6BELSB, entre outros);

13ª - Acresce também o Acórdão proferido pelo STA aos 16/01/2020, no Proc. 2240/18.7BELSB bem como Acórdão de 23 de abril, proferido no âmbito do Processo 916/19.0BELSB. Assim como decorre do comunicado de imprensa n.º 33/19 do Tribunal de Justiça da União Europeia, Luxemburgo, de 19 de março de 2019;

14ª - No âmbito do Regulamento (UE) nº 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26/06, o intercâmbio dos dados pessoais dos requerentes, efetuado antes da sua transferência, incluindo os dados sensíveis em matéria de saúde, garantirá que as autoridades competentes estão em condições de prestar aos requerentes a assistência adequada e de assegurar a continuidade da proteção e dos direitos que lhes foram conferidos.

15ª - Neste contexto, o Acórdão recorrido carece de legalidade, porquanto, conforme precedentemente explanado, no estrito cumprimento do estatuto pela lei nacional da União Europeia sobre a matéria, se lhe impunha considerar impoluto o ato do ora Recorrente;

16ª - Ao invés, assim não atuou, razão pela qual ora se pugna pela revogação do douto Acórdão, atenta a correta interpretação e aplicação da Lei”.

3. O A., ora recorrido, apresentou contra-alegações que concluiu do seguinte modo:

I) O Tribunal a quo condenou o Recorrente a reconstruir o procedimento e, considerando a informação junta aos autos (e se for o caso, instruindo-o com outros elementos informáticos fidedignos atualizados, que repute de relevantes, sobre o procedimento de asilo italiano e as condições de acolhimento dos requerentes), proceder a nova entrevista do requerente tendo em vista averiguar se a transferência para a República Italiana não implicará, tendo em conta as doenças do Requerente e os motivos pelos quais alega ter sido perseguido, um tratamento desumano e degradante na aceção do art.º 4º da Carta, (in)suficiente para aplicação do critério previsto no n.º 2 do art.º 3.º do Regulamento.

II) O Recorrente não elaborou um relatório, de modo a que, se o tivesse dado a conhecer ao Recorrido, pudesse conferir a possibilidade de se pronunciar sobre o mesmo, designadamente para relatar a degradação do sistema italiano, o que se agravou com a pandemia, como facto notório que é.

III) Na verdade, não se trata de uma questão que revista importância fundamental para uma melhor aplicação do direito.

IV) A tentativa manifestamente redutora, de pretender designar a retoma a cargo como um acto vinculado, mais não é que a manifestação flagrante do comportamento persistente do Recorrente na violação de direitos fundamentais.

V) A este propósito, e como explicita o TJUE, “O artigo 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que: -mesmo não havendo razões sérias para crer na existência de falhas sistémicas no Estado-Membro responsável pela análise do pedido de asilo, a transferência de um requerente de asilo no âmbito do Regulamento nº 604/2013 só pode ser feita em condições que excluam que essa transferência implique um risco real e comprovado de o interessado sofrer tratos desumanos ou degradantes, na aceção desse artigo (…)”. – cfr. acórdão do Tribunal de Justiça de 16/02/2017, proferido no proc. Nº C-578/16 PPU (disponível em www.curia.europa.eu).

VI) É um facto saliente, a forma orientada e parcial de como o Recorrente procede à entrevista dos requerentes de asilo.

VII) Cortando-se a possibilidade do Recorrente poder contradizer uma proposta /relatório/informação que se apresente como o possível desfecho do procedimento, é impedir o requerente de asilo, agora recorrente, de poder influenciar qualquer tomada de decisão.

VIII) O Recorrido padece efectivamente de problemas de saúde, que as autoridades italianas competentes não estão em condições de prestar ao requerente, ainda para mais em plena pandemia, ficando muito aquém qualquer tipo de assistência adequada (caso existisse alguma) e de assegurar a continuidade da proteção e dos direitos que lhe deverão ser conferidos”.

4. Por acórdão deste Supremo Tribunal [na sua formação de apreciação preliminar prevista no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA], de 10.09.2020, veio a ser admitida a revista, na parte que agora mais interessa, nos seguintes termos:

“(…)

O autor e aqui recorrido impugnou «in judicio» o acto do SEF que considerou inadmissível o seu pedido de protecção internacional e determinou a sua transferência para Itália – onde anteriormente formulara um pedido idêntico. Disse, «in initio litis», que o acto é ilegal por preterição da audiência prévia (omissão do relatório previsto no art. 17.º da Lei do Asilo) e por défice de instrução (falta de averiguação, pelo SEF, das «falhas sistémicas» existentes nos procedimentos de asilo italianos).

O TAC anulou o acto por considerar verificados aqueles dois vícios – determinando que o SEF examinasse essas «falhas» e cumprisse aquele art. 17º.

Embora dissesse que confirmava a sentença, o TCA alterou-a substancialmente, mesmo no plano decisório. Quanto a audiência prévia, entendeu que ela fora preterida – mas não por violação do art. 17º da Lei do Asilo. Quanto às falhas sistémicas, disse já, afoitamente, que elas existem em Itália; de modo que o acto não incorrera num mero défice de instrução, o que seria um vício apenas formal, mas integrara um genuíno vício de fundo – razão por que o aresto terminou pela condenação do MAI (ou do SEF) a admitir o pedido de asilo dos autos.

Na sua revista, e para além de reiterar a legalidade do acto, o MAI assinala a importância da temática sob discussão.

E salta imediatamente à vista que o problema das «falhas sistémicas» em Itália justifica que recebamos o recurso. «Primo», porque a afirmação do TCA, tomando tais «falhas» como inequívocas e certas, e altamente controversa tendo em conta a realidade das coisas e a jurisprudência do Supremo na matéria. «Secundo», porque tal posição do TCA e indutora de relevantíssimas consequências, jurídicas e práticas, no futuro.

É, pois, imperioso transferir a resolução do caso para o Supremo, a fim de garantir uma melhor aplicação do direito e de salvaguardar diversos interesses relevantes ligados a temática dos refugiados”.

5. A Digna Magistrada do Ministério Público, notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser concedida a revista, com a consequente alteração da decisão recorrida.

6. Com dispensa de vistos prévios, por se tratar de processo de natureza urgente (art. 36.º, n.º 2, do CPTA), vêm os autos à conferência para decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. De facto:


Vem dada como provada a seguinte factualidade:

1. A 15 de Maio de 2017, o A. pediu asilo e as suas impressões digitais foram registadas no sistema EURODAC, em Bari, Itália, sob a referência IT2BA01UUZ;

Cf. fingerprint form do EURODAC de fls. 3 do p.a.1 e questionário preliminar de fls. 6 do p.a.

2. Em 20 de Julho de 2017, o A. pediu asilo e as suas impressões digitais foram registadas no sistema EURODAC, em Treviso, Itália, sob a referência IT1TV03DEN;

Cf. fingerprint form do EURODAC de fls. 4 do p.a. e questionário preliminar de fls. 6 do p.a.

3. No dia 15 de Abril de 2018, o A. pediu asilo e as suas impressões digitais foram registadas no sistema EURODAC, em Nuremberga, Alemanha, sob a referência DE1180415XXX00039;

Cf. fingerprint form do EURODAC de fls. 5 do p.a. e questionário preliminar de fls. 6 do p.a.

4. O A. apresentou pedido de protecção internacional junto dos serviços do GAR do SEF, em Lisboa, no dia 3 de Outubro de 2018, declarando ser A………., ser nacional da Serra Leoa, ter nascido a 16 de Março de 1998 em Freetown, e ter pedido asilo antes em Itália e Alemanha;

Cf. declaração comprovativa de apresentação do pedido de protecção internacional de fls. 26 do p.a., o formulário/capa, o fingerprint form do EURODAC de fls. 1 e 2 do p.a. e o questionário de fls. 6 e ss. também do p.a.

5. Aquando do pedido formulado em Portugal, foram recolhidas as impressões digitais do A. e registadas na base de dados do sistema EURODAC;

Idem.

