Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:033/24.1BEFUN
Data do Acordão:07/03/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOÃO SÉRGIO RIBEIRO
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
AUXILIO DO ESTADO
ZONA FRANCA DA MADEIRA
Sumário:I - A questão fundamental é a de saber se decorre dos instrumentos de Direito da União Europeia invocados a inadmissibilidade da dispensa de garantia para a suspensão do processo de execução fiscal.
II - É de afastar, logo à partida, que seja recusada a suspensão do processo de execução fiscal com dispensa de prestação de garantia, só porque, supostamente, seria o que resultaria dos instrumentos de Direito da União Europeia invocados. Sendo essa atuação ainda mais censurável por se apoiar, sobretudo, numa comunicação da Comissão.
III - Mesmo no plano dos princípios gerais da União dificilmente se conceberia uma discriminação dos executados em função da situação que esteve na origem do crédito fiscal a recuperar.
IV - Concede-se provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Recorrente, revogando a decisão recorrida e anulando o despacho do órgão de execução reclamado.
Nº Convencional:JSTA000P32455
Nº do Documento:SA220240703033/24
Recorrente:A... S.A. (ZONA FRANCA DA MADEIRA)
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA - RAM
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. Relatório

1.1. A... S.A. (ZONA FRANCA DA MADEIRA), devidamente identificada nos autos, veio interpor recurso da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal [doravante, TAF Funchal], em 18.03.2024, que julgou improcedente a reclamação judicial por si deduzida contra o despacho proferido pela Chefe do Serviço de Finanças do Funchal-1, em 09.11.2023, de indeferimento do pedido de dispensa da prestação de garantia referente ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) de 2018, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...77, instaurado na sequência do processo de recuperação de auxílios de Estado concedidos ao abrigo do regime de auxílios a favor da «Zona Franca da Madeira (ZFM) – Regime III».

1.2. A Recorrente conclui da seguinte forma as suas alegações de recurso:

«…
I. Interpõe a Recorrente o presente Recurso contra a Sentença proferida no âmbito do processo de Reclamação Judicial que correu os seus termos, sob o n.º 33/24.1BEFUN, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, e que foi apresentada contra a decisão de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia, que a antecedeu;

II. Subjacente à Sentença ora recorrida, está o seguinte entendimento do Tribunal a quo
o O que está na base dos presentes autos é a Decisão da Comissão Europeia (Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de dezembro de 2020 relativa ao regime de auxílios SA.21259 (2018/C) (ex - 2018/NN) aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira (ZFM) – Regime III), e que ordenou a Portugal, enquanto Estado-Membro, a imediata e efetiva recuperação dos auxílios concedidos, sob a forma de redução de impostos, de forma ilegal (cfr. art.º 5.º da Decisão).
o Ora, não há dúvidas de que Portugal está vinculado ao cumprimento de tal decisão. E quanto aos termos em que tal recuperação se processa, há que atender ao teor da Comunicação da Comissão relativa à recuperação de auxílios estatais ilegais e incompatíveis (2019/C 247/01), e ainda ao Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho (também denominado «Regulamento Processual»), dado que quer a Decisão, quer a Comunicação, quer o Regulamento Processual, constituem direito da União Europeia e logo aplicáveis em Portugal nos termos do n.º 4 do art.º 8.º da Constituição da República Portuguesa;
o Ora, visto o teor de tais atos, temos que o artigo 16.º, n.º 3, do Regulamento Processual estabelece que «a recuperação será efetuada imediatamente e segundo as formalidades do direito nacional do Estado Membro em causa, desde que estas permitam uma execução imediata e efetiva da decisão da Comissão».
o Por outro lado, no ponto 37 da Comunicação estabelece-se que “(…) os princípios do primado e da efetividade do direito da União Europeia significam que os Estados-Membros e os beneficiários do auxílio não podem invocar o princípio da segurança jurídica para limitar uma recuperação no caso de um alegado conflito entre o direito nacional e o da União Europeia.
o O direito da União Europeia prevalece e as regras nacionais não devem ser aplicadas ou devem ser interpretadas de uma forma que preserve a efetividade do direito da União Europeia”.
o E tal primazia tem até lugar, note-se, perante decisões judiciais já transitadas em julgado, como decorre do ponto 45 da Comunicação: “Ao abrigo do princípio do primado do direito da União Europeia, as regras da União Europeia em matéria de auxílios estatais prevalecem sobre leis nacionais divergentes, que não devem ser aplicadas. O mesmo se aplica às regras e decisões judiciais nacionais cujo efeito da aplicação do princípio da autoridade do caso julgado se traduza na violação das regras da União Europeia em matéria de auxílios estatais”.
o Mais se dispondo no ponto 69 que “Uma decisão da Comissão dirigida a um Estado-Membro é vinculativa para todos os órgãos do Estado destinatário, incluindo os seus tribunais”. Ou seja, e volvendo ao caso que nos ocupa, a aplicação de normativos nacionais não é impedida pela execução de uma decisão de recuperação de auxílios ilegais. Todavia, tais normativos não podem pôr em causa a decisão, e a obrigatoriedade da mesma ser imediata e efetiva.
o O que sempre sucederia com os preceitos legais relativos à suspensão do processo de execução fiscal com dispensa de prestação de garantia. De onde, não merece censura a atuação da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira que desconsiderou os normativos nacionais atinentes à possibilidade de dispensa de prestação de garantia visando a suspensão do processo de execução fiscal;
III. Em primeiro lugar, e como a ora Recorrente tem sustentado ao longo das peças judiciais apresentadas, o raciocínio adotado pela Autoridade Tributária, agora corroborado pelo Tribunal a quo, padece de um erro de direito inultrapassável, o qual torna a presente Decisão ilegal;