6. Os serviços do SEF autuaram o pedido do A. formulado em Portugal como “Processo de Determinação de Responsabilidade do Pedido de Protecção Internacional (Regulamento de Dublin) Retoma a cargo”, atribuindo-lhe o n.º 01925/18;

Cf. capa do processo de fls. 28 do p.a.

7. A 8 de Novembro de 2018, foi remetido pelos serviços do GAR do SEF para as autoridades italianas, por e-mail, um designado pedido de retoma, respeitante ao pedido de protecção internacional do A. formulado em Portugal, onde se invoca a ocorrência registada sob o n.º IT1TV03DEN, e a al. b) do n.º 1 do art. 18.º do Regulamento (UE) n.º 604/2013;

Cf. e-mail de fls. 29 e formulário de fls. 31 e ss do p.a.

8. No ponto 12. do pedido de retoma a cargo aludido no ponto anterior, sobre se o Requerente havia pedido protecção internacional ou reconhecimento de estatuto de refugiado, fez-se consignar que o A., havia formulado pedido, em 10 de Setembro de 2017, em Treviso, Itália, e no ponto 13. do mesmo, respeitante ao abandono do território do Estado-Membro pelo Requerente e sobre as datas desse eventual abandono, não foi consignado nada;

Cf. formulário de fls. 31 e ss do p.a.

9. Em 23 de Novembro de 2018, o A. foi entrevistado, no procedimento em causa, nos serviços do GAR do SEF, tendo previamente sido informado de que nos termos do Regulamento de Dublin, que estabelece os critérios e mecanismo de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de protecção internacional apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de país terceiro ou apátrida, apenas um Estado-Membro é responsável, e que o pedido do A. seria sujeito a um procedimento especial de admissibilidade, e foram comunicados ao A. os objectivos da entrevista;

Cf. auto de entrevista/transcrição a fls. 34 e ss. do p.a.

10. Na entrevista aludida no ponto anterior, o A., perguntado sobre a duração da estadia em cada um dos países onde havia registos no EURODAC, disse, quanto ao registo aludido acima no ponto 2., que a sua estadia havia durado 8 meses, e, quanto ao registo aludido supra no ponto 3., que a sua estadia havia durado 7 meses, e que nos últimos 5 meses havia vivido na Alemanha, e, perguntado sobre se o pedido de asilo anteriormente formulado se encontrava em análise ou havia sido recusado, disse que desconhecia;

Idem.

11. Na mesma entrevista, perguntado sobre se estava de boa saúde, disse que não, perguntado sobre se tinha problemas de saúde, disse que sim, perguntado sobre quais os problemas de saúde, disse que tinha «problemas no coração e no estômago», perguntado sobre se estava medicado, disse estar a tomar «medicamentos para o estômago e o coração», e perguntado sobre o motivo pelo qual solicita protecção internacional, disse, entre o mais, «[e]u sai do meu país por ser homossexual e ter sido agredido com gravidade por essa razão»;

Idem.

12. Findas as declarações, foi, de seguida, elaborado um intitulado Relatório pelo SEF onde se disse «De acordo com as declarações prestadas pelo requerente (…) e de acordo com as informações recolhidas» e se preencheu a quadrícula associada à seguinte situação «Apresentou pedido de proteção noutro país da União Europeia, Itália, (REGULAMENTO (UE) N.º 604/2013 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 26 de junho de 2013 que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida - Artigo 18.º, n.º 1)»

Cf. relatório a fls. 41 e 42 do p.a.

13. Ao A. foi dado conhecimento, no mesmo dia 23 de Novembro de 2018, do Relatório referido no ponto anterior, ao que o mesmo disse: «Eu não quero regressar a Itália»;

Cf. relatório a fls. 41 e 42 do p.a.

14. No dia 26 de Novembro de 2018, os serviços do GAR do SEF remeteram, por e-mail, para as autoridades italianas, comunicação onde se consignou que era feita na sequência da comunicação de 8 de Novembro de 2018, o Estado-Membro deve responder ao pedido em duas semanas, invocou-se o art. 25.º, n.º 1, do Regulamento de Dublin, e concluiu-se que, considerando que não houve resposta das autoridades italianas, Portugal considera que Itália aceitou retomar a cargo o A.;

Cf. e-mail de fls. 46 do pa.

15. A 26 de Novembro de 2018, foi lavrada pelos serviços do SEF, a informação n.º 1612/GAR/2018, sobre o pedido de protecção internacional do A., onde se lê, entre o mais, o seguinte:

«Dos motivos invocados no pedido de transferência

Aos 08-11-2018, o GAR apresentou um pedido de retoma a cargo às autoridades italianas, ao abrigo do artigo 18º, Nº 1 b), do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho.

Consultado o sistema EURODAC, foram detetados dois Hits positivos com os "Case ID ITZBAOlUUZ e IT1TV03DEN ", inseridos pela Itália.

Aos 26-11-2018, Portugal informou as autoridades italianas que ao abrigo do artigo 25º, Nº 1, do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho, tinha duas (2) semanas para se pronunciar sobre o nosso pedido.

As autoridades italianas não se pronunciaram dentro do prazo estabelecido no art.º 25 nº 1, do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho, por isso de acordo com o artigo 25 nº 2 do mesmo Regulamento, a falta de uma decisão equivale à aceitação do pedido.

Pelo exposto, propõe-se que Itália seja considerada o Estado responsável pela retoma a cargo, ao abrigo do artigo 25º, Nº 2 do Regulamento (CE) N.º 604/2013 do Conselho de 26 de junho.»;

Cf. informação de fls. 49 e 50 do p.a.

16. Sobre a informação mencionada e transcrita no ponto anterior, foi redigida, a 27 de Novembro de 2018, proposta, com o seguinte teor: «Com base na presente informação e à consideração superior para decisão, propõe-se que, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1, do artigo 19º - A, da Lei n.º 27/08, de 30 de junho, alterada pela Lei nº 26/2014 de 05 de maio, o pedido de proteção seja considerado inadmissível e se proceda à transferência para a Itália do (a) cidadão (ã) acima identificado (a), nos termos do artigo 25º, Nº 2 do Regulamento (CE) N.º 604/2013 do Conselho, de 26 de junho.»;

Cf. proposta de fls. 49 do p.a.

17. No mesmo dia 27 de Novembro de 2018 foi exarada, no processo de protecção internacional do A., Decisão pelo Director Nacional Adjunto do SEF, onde consta, entre o mais, o seguinte:

«De acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1, do artigo 19º - A e no n.º 2 do artigo 37º, ambos da lei n.º 27/08, de 30 de junho, alterada pela lei nº 26/2014 de 05 de maio, com base na informação n.º 1612/GAR/2018 do Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, considero o pedido de protecção internacional apresentado pelo cidadão que se identificou como A……….., nacional da Serra Leoa, inadmissível.

Proceda-se à notificação do cidadão nos termos do artigo 37º, n.º 3, da Lei n.º 27/08 de 30 de junho, com as alterações introduzidas pela Lei 26/14 de 5 de maio, e à sua transferência, nos termos do artigo 38º do mesmo diploma, para a Itália, Estado Membro responsável pela análise do pedido de protecção internacional nos termos do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho.»;

Cf. decisão de fls. 51 do p.a.

18. A Decisão que se refere e parcialmente se transcreve no ponto anterior foi entregue e dada a conhecer ao A. em 3 de Dezembro de 2018;

Cf. declaração assinada pelo A. de fls. 58 do p.a.

19. No mesmo dia 3 de Dezembro de 2018, foi apresentado pelo A., nos Serviços do ISS, pedido de apoio judiciário;

Cf. e-mail, fax, missiva do CPR e requerimento tudo de fls. 60 e ss. do p.a.

20. A 27 de Dezembro de 2018, deu entrada neste Tribunal a p.i. que originou os presentes autos;

Cf. comprovativo de entrega de fls. 1 dos autos.

21. Em 22 de Fevereiro de 2019, o Gabinete Jurídico do CPR elaborou informação sobre o procedimento de asilo italiana e as condições de acolhimento de requerentes de asilo e refugiados no aludido país, informação onde se lê, entre o mais, o seguinte:

«(…)

O sistema de asilo italiano tem vindo a ser amplamente analisado por várias organizações de direitos humanos, que reportam preocupantes opções legislativas e políticas das autoridades de Itália neste domínio7, às quais se associa uma forte retórica racista e xenófoba.

Sucintamente, a informação disponibilizada por organizações como o European Council for Refugees and Exiles (ECRE) e os Médicos sem Fronteiras (MSF), entre outras, revelam a existência de falhas sistémicas tanto no que respeita ao procedimento de asilo e garantias processuais, bem como na política de acolhimento dos requerentes de asilo. Entre as principais falhas, e conforme a informação recolhida e traduzida infra, contam-se:

• A degradação preocupante das condições de acolhimento de requerentes de asilo e beneficiários de protecção internacional e a existência de obstáculos significativos ao acesso a condições de acolhimento dignas (onde se incluem o acesso a cuidados de saúde, alojamento e medidas de integração);

• A limitação do escopo da protecção conferida;

• Os problemas no acesso efectivo ao procedimento de asilo;

• O alargamento dos períodos legais de detenção de requerentes de protecção internacional;

• Os riscos de violação do princípio do non-refoulement. Para informações detalhadas sobre o funcionamento do sistema de asilo italiano, ver também o relatório da Asylum lnformation Database -Itália, disponível em: http://www.asylumineurope.org/reports/country/italy

As insuficiências do sistema de asilo italiano, para além de reportadas por diversas fontes fidedignas, foram também já reconhecidas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nomeadamente no caso Tarakhel c. Suíça8, de 2014, devendo notar-se que a situação se tem degradado significativamente desde então (nomeadamente à luz do actual contexto político).

Nota-se que também órgãos jurisdicionais de vários Estados-Membros da União Europeia, entre os quais Alemanha, França, Luxemburgo, Holanda e Reino Unido, anularam recentemente decisões de transferência ao abrigo do Regulamento Dublin para Itália à luz do referido contexto.

(…)

Fonte: IRIN News, New Italian law adds to unofficial clampdown on aid to asylum seekers, 7 de Dezembro de 2018, disponível em:

https://www.irinnews.org/newsfeature/2018/12/07/new-italian-law-adds-unofficial-clampdown-aid-asylum-seekers[consultado a 15 de Fevereiro de 2019]

Dezenas de milhares de requerentes de asilo vulneráveis perderam o direito a autorizações de residência válidas por dois anos e a serviços de integração em Itália na sequência da aprovação, na semana passada, da nova legislação promovida pelo Ministro da Administração Interna do populista governo de direita, Matteo Salvini.

Todavia, de acordo com entrevistas a requerentes de asilo e juristas especializados realizadas ao longo de vários meses, bem como com as respostas governamentais a dezenas de pedidos feitos ao abrigo do direito à liberdade de informação, nos últimos dois anos, milhares já tinham visto os serviços públicos a que tinham direito cortados ou reduzidos.

De acordo com a informação obtida pela IRIN junto dos governos locais, um em cada três requerentes de asilo que chegou a mais de metade das prefeituras italianas nos últimos dois anos, abandonou ou foi expulso do alojamento público.

(…)

Grupos de apoio alertam para o facto de que a nova lei irá agravar a já existente crise em Itália, que se debate para prestar serviços básicos a cerca de 180.000 refugiados e requerentes de asilo que aguardam decisões e que tem um número estimado de 500.000 migrantes indocumentados – muitos dos quais já estão fora do sistema de acolhimento. O Decreto-Lei sobre Imigração e Segurança em resumo:

(…)

• Requerentes de asilo deixam de ter acesso a serviços de integração até que o seu pedido seja deferido;

• Drástica redução da rede de centros de acolhimento;

(…)

Há apenas 25.000 lugares no sistema italiano de acolhimento de longo-prazo, gerido pelo governo, conhecido pelo seu acrónimo italiano, SPRAR, que tipicamente presta cuidados de elevada qualidade. Isto significa que mais de 150.000 pessoas que aguardam a decisão do seu pedido de asilo, ou 80 por cento do total, estão alojadas em mais de 9.000 infra-estruturas de acolhimento supostamente temporárias, conhecidas pelo acrónimo CAS. Na sua maioria, estas são geridas por entidades comerciais sem qualquer experiência de prestação de alojamento e serviços a requerentes de asilo e que têm sido associadas a corrupção e condições precárias.

(…) Centenas já foram expulsos de centros de acolhimento por toda a Itália e ficaram sem-abrigo de um momento para o outro', relatou à IRIN Oliviero Forti, responsável pela divisão de migração da Caritas em Itália. 'Em alguns locais, como Crotone, os abrigos da nossa organização ficaram assoberbados durante o fim-de-semana. Algumas pessoas muito vulneráveis, como mulheres grávidas ou pessoas com doença psiquiátrica, estão a ser postas na rua sem qualquer medida de apoio e, inacreditavelmente, as infra-estruturas públicas estão a pedir ajuda à Caritas.'

(…)

Em 2016, a Itália tomou o lugar da Grécia como principal ponto europeu de entrada de migrantes e requerentes de asilo, tendo recebido 320.000 pessoas nos últimos dois anos - com a grande maioria a chegar em pequenos e sobre/atados barcos operados por contrabandistas pelo Mediterrâneo desde o Norte de África ou após serem resgatados no trajecto.

(…)

Aqueles relativamente aos quais seja prima facie determinada a existência de um fundamento legítimo para requerer asilo têm direito a um lugar no sistema SPRAR, ainda que a maioria não o obtenha. [Estas] são instalações de pequena dimensão, uniformemente distribuídas pelo país, criadas pelo Ministério da Administração Interna e geridas por organizações humanitárias com experiência de trabalho com populações migrantes. São amplamente conhecidas por prestarem serviços básicos de qualidade elevada, bem como formação profissional e apoio psicológico. As 25.000 vagas disponíveis têm-se destinado, em regra, aos casos mais vulneráveis, como menores vítimas de tráfico.

De acordo com a nova legislação de Salvini, apenas pessoas a quem seja concedido um visto - processo que pode demorar vários anos - e não requerentes de asilo, podem ser colocadas em infra-estruturas SPRAR. Os migrantes e requerentes de asilo serão enviados para um CAS.

Os Médicos sem Fronteiras [MSF] afirmaram em comunicado que a nova lei terá 'impacto dramático na vida e saúde de milhares de pessoas'. Os MSF declararam que 'nos anos em que operaram nos CAS', os seus trabalhadores concluíram que permanências prolongadas nos centros 'deterioram a saúde mental dos migrantes' e 'prejudicam a probabilidade de se integrarem na sociedade com sucesso'.

(…)

Entrevistas com juristas especializados, assistentes sociais, dezenas de migrantes e a análise de decisões de cessação revelam um padrão de violações generalizadas dos direitos legais dos migrantes nos centros de acolhimento, sendo as autoridades locais, por vezes, coniventes com os abusos.

Os centros CAS – na sua maioria unidades hoteleiras e apartamentos privados identificados e aprovados pelas autoridades locais – são, teoricamente, apenas um elo numa complexa e mal regulada cadeia de alojamento para migrantes. Todavia, como os centros SPRAR estão completos, assumiram o excedente.

(…)

Com as condições insatisfatórias do sistema de acolhimento, os bairros de lata cresceram nos últimos anos. Nestas comunidades, é frequentemente difícil para os migrantes obter serviços básicos como cuidados de saúde e apoio jurídico necessário ao acompanhamento dos pedidos de asilo.