IV. É que, ao contrário do que a Autoridade Tributária e o Tribunal a quo sustentam, a questão não se prende com a vinculação do Estado Português e respetivas instituições à Decisão da Comissão Europeia, mas apenas com a forma adotada na execução da referida Decisão;

V. É que como bem sabe o Tribunal a quo é o próprio Tribunal de Justiça da União Europeia a dizer que a execução das decisões de recuperação de auxílios de Estado considerados ilegais deve ser feita de acordo com a ordem jurídica interna dos Estados Membros;

VI. A este propósito veja-se a posição adotada pelo Tribunal Geral da União Europeia, em 27 de outubro de 2023, nos processos T-718/22 e T-723/22. Diz então o Tribunal que “No caso de ser identificado um beneficiário do auxílio declarado ilegal e incompatível com o mercado interno, a Comissão esclareceu, no considerando 216 da decisão recorrida, o método com base no qual o montante do auxílio a restituir devia ser calculado pelas autoridades portuguesas”;

VII. Mais dizendo que: “É irrelevante para esta conclusão a alegação de que, na prática, as autoridades portuguesas quantificaram o montante dos auxílios a recuperar junto de cada beneficiário segundo um método fixo. Com efeito, essa crítica visa as modalidades de recuperação dos auxílios em causa, que estão sujeitas à fiscalização exclusiva dos órgãos jurisdicionais nacionais (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2011, A2A/Comissão, C-320/09 P, não publicado, EU:C:2011:858, n.° 162)” – assinalado pela Recorrente;

VIII. Isto porque:
o Ora, o contencioso relativo a essas medidas nacionais de recuperação, suscetível de determinar a sua anulação, é da competência exclusiva do juiz nacional e deve ser considerado uma simples emanação do princípio da proteção jurisdicional efetiva que constitui, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, um princípio geral do direito da União Europeia (v., neste sentido, Acórdãos de 13 de fevereiro de 2014, Mediaset, C-69/13, EU:C:2014:71, n.° 34, e de 11 de setembro de 2014, Comissão/Alemanha, C-527/12, EU:C:2014:2193, n.° 45 e jurisprudência referida);
o Decorre do exposto que cabe ao órgão jurisdicional nacional, se for interpelado, pronunciar-se sobre a questão de saber se os auxílios concedidos às recorrentes ao abrigo do Regime III o foram em conformidade com as Decisões de 2007 e de 2013 que o autorizaram e, por conseguinte, constituem «auxílios existentes» na aceção do artigo 1.°, alínea b), ii), do Regulamento 2015/1589, eventualmente após ter submetido uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 267.° TFUE;
o Assim, no âmbito dos presentes recursos, o Tribunal Geral examinará os fundamentos invocados pelas recorrentes apenas na parte em que dizem respeito à decisão recorrida e não às medidas nacionais de recuperação adotadas pelas autoridades portuguesas em execução desta última decisão (cfr. pontos 26, 27 e 28 da Decisão do Tribunal Geral da União Europeia).
IX. De onde se conclui que cabe aos juízes nacionais controlar juridicamente os moldes em que é feita a recuperação dos auxílios em execução da Decisão da Comissão, através da aplicação da legislação interna, o que não sucedeu, antes tendo optado o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo por não apreciar o mérito da pretensão como legalmente se impunha e agora se requer;