(…)

Fonte: HRW - Human Rights Watch, World Report 2019 - Italy, 17 de Janeiro de 2019, disponível em: https:/ /www.ecoi .net/en/document/2002229.html [consultado a 15 de Fevereiro de 2019]

(…)

De acordo com o ACNUR, até meio de Novembro, apenas 22.435 migrantes e requerentes de asilo tinham chegado a Itália por mar, o que em grande parte se deve às medidas de prevenção de chegadas já implementadas pelo governo que cessou funções. Em contraste, em 2017, chegaram 119.369 pessoas.

(…)

Fonte: Danish Refugee Council, Swiss Refugee Council, MUTUAL TRUST IS STILL NOT ENOUGH The situation of persons with special reception needs transferred to ltaly under the Dublin III Regulation, 12 de Dezembro de 2018, disponível em: https:/ /rel iefweb.int/report/italy/mutual-trust-still-not-enough-s ituation-persons-special reception- needs-transferred [consultado a 15 de Fevereiro de 2019]

Em 2016, o Danish Refugee Council e o Swiss Refugee Council iniciaram um projecto de monitorização conjunta, documentando as experiências de requerentes de asilo transferidos para Itália de acordo com o Regulamento Dublin III (…)

(…)

Os 13 casos de estudo demonstram que a recepção de requerentes de asilo vulneráveis transferidos para Itália é arbitrária, apesar das garantias prestadas pelas autoridades italianas na sequência do acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no processo Tarakhel c. Suíça. Através da monitorização da situação de 13 pessoas transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin, o Danish Refugee Council e o Swiss Refugee Council documentam como a muitos é totalmente negado o acesso ao sistema de acolhimento italiano ou necessitam de esperar longos períodos antes de serem alojados, o que dificulta significativamente o acesso efectivo ao procedimento de asilo italiano.

As experiências dos requerentes de asilo que participaram demonstram que, depois de terem acesso a condições de acolhimento, que frequentemente estão longe de ser adequadas para responder às suas necessidades especiais de acolhimento, as pessoas vulneráveis transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin ficam em risco de perder o direito a alojamento sem que a sua situação de vulnerabilidade seja devidamente tida em conta.

Ao acompanhar os casos documentados através do projecto de monitorização, o Danish Refugee Council e o Swiss Refugee Council concluíram que é claro que existe um risco real de que não sejam prestadas condições de acolhimento adequadas a requerentes vulneráveis retomados ao abrigo do Regulamento Dublin à chegada a Itália, expondo-os a risco de maus-tratos contrários ao artigo 3.º da CEDH e ao artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE. O risco de violação dos direitos fundamentais das pessoas retomadas ao abrigo do Regulamento Dublin tem aumentado com as alterações ao sistema de acolhimento italiano introduzidas pelo Decreto Salvini, que entrou em vigor a 5 de Outubro de 2018 e que piorou o sistema de acolhimento italiano.

Por fim, as experiências das pessoas transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin monitorizadas evidenciam que os Estados-Membros devem cumprir as obrigações a que estão vinculados pelo Regulamento Dublin de assegurar que é dada a devida resposta às necessidades especiais de pessoas retomadas a cargo na sequência de uma transferência Dublin para o Estado-Membro responsável. Como ilustrado pelos casos de estudo deste relatório, aqueles que são responsáveis por dar resposta às necessidades especiais de pessoas vulneráveis transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin, parecem frequentemente desconhecê-las, apesar das obrigações que incumbem ao Estado que procede à transferência nos termos dos artigos 31 e 32 do Regulamento Dublin III, segundo as quais têm de transmitir qualquer necessidade especial da pessoa a transferir.

(…)

1.2. Desenvolvimentos políticos recentes e consequências para o sistema de asilo italiano. O número de novos requerentes de asilo registados em Itália diminuiu progressivamente em 2017 e 2018, em parte devido à cooperação das autoridades italianas com as contrapartes líbias.

Um Memorando de Entendimento entre as autoridades italianas e líbias foi assinado e entrou em vigor em Fevereiro de 2018 por um período de três anos. O Memorando e outras formas de cooperação entre os dois países para travar o fluxo migratório para Itália têm sido fortemente criticados, tanto por organizações internacionais de direitos humanos, como por organizações intergovernamentais. Anteriores acordos semelhantes entre a Líbia de Gaddafi e a Itália foram censurados pelo TEDH na sua decisão no processo Hirsi Jamaa e outros c. Itália, no qual o tribunal decidiu que as parcerias violavam o princípio do non-refoulement e a proibição de expulsões colectivas.

O ACNUR reportou 21.000 novas chegadas por mar a Itália entre Janeiro e Setembro de 2019, em comparação com 105.400 no mesmo período em 2017. Tal não significa, contudo, que a pressão sobre o sistema de asilo italiano tenha desaparecido, uma vez que no final de 2017 ainda estavam pendentes em primeira instância 145.906 pedidos de asilo.

(…)

Assim, a forma como as pessoas vulneráveis transferidas ao abrigo do Regulamento Dublin são recebidas pelas autoridades italianas continua a ser arbitrária. A maioria das pessoas vulneráveis transferidas monitorizadas teve de dormir na rua após a sua chegada a Itália e apenas teve acesso a centros de acolhimento ou outros abrigos na sequência da sua participação no DRMP [Dublin Returnee Monitoring Project], uma vez que os entrevistadores do DRMP frequentemente intervieram no seu caso. Após terem tido acesso a condições de acolhimento, frequentemente estas estavam longe de ser adequadas para responder às suas necessidades especiais de acolhimento, em alguns casos devido à falta de cuidados médicos especializados.

(…)

(…) Uma vez que as autoridades italianas não suprem as necessidades de acolhimento dos requerentes de asilo em geral, nem as necessidades especiais de requerentes de asilo vulneráveis, apesar de estarem juridicamente obrigadas a fazê-lo, o mero acesso a condições de acolhimento à chegada por uma pessoa vulnerável transferida ao abrigo do Regulamento Dublin parece ser uma questão de sorte.

(…)

(…) os requerentes de asilo vulneráveis correm o risco de lhes ser negado ou retirado o acesso ao sistema de acolhimento italiano sem que a sua situação de vulnerabilidade ou o princípio da proporcionalidade sejam tidos em conta, o que pode dificultar significativamente o seu acesso efectivo ao procedimento de asilo.

(…)

Fonte: OHCHR - UN Office of the High Commissioner for Human Rights, Legal changes and climate of hatred threaten migrants rights in Italy, say UN experts, 21 de Novembro de 2018, disponível em: https://www.ecoi.net/ en/document/1454541.html [consultado a 15 de Fevereiro de 2019]

A 18 de Outubro, o Tribunal Distrital da Haia pronunciou-se sobre um caso relativo à transferência Dublin para Itália de uma cidadã eritreia, cujo pedido de autorização de residência temporária de asilo foi recusado pelas autoridades holandesas com base no facto de as autoridades italianas serem responsáveis por analisar o pedido de asilo da requerente.

A requerente impugnou a decisão perante o Tribunal Distrital afirmando, inter alia, que não poderia ser transferida para Itália devido às sérias deficiências estruturais no procedimento de asilo e acolhimento no país. De acordo com a requerente, o recente decreto sobre asilo e migração limitou os direitos dos requerentes de asilo e agravou as condições de acolhimento. Consequentemente, os requerentes de asilo e os beneficiários de estatuto de protecção humanitária estão excluídos do acesso a infra-estruturas de acolhimento SPRAR, sendo forçados a viver em centros de acolhimento temporários, onde as condições são frequentemente críticas.

O Tribunal notou que a restrição de acesso a infra-estruturas de acolhimento do Sistema SPRAR pode afectar negativamente a capacidade das restantes infra-estruturas de acolhimento. Neste contexto, citou várias fontes que documentam a considerável pressão que as instalações de acolhimento italianas já enfrentam, incluindo relatórios dos Médicos sem Fronteiras e da ECRE/AIDA. O governo holandês argumentou que, apesar de ser necessário examinar as

De acordo com o Tribunal, o argumento do governo não tem em conta as consequências mais amplas que o referido decreto poderá ter em geral nas condições de acolhimento em Itália. Assim, não estava suficientemente substanciado que não há deficiências estruturais na recepção em Itália. O Tribunal anulou a decisão impugnada e devolveu o processo às autoridades nacionais para que decidam de acordo com as conclusões da sentença.