X. Este entendimento de que as regras nacionais não se aplicam por estar em causa a recuperação de auxílios de Estado - mesmo considerando o facto de o Estado português ter emitido liquidações adicionais de IRC e citações para execução fiscal - levou inclusivamente a Autoridade Tributária a promover penhoras no montante de € 404.000,22;

XI. Com efeito, a decisão de não conhecer o mérito da pretensão como legalmente se impunha e ora se requer para além de ser manifestamente ilegal, teve consequências graves na situação económica da ora Recorrente

XII. Conforme sobejamente demonstrado, foi a própria Autoridade Tributária que, incumbida de proceder à recuperação dos auxílios de Estado, decidiu liquidar adicionalmente imposto (IRC), como se este fosse devido nos anos em causa; e subsequentemente, em face da falta de pagamento voluntário do imposto adicionalmente liquidado, instaurar os processos de cobrança coerciva a que ora se reage;

XIII. Assim, o que está a ser exigido à Recorrente é o pagamento de IRC, pelo que ao qualificar a quantia a recuperar como imposto e emitir atos tributários está a Autoridade Tributária vinculada a cumprir a lei (nomeadamente a possibilidade de pagamento em prestações ou da suspensão do processo de execução fiscal através da prestação de uma garantia ou através da sua dispensa);

XIV. Afastar a aplicação destes institutos jurídicos significa negar a natureza tributária da dívida (em manifesta contradição com os atos emitidos);

XV. Certo é que o recurso ao procedimento tributário não possibilita a seleção parcial dos segmentos daquele regime, sendo igualmente certo que não existe qualquer procedimento específico para o efeito porque o Estado (enquanto legislador) não o previu.;

XVI. Centrando o tema que nos ocupa – a Sentença que indeferiu a Reclamação Judicial apresentada contra o pedido de dispensa da prestação da garantia – importa deixar claro que porque assim entendeu o Estado português, na origem destes autos está a emissão de liquidações de IRC, cuja falta de pagamento dentro do prazo de pagamento voluntário deu origem à instauração de processos de execução fiscal contra a Recorrente;

XVII. Ora, o processo de execução fiscal consiste num processo de execução simplificado face àquele que é o regime geral de execução (civil), porque assenta no princípio de que o Estado é uma entidade investida de maior autoridade e que se presume que atua de boa fé, circunstância que permite simplificar o processo (menos moroso e com menos etapas que o processo de execução civil), o que precisamente tem levado a um alargamento das dívidas (ainda que não fiscais, o que não é o caso dos autos), a serem cobradas coercivamente por esta via;

XVIII. A este propósito, veja-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA Sul”) de 25/11/2021, proferido no processo 239/14.1BECTB: “O recurso ao processo executivo para cobrança de dívidas não fiscais, legalmente previsto, tem sido visto como uma forma apetecível para diversas entidades credoras, atenta a sua rapidez, simplicidade e eficácia, quando comparado com a execução comum, o que nos deve levar a uma cuidada interpretação e aplicação do nº 2 do artigo 148º do CPPT.”;

XIX. Naturalmente, e ainda que tendencialmente mais célere e simplificado, o processo de execução fiscal é um processo de cobrança coerciva, em que naturalmente (por imposição da própria justiça e da Constituição portuguesa), são consagradas diversas garantias aos executados;