[…]

Fonte: European Council on Refugees and Exiles, Asylum Information Database, ltaly: Latest lmmigration Decree drops Protection Standards, 26 de Setembro de 2018, disponível em: http://www.asylumineurope.org/news/26-09-2018/italy-latest-immigration-decree-dropsprotection-standards [consultado a 15 de Fevereiro de 2019]

(…)

O Decreto-Lei também limita o Sistema de Protecção de Requerentes de Asilo e Refugiados (SPRAR), uma rede de projectos de acolhimento de pequena escala e descentralizados com 35.881 lugares de alojamento actualmente financiados, a beneficiários de protecção internacional e crianças não acompanhadas. Os requerentes de asilo e beneficiários de estatuto de protecção humanitária ficarão, portanto, excluídos do SPRAR e apenas terão acesso a centros de acolhimento de primeira linha e a centros de acolhimento temporários (CAS), onde as condições de vida são, frequentemente, críticas.

(…)

Fonte: European Data base of Asylum law (EDAL), Luxembourg - Administrative Tribunal stops Dublin transfer of asylum seeker to ltaly, due to country's systemic deficiencies, 10 de Julho de 2018, disponível em: https://www.asylumlawdatabase. eu/en/content/luxembourg%E2%80%93-administrative-tribunal-stops-dublin-transfer-asylum-seeker-italy-duecountry%E2%80%99s [consultado a 15 de Fevereiro]

A 10 de Julho, o Tribunal Administrativo do Luxemburgo pronunciou-se no processo 41401/18, relativo a um requerente de asilo Guineense que chegou ao Luxemburgo através de Itália. Alguns meses depois de ter pedido asilo, foi informado de que seria transferido para Itália por existir um primeiro registo das suas impressões digitais no país.

O requerente impugnou a decisão enquanto estava em detenção domiciliária devido à sua transferência para Itália. Alegou que as falhas sistémicas em Itália e a falta de condições de acolhimento adequadas não asseguram o respeito pelos seus direitos fundamentais e que a transferência para o país configuraria um risco real de tratamento desumano ou degradante. Respondendo à contestação do governo, o Tribunal reiterou que, não obstante a confiança mútua continuar a ser aplicável a Estados-Membros, esta continua a ser uma presunção ilidível e, à luz da fundamentação to TJUE no processo C-578/2016, deverá ser feita uma análise individual.

Prosseguiu examinando provas relevantes sobre a actual situação dos requerentes de asilo no país, incluindo o recente relatório AIDA do ECRE sobre Itália, concluindo que o procedimento de asilo e o sistema de acolhimento efectivamente apresentam várias falhas sistémicas. Notou também que tais falhas são exacerbadas pela actual instabilidade política no país. Afastando o argumento do Governo segundo o qual as alegações do requerente eram demasiados gerais, o Tribunal concluiu que há prova suficiente para considerar que o procedimento de asilo e as condições de acolhimento em Itália são inadequadas, notando que as autoridades italianas não conseguem assegurar acesso a cuidados médicos e condições de vida dignas, criando um possível risco de tratamento desumano ou degradante.

(…)

Fonte: Amnesty lnternational, Amnesty lnternationa/ Report 2017/18 - Italy, 22 de Fevereiro de 2018, disponível em: https ://www.refworld.org/docid/Sa9938e2a.html [consultado a 15 de Fevereiro de 2019]

(…)

PROCEDIMENTO DE ASILO

Até ao final do ano, cerca de 130.000 pessoas tinham pedido asilo em Itália, um aumento de 6% relativamente aos quase 122.000 em 2016. Ao longo do ano, a mais de 40% dos requerentes foi concedido algum tipo de protecção em primeira instância. Em Abril foi introduzida legislação para acelerar os procedimentos de asilo e combater a migração irregular, incluindo através da redução das garantias processuais em impugnações de decisões de rejeição dos pedidos. A nova lei não esclareceu adequadamente a natureza e a função dos hotspots estabelecidos pela UE e dos acordos governamentais subsequentes de 2015. Os hotspots são instalações criadas para a recepção inicial, identificação e registo de requerentes de asilo e migrantes que chegam à UE por mar. No seu relatório de Maio, o Mecanismo Nacional para a Prevenção da Tortura destacou a contínua falta de base legal e de normas aplicáveis sobre a detenção de pessoas em hotspots.

Também em Maio, o Comité de Direitos Humanos da ONU criticou a detenção prolongada de refugiados e migrantes em hotspots. Também criticou a falta de garantias contra a classificação incorrecta dos requerentes de asilo como migrantes económicos e a falta de investigações na sequência de relatos de uso excessivo da força durante os procedimentos de identificação. Em Dezembro, o Comité das Nações Unidas contra a Tortura expressou preocupação relativamente à falta de garantias contra o retorno forçado de pessoas a países onde possam estar em risco de violações dos direitos humanos.

(…)

Fonte: Médecins sans Frontieres (MSF), Out of Sight, 2.ª edição, 8 de Fevereiro de 2018, disponível em: https://www.msf.org/sites/msf.org/files/2018-06/ out_of_sight_def.pdf [consultado a 15 de Fevereiro de 2019]

Este relatório surge no seguimento da investigação feita em Fuori campo - Requerentes de asilo e refugiados em Itália: campos não oficiais e marginalização social. É o resultado de constantes actividades de monitorização realizadas em 2016 e 2017 por meio de repetidas visitas de campo e em colaboração com uma extensa rede de associações locais.

O sistema de acolhimento de requerentes de asilo e refugiados que, em 31 de Dezembro de 2017, tinha pouco mais de 180.000 lugares, continua a basear-se, em grande parte, em estruturas de recepção extraordinárias, sendo os serviços destinados à inclusão social limitados.

Há zonas de marginalização em áreas urbanas e rurais em toda a Itália. O aumento dos despejos forçados, combinado com a falta de soluções habitacionais alternativas, resultam na fragmentação dos aglomerados informais, especialmente em contextos urbanos: migrantes e refugiados vivem em lugares cada vez mais escondidos num estado de crescente medo e frustração, sendo o contacto com os serviços sociais, incluindo com cuidados de saúde, progressivamente limitado.

Devido a barreiras administrativas e apesar da legislação em vigor, os migrantes e refugiados em aglomerados informais, independentemente do seu estatuto à luz da lei, têm cada vez menos oportunidades de acesso a tratamento médico. Os serviços de emergência hospitalar estão rapidamente a tornar-se a única porta de entrada para o Sistema Nacional de Saúde de Itália.

Nos últimos dois anos, mais de vinte pessoas morreram a tentar atravessar as fronteiras com França, Áustria e Suíça. Os migrantes são repetidamente rejeitados na fronteira, sendo a rejeição frequentemente acompanhada por violência. O número de pessoas bloqueadas nas fronteiras e que vive em aglomerados não oficiais está a aumentar, sendo limitado o acesso a cuidados básicos e a cuidados de saúde.

(…)

Em 2016 e 2017, os Médicos sem Fronteiras (MSF) reforçaram o seu compromisso em apoiar os migrantes em aglomerados não oficiais. Em Como e em Ventimiglia, foi implementado um programa de primeiros socorros psicológicos para pessoas em trânsito, juntamente com o programa de saúde para mulheres em Ventimiglia. Em Roma, organizaram-se, em prédios abandonados onde homens, mulheres e crianças vivem em condições indignas, cuidados de saúde primários e apoio psicológico. (…)

O relatório confirma a estimativa indicada na primeira edição do Fuori Campo: há, pelo menos, 10.000 pessoas excluídas do sistema de acolhimento, incluindo beneficiários e requerentes de protecção internacional e humanitária, com acesso limitado ou sem acesso a necessidades básicas e a cuidados médicos. A distribuição deste tipo de aglomerados é fragmentada e comum no país.

SISTEMA DE ACOLHIMENTO E FRONTEIRAS

Após os picos de 2016, 2017 registou uma diminuição global do número de desembarques - predominantemente devido a medidas de contenção implementadas após o acordo entre a Itália e a Líbia - e um aumento paralelo dos pedidos de asilo. A implementação completa da "abordagem de hotspot" resultou no registo forçado de quase todos os migrantes que chegam a Itália. Isso conteve os movimentos secundários em direcção aos países mais a norte.

A 31 de Dezembro de 2017, o sistema de acolhimento tinha 183.681 1ugares, um ligeiro aumento em relação a 2016. Apesar das tentativas do governo de promover o modelo do Sistema de Protecção de Refugiados e Requerentes de Asilo (SPRAR), gerido pelos Municípios, o número de requerentes de asilo e refugiados na rede SPRAR era de 31.270 na mesma data, apenas 17% do total. A escassez crónica de lugares nos centros de acolhimento deve-se não só ao número crescente de pedidos de asilo, mas também ao facto de haver pouca rotatividade nos centros devido ao tempo necessário para avaliar os pedidos. Apesar do aumento das Comissões Territoriais nos últimos anos, o tempo decorrido entre o pedido de asilo e a notificação do resultado é em média de 307 dias. No caso de recusa de protecção e de impugnação, o tempo de permanência nos centros pode aumentar para mais 10 meses (o tempo médio necessário para se obter uma decisão em caso de impugnação). (…)

Outros factores estão a colocar pressão no sistema de acolhimento. Em primeiro lugar, o número crescente de requerentes de asilo noutros países que é enviado de novo para a Itália ao abrigo do Regulamento de Dublin. Em segundo lugar, o fracasso do processo de recolocação criado pelo Conselho da UE em Setembro de 2015 para transferir requerentes de asilo a partir de Itália e da Grécia para outros Estados-Membros.

(…) há também requerentes de asilo a quem foi retirado o acolhimento; migrantes que deixam os centros por lhes ter sido negada a protecção internacional, independentemente de terem impugnado ou não a decisão (…)

(…)

Durante os últimos dois anos, o número de requerentes e de beneficiários de protecção internacional e de protecção humanitária que vive em edifícios ocupados aumentou. A maioria destas pessoas nunca entrou num sistema de acolhimento institucional ou foi expulsa do mesmo, sem que tenha havido uma inclusão social adequada. As ocupações são geridas pelos próprios migrantes e refugiados, especialmente quando os residentes são do mesmo país de origem, outras são geridas por movimentos pelo direito à habitação; estes geralmente reportam-se às designadas "ocupações mistas", onde migrantes e refugiados de diferentes zonas – África Subsaariana, América Latina, Europa - coexistem juntamente com muitos italianos.

Muitas ocupações que começaram por ser ocupações à margem da lei foram posteriormente legalizadas, com o envolvimento de entidades e instituições privadas (principalmente os Municípios e Regiões). Em comparação com o sistema de acolhimento do governo para requerentes de asilo e refugiados, as ocupações promovem um modelo baseado na autogestão e dão aos residentes a oportunidade de permanecer em segurança até conseguirem uma efectiva independência a nível social, habitacional e laboral. Em relação aos cuidados de saúde, foram impostas limitações pela Lei n.º 80/2014 (Artigo 5.º), confirmadas pela Lei n.º 48/2017: morar em prédios ocupados não dá às pessoas a oportunidade de obter uma residência formal e, portanto, de se registar no Serviço Nacional de Saúde. Isto é particularmente relevante nas cidades onde o município não concede uma residência fictícia - aquela que é dada aos sem-abrigo - ou onde é particularmente difícil obtê-la.

[…]

Despejos forçados

O Decreto Legislativo n.º 267/2000 confere autoridade ao prefeito "em relação à necessidade urgente de intervenções que visem a superação de situações de negligência grave ou degradação do território, do meio ambiente e do património cultural, ou em detrimento da limpeza e habitabilidade urbana". Essa autoridade, reafirmada e fortalecida pela Lei n.º 48/2017, é cada vez mais usada para desmantelar aglomerados não-oficiais onde vivem migrantes e refugiados excluídos do sistema de acolhimento institucional, usando mais ou menos despejos forçados, quase nunca programando os mesmos com a população residente. Isso força as pessoas a dispersar em áreas cada vez mais periféricas e em locais cada vez mais ocultos, com acesso mais limitado a serviços sociais e de saúde, com a possibilidade cada vez mais remota de aceder a serviços que atendam às necessidades dessa população vulnerável.

(…)Fonte: Human Rights Watch, World Report 2018 - European Union, 18 de Janeiro de 2018, disponível em: https:/ /www.refworld.org/docid/5a61ee75a.html [consultado a 15 de Fevereiro de 2019]

Itália

Mais de 114.000 migrantes e requerentes de asilo chegaram a Itália, por mar, até meados de Novembro, de acordo com o ACNUR, o que tem sobrecarregado o sistema de acolhimento do país. O governo adoptou políticas mais restritivas no contexto de um debate político tóxico sobre migração.

Nos primeiros sete meses do ano, o número de novos pedidos de asilo quase duplicou, quando comparado com 2016, tendo as autoridades conferido alguma forma de protecção em 43% dos casos. A maioria recebeu autorização humanitária temporária para permanecer no país, incluindo por abusos sofridos enquanto migrantes na Líbia.

Em Fevereiro, o governo introduziu medidas para acelerar o procedimento de asilo, incluindo através da limitação das impugnações de decisões negativas, e anunciou planos para novos centros de detenção para imigrantes no país. O governo central teve problemas em encontrar alojamento para os requerentes de asilo em Itália, tendo muitas comunidades recusado ter centros de acolhimento. Muitos centros de acolhimento carecem de cuidados e apoio para sobreviventes de violência sexual, bem como para sobreviventes de outra[s formas de] violência traumática. A incapacidade de Itália em garantir o apoio de longo prazo a indivíduos que receberam protecção internacional ficou clara em Agosto, quando a polícia despejou violentamente centenas de refugiados da Eritreia sem-abrigo de um prédio ocupado em Roma.

(…)».

Cf. informação de fls. 143 e ss. dos autos.

*

Nada mais foi dado como provado ou não provado com interesse para a decisão da causa.

*

**

A matéria de facto foi dada como provada face às posições das partes e ao teor dos documentos juntos ao processo, de acordo com o que ficou plasmado a propósito de cada facto.»

2. De direito:

2.1. Cumpre apreciar as questões suscitadas pelo ora recorrente – delimitado que está o objecto do recurso apresentado pelas conclusões das alegações –, que têm que ver com a alegada errada interpretação e aplicação das “normas legais vigentes em matéria de asilo, mormente no que respeita ao mecanismo da Retoma a Cargo, ao qual a Itália está vinculada”.
Vejamos se lhe assiste razão.

2.2. O A., ora recorrido, começou por formular um pedido de asilo em Treviso, Itália. Depois disso, rumou à Alemanha, onde permaneceu uns meses, e onde igualmente formulou pedido de asilo em Nuremberga. Finalmente, chegou a Portugal, tendo formulado junto do Gabinete de Asilo e de Refugiados do SEF um pedido de protecção internacional. De acordo com o procedimento juridicamente estabelecido para estes casos de requerimento de protecção internacional, foi o A., ora recorrido ouvido, no SEF. Perguntado se estava bem de saúde, mencionou problemas de estômago e de coração. Perguntado se estava a ser medicado, afirmou que sim. Perguntado pela razão do pedido de protecção internacional, o ora recorrido afirmou que, no seu país, Serra Leoa, era perseguido e maltratado pelo facto de ser homossexual. O ora recorrido não relatou quaisquer maus tratos ou qualquer tipo de tratamento desumano ou degradante de que tenha sido vítima em Itália. Ao que tudo indica, os responsáveis do SEF não viram motivo para accionar o procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de protecção internacional.