XX. Ou seja, aqui chegados o que se verifica é que em resultado da Decisão da Comissão que condena o Estado português à recuperação de auxílios ilegais concedidos no âmbito do reconhecimento da ZFM e do regime fiscal especial ao abrigo do qual as entidades com sede naquele local eram tributadas, a Autoridade Tributária optou por recuperar os auxílios de Estado em questão através de liquidações de imposto;

XXI. E que o recurso àquele procedimento de liquidação de imposto (cfr. artigos 59.º e seguintes do CPPT) implica o cumprimento das normas que o regem, incluindo - com redobrada relevância - as normas que titulam as garantias dos contribuintes;

XXII. No que diz respeito à dispensa de prestação de garantia importa ainda notar que de acordo com o n.º 4, do artigo 52.º, da LGT, para que o Executado possa ser isentado da prestação de garantia é necessário que i) a prestação de garantia lhe cause prejuízo irreparável ou ii) que seja manifesta a sua falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido e, bem assim, que iii) a insuficiência / inexistência de bens não seja da sua responsabilidade;

XXIII. Estes requisitos, exigidos pelo n.º 4 do artigo 52° da LGT, são requisitos alternativos, como nos indica a conjunção disjuntiva “ou”, o que significa que a lei se basta com a verificação de um dos requisitos aí previstos, desde que não seja apurada a responsabilidade do executado pela insuficiência ou inexistência de bens ou de rendimentos (cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, no Processo: 02029/07, de 09-10-2007, in www.dgsi.pt).

XXIV. Ora, a Recorrente não dispõe de meios financeiros ou quaisquer bens imóveis que possa oferecer à penhora e que lhe permitam suspender este processo de execução fiscal – situação essa que o Tribunal a quo não cuidou de analisar;

XXV. Ficou demonstrado nos presentes autos a imperatividade da lei interna na execução da Decisão proferida pela Comissão Europeia, não restando senão concluir que a Sentença proferida pelo Tribunal a quo deve ser anulada por este Tribunal por ter sido proferida em sentido contrário à legislação portuguesa aplicável, devendo ser determinada a baixa dos autos e condenado o Tribunal a quo a proferir uma Sentença que analise o mérito da pretensão da ora Recorrente, como legalmente se impõe.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO MERECER PROVIMENTO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA E SUBSTITUÍDA A MESMA POR UM ACÓRDÃO QUE DÊ TOTAL PROVIMENTO À PRETENSÃO DA RECORRENTE, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS. …»

1.3. O Representante da Fazenda Pública produziu contra-alegações no âmbito das quais pugna pela improcedência do presente recurso e pela confirmação da sentença recorrida, mantendo-se, assim, “a decisão do órgão de execução fiscal que indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia”, mas não ofereceu conclusões.

1.4. O Digno Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal, emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, nos termos que se reproduzem:

«…

I – OBJETO

O presente recurso vem interposto da douta sentença de 18/03/2024, proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, que julgou improcedente a Reclamação deduzida contra a decisão de indeferimento do pedido de dispensa de garantia, referente a IRC de 2018.

A Recorrente defende que o raciocínio adotado pela Autoridade Tributária (AT) e agora corroborada pelo Tribunal a quo, padece de erro de julgamento de direito, que torna a decisão ilegal, pelo que deve ser anulada e determinada a baixa dos autos para ser proferida sentença que analise o mérito da sua pretensão.

Para a Recorrente, a questão não se prende com a vinculação do estado Português e respetivas instituições à Decisão da Comissão Europeia, mas apenas com a forma adotada na execução da referida Decisão.

A execução das decisões de recuperação de auxílios de Estado considerados ilegais deve ser feita de acordo com a ordem jurídica interna dos Estados Membros e, no caso, foi a própria TA que incumbida de proceder à sua recuperação, liquidou adicionalmente o IRC e subsequentemente, instaurou os processos de cobrança coerciva, pelo que está vinculada a cumprir a lei, nomeadamente a possibilidade de pagamento em prestações ou da suspensão do processo de execução fiscal através da prestação de uma garantia ou através da sua dispensa, incluindo as normas que titulam as garantias dos contribuintes (arts. 59º e ss. do CPPT e art. 52º, nº 4 da LGT).

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou contra-alegações no sentido da manutenção da sentença a ordem jurídica.

II – Do Mérito

Conforme resulta da sentença recorrida, “O que está na base dos presentes autos é a Decisão da Comissão Europeia (Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de dezembro de 2020 relativa ao regime de auxílios SA.21259 (2018/C) (ex - 2018/NN) aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira (ZFM) – Regime III), e que ordenou a Portugal, enquanto Estado-Membro, a imediata e efectiva recuperação dos auxílios concedidos, sob a forma de redução de impostos, de forma ilegal (cfr. art.º 5.º da Decisão).”
E porque Portugal está vinculado ao cumprimento de tal decisão, no que diz respeito aos termos em que tal recuperação se processa, a sentença invoca que “…há que atender ao teor da Comunicação da Comissão relativa à recuperação de auxílios estatais ilegais e incompatíveis (2019/C 247/01), e ainda ao Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho (também denominado «Regulamento Processual»), dado que quer a Decisão, quer a Comunicação, quer o Regulamento Processual, constituem direito da União Europeia e logo aplicáveis em Portugal nos termos do n.º 4 do art.º 8.º da Constituição da República Portuguesa.”
Por aplicação do art. 16º, nº 3 do Regulamento Processual e dos pontos 37, 45 e 119 da Comunicação, “a aplicação de normativos nacionais não é impedida pela execução de uma decisão de recuperação de auxílios ilegais.
Todavia, tais normativos não podem pôr em causa a decisão, e a obrigatoriedade da mesma ser imediata e efetiva.
O que sempre sucederia com os preceitos legais relativos à suspensão do processo de execução fiscal com dispensa de prestação de garantia.”
Em conclusão, a sentença entende que “não é admissível qualquer medida que vise o retardamento da restituição do auxílio declarado ilegal, de que constitui exemplo a pretendida dispensa de prestação de garantia para suspensão do processo de execução fiscal, até porque isso faria com que a decisão de recuperação não fosse imediata e efetiva, como se impõe nos respetivos termos da Decisão, pelo que não merece censura “a atuação da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira que desconsiderou os normativos nacionais atinentes à possibilidade de dispensa de prestação de garantia visando a suspensão do processo de execução fiscal.”

Concorda-se integralmente com a fundamentação da sentença recorrida.

A sentença recorrida, que assim decidiu relativa ao primado do direito comunitário e à especificidade da expressa conformação quanto à atuação do Estado Português no que respeita à aplicação do direito nacional no específico contexto da recuperação de auxílios ilegais não merece qualquer censura, devendo manter-se na ordem jurídica.

III - CONCLUSÃO

Termos em que se emite parecer no sentido de ser negado provimento ao presente recurso. …»


1.5. Cumpre apreciar e decidir em Conferência.


2. Fundamentação

2.1. De Facto

Em face da prova carreada para os autos, a sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

1. Pelo Serviço de Finanças do Funchal - 1 foi instaurado contra A... S.A., o processo de execução fiscal n.º ...77, por dívida de IRC do exercício de 2018 – recuperação de auxílios, no valor global de € 44 408,99 (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual e citação junta à p.i.);

2. A Reclamante solicitou junto da Banco 1... e do Banco 2... a emissão de garantia bancária, pedido que não foi aceite por tais entidades bancárias (cfr. correspondência junta com a p.i.);

3. No âmbito de tal processo de execução fiscal, a Reclamante apresentou pedido de dispensa de prestação de garantia (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual);

4. Sobre tal pedido foi proferido em 09/11/2023 despacho de indeferimento (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual e despacho de indeferimento junto à p.i.);

5. Notificada do despacho de indeferimento, veio a Reclamante apresentar a presente ação (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual e despacho de indeferimento junto à p.i.).