Na p.i. apresentada no TAC de Lisboa, não há, de igual modo, qualquer referência a qualquer tipo de maltrato, a qualquer privação de bens materiais essenciais, a falta de alojamento ou de condições de habitabilidade, a falta de cuidados médicos, a qualquer perseguição que tenha posto em causa a sua dignidade enquanto pessoa humana. Na p.i. são mencionadas as falhas sistémicas que ocorrem em Itália relacionadas com o acolhimento dos requerentes de protecção internacional, as quais serão devidas, na perspectiva do A., ao excesso de pedidos e à consequente falta de meios e condições para acolher devidamente todos os que formulam pedidos de protecção internacional naquele país. Em parte alguma se diz que o então A. tenha sido afectado, de forma directa ou indirecta, por essas ditas falhas sistémicas. Fundamentalmente, sustenta-se que não foi elaborado um relatório legalmente previsto e que o requerente de protecção internacional não foi ouvido antes da tomada de decisão final de transferência para Itália. Tudo isto numa clara perspectiva de afronta ao direito de o administrado participar na preparação da tomada de decisões que o afectem (ponto 62.º da p.i.). De forma concreta, diz-se ainda, a certa altura, que o requerente de protecção internacional deveria ter sido informado de que estava há mais de três meses fora de Itália, sendo que o artigo 19.º (Cessação da responsabilidade) do Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26.06, que estabelece que esse é um dos motivos para o Estado-Membro responsável se ‘descartar’ de certas obrigações previstas no artigo 18.º. Procurando extrair consequências disso, afirma-se na p.i. que, dado que o A. estava há mais de 3 meses fora de Itália, isso significava que Portugal é que deveria conhecer do pedido de protecção internacional, o qual deveria ser deferido pois o A. era maltratado e perseguido no seu país de origem, Serra Leoa, por ser homossexual.

O TAC de Lisboa, onde a presente acção urgente foi proposta, desviando-se do que tinha sido peticionado, entendeu que tinha andado mal o SEF pois devia ter averiguado melhor a situação das falhas sistémicas em Itália e devia ter ouvido o ora recorrido sobre essa questão para que ele fizesse uma opção informada sobre o país em que quereria permanecer: Itália ou Portugal, pelo que o despacho do Director-Nacional Adjunto do SEF padece de deficiente instrução probatória. De igual modo, como o recorrido não chegou a ser ouvido acerca das falhas sistémicas existentes em Itália, também foi desrespeitado o seu direito de audiência. Consequentemente, o TAC de Lisboa anulou a decisão em causa, que considerou inadmissível o pedido de protecção internacional formulado pelo respectivo requerente e, consequentemente, determinou a sua transferência para Itália. Mais ainda, condenou a entidade demandada a proferir nova decisão, depois de instruir o procedimento nos termos indicados na sentença.

Inconformado, o MAI recorreu para o TCAS, o qual decidiu manter a decisão da 1.ª instância, mas com distinta fundamentação. Assim, quanto ao direito de audiência, o TCAS entende que o mesmo foi formalmente cumprido (não foi “postergado”), pois sufraga o “entendimento de que, no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável ao abrigo do Regulamento de Dublin, o direito de audiência prévia do requerente de asilo pode ser exercido durante a entrevista pessoal a que se refere o art.º 5.º, n.º 1 do mesmo Regulamento, ou no final da mesma entrevista, contanto que ao requerente seja prestado todo o manancial informativo descrito no art. 4.º do aludido Regulamento, e que lhe seja dada a oportunidade de apresentar cabalmente todos os seus argumentos, razões e factos, mormente no caso de uma provável transferência para outro Estado”. Ora, é justamente porque acha que não foi dada ao requerente de asilo esta oportunidade que o TCAS entende que houve deficiente concretização do direito de audiência. Quanto a este aspecto diz-se no acórdão recorrido:

Compulsado o documento atinente à transcrição da entrevista, e que se encontra vertido nos pontos 9, 10, 11, 12 e 13 da factualidade provada, verifica-se que, aparentemente, foi dado nota ao Recorrido da possibilidade de aplicação do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, bem como de que tal Estado seria, possivelmente, a Itália. Na verdade, esta conclusão fundamenta-se no teor das declarações finais do Recorrido na entrevista, que disse que “Eu não quero regressar a Itália.”

Todavia, mesmo que ao Recorrido tenha sido, aparentemente, fornecida a informação de que o Estado responsável pela apreciação do seu pedido de asilo seja a Itália, a verdade é que não lhe foi dada oportunidade de indicar de modo completo, cabal, circunstanciado e suficiente todas as razões e motivos relevantes que pudessem obstaculizar a uma possível ou provável transferência para aquele país.

É que, examinado integralmente o teor da entrevista realizada ao Recorrido, verifica-se que, apesar deste ter afirmado não querer regressar a Itália, nada mais lhe foi perguntado no que concerne às razões para não querer regressar ao referido país. Aliás, é o próprio Recorrente que, perante a afirmação do Recorrido de que não quer regressar a Itália, consigna que “nada mais lhe foi perguntado”.

Ainda neste âmbito, o TCAS, partindo da ideia de que o requerente de protecção internacional é uma pessoa particularmente vulnerável – por ter problemas de saúde e por ter sido alvo de ataques pelo facto de ser homossexual –, conclui que se impunha um acréscimo de diligência por parte do SEF. Tanto mais porque não é possível perceber por que razão o requerente de protecção internacional não quer ser transferido para Itália.

Além de concluir que não permitido ao requerente de protecção internacional o exercício pleno do seu direito de audiência, o TCAS vai ainda mais longe, chegando à conclusão que o caso dos autos se subsume claramente na previsão do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento n.º 604/2013, do PE e do CE, não devendo ser ordenada a transferência do requerente de asilo para Itália, pois, dadas as falhas sistémicas existentes no sistema italiano de recepção e de acolhimento dos requerentes de protecção internacional, existe um risco sério e real de, no caso concreto, o A., ora recorrido, sofrer tratamento desumano e degradante, tal como este se encontra definido nos artigos 3.º da CEDH e 4.º da CDFUE.

Se a 1.ª instância já se tinha afastado do peticionado pelo A., o TCAS deu mais um passo em frente nesse desvio, sendo certo que, tanto na sentença, como no acórdão do TCAS, do qual se recorreu para este STA, se envereda por uma interpretação algo desadequada e temerária de vários dispositivos da Lei n.º 27/2008, de 30.06 (agora com a redacção dada pela Lei n.º 26/2014, de 05.05 – Lei do Asilo) que regulam as condições e procedimentos de concessão de asilo ou protecção subsidiária. Por exemplo, a partir da leitura do artigo 18.º (Apreciação do pedido) da Lei do Asilo resulta claro que se deve apreciar a situação e circunstâncias pessoais do requerente, designadamente se foi perseguido. Ora, como visto, ambas as instâncias consideraram que o requerente de protecção internacional só não se queixou de ter sido afectado pelas falhas sistémicas que existem em Itália porque não lhe foi dada essa oportunidade. Acresce a isto que ambas as instâncias, tomando como equivalentes ‘falhas sistémicas’ e ‘tratamentos desumanos e degradantes’, entenderam, em especial, para o que agora importa, a 2.ª instância, que transferir o requerente de protecção para Itália comporta um risco sério de ele ser alvo de tratamentos desumanos e degradantes e que o SEF teria chegado a essa conclusão se tivesse investigado melhor as falhas sistémicas em Itália.