*
Factos não provados:
Inexistem factos não provados com relevo para a decisão da causa.
*
Motivação:
A convicção do Tribunal assentou na apreciação crítica dos documentos autênticos e particulares juntos, os quais não foram impugnados, conforme referenciado em cada alínea do probatório, tudo fundamentado no n.º 2 do art.º 34.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e no n.º 1 dos art.ºs 369.º, 370.º e 371.º, todos do Código Civil (documentos produzidos pela Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira) e no n.º 1 dos art.ºs 373.º, 374.º e 376.º, todos também do Código Civil (documentos particulares)

2.2. De Direito

A recorrente, com o argumento de que não dispunha de meios financeiros ou bens penhoráveis que lhe permitissem promover o pagamento da dívida que resultou da liquidação adicional de IRC, apresentou, junto do órgão de execução fiscal, um requerimento solicitando a suspensão do processo de execução fiscal com dispensa de prestação de garantia.

Este pedido foi indeferido com fundamento no pressuposto de que decorreria do Direito da União Europeia, designadamente (i) da Decisão da Comissão Europeia (Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de dezembro de 2020, relativa ao regime de auxílios SA.21259 (2018/C) (ex - 2018/NN) aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira (ZFM) – Regime III); (ii) da Comunicação da Comissão relativa à recuperação de auxílios estatais ilegais e incompatíveis (2019/C 247/01) e (iii) do Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho (também denominado «Regulamento Processual»): ser inadmissível qualquer medida que visasse o retardamento da restituição do auxílio declarado ilegal, de que constituiria exemplo a pretendida dispensa de prestação de garantia para suspensão do processo de execução fiscal. Até porque isso faria com que a decisão de recuperação não fosse imediata e efetiva, como se imporia nos termos da referida Decisão da Comissão.

A recorrente, por sua vez, sustenta que, tendo em conta que a recuperação de auxílios deve ser feita de acordo com as regras jurídicas nacionais, e que a AT na sequência de uma liquidação adicional de IRC iniciou um processo de execução fiscal, teria de assegurar o cumprimento das garantias ínsitas a esse processo, não as podendo afastar.

De forma sintética, dir-se-ia que a questão fundamental a que temos de responder é a de saber se decorre dos instrumentos de Direito da União Europeia invocados a inadmissibilidade da dispensa de garantia para a suspensão do processo de execução fiscal.

A resposta à questão colocada pressupõe que sejam feitas algumas precisões e delimitações no plano jurídico.

É certo que o controlo dos auxílios faz parte do Direito da União Europeia e que tem como principal suporte o artigo 107.º do TFUE. Importa lembrar também a este respeito que, regra geral, os auxílios são proibidos, havendo um procedimento específico para os controlar que decorre do artigo 108.º do TFUE e do referido Regulamento (EU) 2015/1589.

Relativamente ao TFUE, ao Regulamento (UE) 2015/1589 e às decisões do TJUE, não há dúvidas que prevalecem sobre o direito nacional, em harmonia, aliás, com o prescrito pelo artigo 8.º, n.º 4, da CRP. No que respeita à articulação das decisões da Comissão e meras Comunicações com o Direito Nacional a situação é, todavia, distinta.

No que concerne à Decisão (UE) 2022/1414 impõe-se que se refira que, não obstante as relevantes consequências que dela decorrem, não tem a mesma natureza do TFUE e do Regulamento (UE) 2015/1589, até porque poderia ceder perante uma decisão do TJUE. Já no que se refere à Comunicação 2019/C 247/01 e sem prejuízo da sua valia em termos de orientação da atuação dos Estados-Membros, é meramente soft law, não se podendo sobrepor, sem mais, ao direito nacional, sobretudo se estiverem em causa disposições que consagram matérias essenciais dos impostos, como são as garantias dos sujeitos passivos.

Infere-se, portanto, do que acabámos de referir que só tem carácter vinculativo o que decorre do TFUE, do Regulamento e, em menor medida, da Decisão.

Ora, como o TFUE não se refere especificamente ao modo de recuperação dos auxílios, releva essencialmente a esse respeito o que decorre do Regulamento (UE) 2015/1589 no seu artigo 16.º, n.º 3, que prescreve:

«Sem prejuízo de uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia nos termos do artigo 278.o do TFUE, a recuperação será efetuada imediatamente e segundo as formalidades do direito nacional do Estado-Membro em causa, desde que estas permitam uma execução imediata e efetiva da decisão da Comissão. Para o efeito e na eventualidade de um processo nos tribunais nacionais, os Estados-Membros interessados tomarão as medidas necessárias previstas no seu sistema jurídico, incluindo medidas provisórias, sem prejuízo da legislação da União.»

Na mesma linha, sem acrescentar muito mais, o artigo 5.º da Decisão da Comissão Europeia (Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de dezembro de 2020, determina que:

«1. A recuperação dos auxílios concedidos ao abrigo do regime previsto no artigo 1.º deve ser imediata e efetiva.

2. Portugal deve assegurar a execução da presente decisão no prazo de oito meses a contar da data da respetiva notificação.».

Surge como claro que a recuperação deve ser feita de acordo com as formalidades do direito nacional do Estado-Membro em causa, desde que estas permitam a execução imediata da decisão da Comissão. A remissão é, portanto, feita de forma inequívoca para o direito interno, exigindo-se apenas que as suas regras sejam aptas para o propósito de recuperar os auxílios, ou, eventualmente, que o legislador crie mecanismos para o efeito, incluindo eventuais medidas provisórias (como refere o Regulamento). Não havendo um mecanismo específico para recuperar auxílios e tendo o Estado Português, no âmbito das competências que lhe são reconhecidas, adotado a liquidação adicional e, na sequência disso, o processo de execução, será unicamente no domínio desse enquadramento que deverão, portanto, ser recuperados os auxílios.

A exigência de que a recuperação dos auxílios seja imediata e efetiva, tem de ser devidamente entendida. Isto é, o seu carácter imediato e efetivo não pode, sob pena de se desafiar a realidade dos factos, ser confundido com uma recuperação instantânea e 100% eficaz. Pois, a aplicação de um qualquer mecanismo de recuperação de auxílios tem de obedecer sempre a uma tramitação própria, devidamente harmonizada com a legalidade, e por isso pouco consentânea com uma recuperação instantânea. Isto é, a tramitação tem de ter necessariamente uma duração mínima, até para permitir a realização dos vários atos a compõem, só assim se podendo acomodar as exigências da legalidade e afastar a arbitrariedade. Consequentemente, num quadro de legalidade só poderia ser este o entendimento expresso quer no regulamento quer na Decisão, sob pena de serem postos os em causa os princípios gerais de direito partilhados pela União, como são aqueles a que alude o artigo 16.º, n.º 1, in fine, do Regulamento. O razoável é inferir da fórmula execução imediata e efetiva o imperativo de que sejam iniciadas imediatamente, sem demoras, as diligências para a recuperação do auxílio, sendo, na verdade, esse impulso o que verdadeiramente depende do Estado-membro. Isto porque haverá seguramente situações, inelutáveis, em que a efetiva recuperação do auxílio, poderá nunca ocorrer, por exemplo, devido a uma insuficiência patrimonial ou outras vicissitudes que afetem o processo de execução (o que aliás é típico e pode ocorrer com e qualquer dívida tributária, em geral).

A Autoridade Tributária não pode, no plano ad hoc, adaptar o regime legal da execução fiscal, especialmente no que respeita às garantias dos contribuintes, de modo a assegurar o que depreende serem os imperativos do Direito da União Europeia. Sobretudo se o fizer com base numa comunicação da Comissão que reveste a natureza de uma recomendação, sem caráter vinculativo, que, curiosamente, até reconhece no ponto 2.4.1.4, apesar de tudo, situações de impossibilidade absoluta de recuperação do crédito, como as que referimos. Reforçando, assim, a ideia de que a recuperação nem sempre é imediata e efetiva, tendo apenas de ser empreendida com prontidão.

Não cabe, portanto, à Autoridade Tributária modelar o que é ou não possível no âmbito da execução tributária, truncando garantias e subtraindo expedientes, substituindo-se, assim, ao legislador na criação de um regime de execução específico para dívidas decorrentes da recuperação de benefícios fiscais. A este propósito é interessante recordar que, no âmbito do artigo 169.º do CPPT, no que era o seu n.º 11, já existiu um preceito (revogado pela Lei n.º 7/2021, de 26 de fevereiro, com efeitos a partir de 1 de julho de 2021) que afastava expressamente (por via legal, naturalmente, e não por via de uma atuação administrativa) a possibilidade de suspender a execução quando estivessem em causa as dívidas de recursos próprios comunitários. Não havendo, nesse contexto, uma referência a auxílios de Estado, ou seja, a recursos estaduais; o que permite inferir que não estariam incluídos. Com o desaparecimento da única a exceção que existia, se já não estavam incluídos os auxílios de Estado e não tendo havido a substituição daquela exceção por uma mais abrangente, sai ainda mais reforçada a ideia de que não há qualquer base legal interna para o regime interno que a AT pretendeu criar.