Não podem restar dúvidas de que, caso o requerente da protecção internacional apresentasse queixas directamente relacionadas com as tais falhas sistémicas, na medida do possível, devidamente comprovadas, teria algum sentido averiguar um pouco mais a situação em que ele viveu em Itália, mas apenas para compreender melhor as circunstâncias concretas do seu caso e, para o que mais interessa, para procurar perceber se a sua transferência para Itália equivaleria a sujeitá-lo a tratamentos desumanos e degradantes (ou, em todo o caso, para coloca-lo numa situação de extrema indignidade). Ora, na entrevista em que respondeu a questões relacionadas com a sua entrada e permanência em Estados europeus, designadamente em Itália, o requerente de protecção internacional nada disse sobre ter sido uma vítima das conhecidas falhas sistémicas. Ainda assim, com base em informações várias como, entre outras, estudos, relatórios, notícias e jurisprudência que abordam a existência de falhas sistémicas em Itália no procedimento de concessão de protecção internacional e no acolhimento de refugiados – que afectarão mais as pessoas particularmente vulneráveis (como grávidas, crianças, pessoas com perturbações mentais); sobre as convicções políticas do então Ministro do Interior Mateo Salvini, e sobre decisões adoptadas por tribunais de outros países europeus em que se optou por não transferir certos requerente de protecção internacional para Itália, o TCAS entendeu que o direito de audiência do ora recorrido, não tendo sido formalmente postergado, foi, em parte, aniquilado, e que o acto impugnado viola o artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento n.º 604/2013, do PE e do CE, e os artigos. 3.º da CEDH e 4.º da CDFUE. De forma mais específica, diz-se na parte final do acórdão recorrido: “Por conseguinte, verificando-se, além do mais, que subsiste causa obstaculizante à transferência do Recorrido para Itália, atentas as falhas sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de asilo que se vivenciam hodiernamente em Itália, resta concluir que o Recorrente deve admitir o pedido de asilo formulado pelo Recorrido e proceder à devida tramitação subsequente, por forma a apurar se o mesmo reúne as condições descritas no art.º 3.º ou, subsidiariamente, do art.º 7.º da Lei do asilo”. Em consonância decide-se no sentido de “negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida, com a presente fundamentação”.

Como se pode constatar de todo o exposto, o acórdão recorrido, tal como inicialmente a 1.ª instância, ao invés de ter em consideração o que foi concretamente peticionado na presente acção, optou por efabular a situação do seu A., efabulação sem sustentação nas declarações prestadas ao SEF, nem, no que mais interessa, na p.i., antes se sustentando na afirmação genérica da existência de falhas sistémicas em Itália – que, na sua perspectiva, são necessariamente sinónimo de tratamentos desumanos e degradantes. Vale isto por dizer que o acórdão recorrido não teve em consideração a situação específica e as circunstâncias pessoais do requerente, tal como mencionado no já citado artigo 18.º, antes levou em consideração vários elementos de variadas fontes que dão conta da existência de falhas sistémicas em Itália. A partir daí concluiu, por um lado, que se o requerente da protecção internacional não mencionou as falhas sistémicas foi porque os funcionários do SEF não lhe fizeram perguntas suficientes ou as perguntas certas, daí o desrespeito do direito de audiência. Por outro lado, que dadas essas falhas sistémicas, certamente que se o requerente de protecção internacional for recambiado para Itália vai ser objecto de tratamentos desumanos e degradantes e, por esse motivo, nunca o Director-Nacional Adjunto do SEF podia ter decidido a sua transferência para a Itália, e, ao fazê-lo, violou o artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento n.º 604/2013, do PE e do CE, e, ainda, os artigos. 3.º da CEDH e 4.º da CDFUE. Ou seja, o TCAS, tal como inicialmente a 1.ª instância, à falta de alegações concretas sobre o modo como essas falhas sistémicas teriam levado e/ou levarão a que o requerente seja sujeito a condições desumanas e degradantes em Itália, assenta a sua decisão numa errada interpretação do pedido do A., numa errada interpretação, desde logo, do artigo 18.º da Lei do Asilo, e em várias suposições, especulações que, obviamente, não correspondem a factos dados como assentes. Quanto a estas últimas, a de que o requerente de protecção internacional veio para Portugal porque era maltratado em Itália (tendo, então, que assumir-se que os refugiados que preferem ir para outros países que não Portugal, e, mais ainda, aqueles que para cá vieram e fugiram para outros países eram sujeitos ou iriam ser sujeitos a tratamentos desumanos e degradantes no nosso país). Ainda a de que por haver falhas sistémicas em Itália isso significa que todos os refugiados, sem excepção, são sujeitos a tratamentos humanos e degradantes. E a de que, tendo o requerente de asilo queixado de dores no estômago e no coração ele estaria a ser privado de assistência médica e de que iria ter melhores cuidados médicos em Portugal do que aqueles que teve nos outros países em que esteve, em especial em Itália (pelo que consta da matéria de facto, o mesmo estava a ser medicado). Além de tudo isto, conclui o TCAS que, por ter problemas inespecificados de estômago e de coração e por ter sido perseguido na Serra Leoa pelo facto de ser homossexual, o requerente de protecção internacional é uma pessoa especialmente vulnerável, além da óbvia vulnerabilidade, não desprezável, que resulta da sua condição de refugiado.

Em suma, o SEF e depois os tribunais tratam e decidem situações concretas de requerentes de protecção internacional e devem fazê-lo atendendo às suas circunstâncias pessoais específicas e no estrito cumprimento da disciplina jurídica existente e vigente, não lhes cabendo imiscuir-se em políticas migratórias, porque elas são discutidas e decididas, além de no plano interno de cada Estado, no âmbito das instituições competentes da União Europeia. Assim sendo, a não ser que, a partir das declarações do requerente da protecção internacional, se possa deduzir que há, efectivamente, uma situação concreta em que o requerente terá sido afectado de forma além do aceitável pela deficientes condições de acolhimento (que está a ser maltratado ou, em todo o caso, que não está a beneficiar de um tratamento condigno), situação que não pode ser ignorada e deve ser devidamente esclarecida, não tem o SEF que partir do princípio de que as condições deficientes de acolhimento existentes num determinado país são necessariamente prova de que todos os refugiados são tratados de forma desumana e degradante nesse mesmo país, procurando induzir o requerente de protecção internacional, mediante uma multiplicidade de perguntas, a chegar a essa mesma conclusão. Sempre cabe sublinhar, a latere, que com esta sua intervenção que excede aquilo que são as suas competências de natureza puramente judicial, estão os tribunais a dar cobertura a estereótipos que podem gerar mais tensões em sociedades cada vez mais divididas e por vezes intolerantes. Estereótipos como o de que todos os italianos são fascistas, racistas e maltratam todos refugiados e o de que todos agentes do SEF enganam os requerentes de protecção internacional e que nada fazem para os proteger de tratamentos desumanos e degradantes.

2.3. Em face de todo o exposto, devem proceder as alegações do ora recorrente de que foi cumprido e respeitado o direito de audiência do requerente de protecção internacional e de que não se verificou qualquer deficiência ou insuficiência probatória, tendo sido devidamente cumpridos todos os preceitos pertinentes, designadamente os artigos 10.º e ss. e 36.º e ss. da Lei do Asilo. Bem assim, não foram desrespeitados os artigos 3.º, n.º 2, e 5.º do Regulamento n.º 604/2013, do PE e do CE, e, ainda, os artigos 3.º da CEDH e 4.º da CDFUE.

III – DECISÃO


Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em conceder provimento ao presente recurso, revogar o acórdão recorrido e julgar improcedente a acção.


Sem custas (cfr. artigo 84.º da Lei n.º 27/2008, de 30.06)

Lisboa, 5 de Novembro de 2020.

A presente decisão foi adoptada por unanimidade pelos Senhores Conselheiros Maria Benedita Urbano (Relatora), Jorge Artur Madeira dos Santos e Suzana Tavares da Silva, e vai assinada apenas pela Relatora, com o assentimento (voto de conformidade) dos Senhores Conselheiros adjuntos, de harmonia com o disposto no artigo 15-A (Recolha de assinaturas dos juízes participantes em tribunal colectivo) do DL n.º 10-A/2020, de 13.03 – preceito introduzido pelo DL n.º 20/2020, de 01.05.