Moldar de forma livre o processo de execução implicaria ainda uma discriminação intolerável dos sujeitos passivos que se vissem envolvidos numa execução por uma dívida fiscal que tivesse origem na recuperação de um auxílio de Estado; face a outros sujeitos passivos que devessem uma quantia exatamente igual ou superior, por razões até de maior censura, designadamente por sonegação de rendimentos, erros grosseiros ou deliberados em termos da contabilidade, só para dar alguns exemplos. Não podemos esquecer que a dívida fiscal só surgiu porque o Estado Português viu, no âmbito de uma decisão da Comissão, a vantagem fiscal que criou e que foi legitimamente aproveitada pelos sujeitos passivos, subitamente retirada. Com efeito, o próprio Estado Português a tentou manter de forma veemente como demonstram os parágrafos que se transcrevem da Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão:

«…

(64) Portugal alega que uma decisão negativa sobre o regime da ZFM teria efeitos dramáticos e irreparáveis sobre a sustentabilidade económica da Madeira (82). Por conseguinte, a Comissão deve ter em conta o estatuto de região ultraperiférica da Madeira, reconhecido no artigo 349.o do TFUE.

(220) Portugal considera que as empresas que receberam um auxílio ao abrigo do regime da ZFM adquiriram o direito à segurança jurídica e à confiança legítima de não serem objeto de qualquer decisão de recuperação (207).».


Não significa o que expomos, independentemente das consequências económicas, e sensibilidade da situação, que os sujeitos passivos não tenham de devolver o que resultou da atribuição de um auxílio ilegal, não sendo contestável, no quadro atual do Direito a União Europeia, a necessidade de devolução. Isto, porém, jamais pode implicar que, no âmbito de um processo de execução que em termos de garantias deveria ser igual a qualquer outro, se viole o princípio da igualdade, ao subtrair garantias que normalmente assistem a todos os executados.

A dispensa ou não de garantia pode ser feita com uma margem muito diminuta, permitindo-se a ponderação apenas dos elementos que decorrem do artigo 53.º, n.º 4, da LGT, designadamente a suscetibilidade de surgir um prejuízo irreparável ou verificação manifesta da falta de meios económicos, revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda, no pressuposto de que não existam fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do interessado. Pelo que as limitações decorrentes da letra do preceito citado, não admitem espaço para considerar os imperativos que decorrem da Decisão da Comissão. Assim, por maioria de razão, se afastará que, logo à partida, seja recusada a suspensão do processo de execução fiscal com dispensa de prestação de garantia, só porque, supostamente, seria isso que resultaria dos instrumentos de Direito da União Europeia invocados, tal como o fez a AT. Sendo essa atuação ainda mais censurável por se apoiar, sobretudo, numa comunicação da Comissão - 2019/C 247/01 - (de onde são citadas várias partes), centrada unicamente na recuperação dos auxílios (sem considerar as especificidades do caso concreto no confronto com leis nacionais e respetivo enquadramento constitucional particular). Mesmo no plano dos princípios gerais da União dificilmente se conceberia uma discriminação dos executados em função da situação que esteve na origem do crédito fiscal a recuperar.

Em resposta à questão fundamental, entendemos, por tudo o que referimos, que a negação da possibilidade de dispensa de garantia no quadro da suspensão da execução não poderia ter ocorrido e, subsequentemente, ter sido confirmada pela sentença recorrida, nos termos em que foi.

4. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Recorrente, revogando a decisão recorrida e anulando o despacho do órgão de execução reclamado.

Custas pela Recorrida.

Lisboa, 3 de julho de 2024. - João Sérgio Feio Antunes Ribeiro (relator) – Anabela Ferreira Alves e Russo – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes.