Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0495/23.4BEVIS
Data do Acordão:07/04/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Descritores:CONTRATAÇÃO PÚBLICA
PROGRAMA DE CONCURSO
EXCLUSÃO DE PROPOSTAS
Sumário:Não se devem considerar ultrapassados os limites percentuais máximos estabelecidos no Programa do Procedimento para os preços parciais dos diferentes capítulos de trabalhos que compõem a empreitada, quando a percentagem do preço parcial de cada um daqueles capítulos, representada à segunda casa decimal, é marginalmente superior ao número inteiro estabelecido para o respetivo capítulo.
Nº Convencional:JSTA000P32497
Nº do Documento:SA1202407040495/23
Recorrente:UNIÃO DAS MISERICÓRDIAS PORTUGUESAS E OUTROS
Recorrido 1:A..., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO


I. Relatório

1. UNIÃO DAS MISERICÓRDIAS PORTUGUESAS e B..., LDA. – identificadas nos autos – recorreram para este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte (TCAN), de 16 de fevereiro de 2024, que concedeu provimento ao recurso que interposto por A..., Lda. da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Viseu, de 3 de novembro de 2023, e, em consequência, anulou o ato de adjudicação do concurso publico para execução da «Empreitada de Requalificação do Lar ... e do ... (...) do Centro de Apoio …, localizado em ..., ...», e condenou a entidade demandada a proceder à adjudicação do referido concurso à então Recorrente, ora Recorrida.

2. Nas suas alegações, a Recorrente UNIÃO DAS MISERICÓRDIAS formulou as seguintes conclusões:

«A. O presente recurso de revista vem interposto do Acórdão proferido pelo TCA Norte, datado de 16 de fevereiro de 2024, que concedeu provimento ao recurso interposto pela empresa A..., Lda.

B. Cabia ao Tribunal apreciar e decidir – com relevância para efeitos do presente recurso – se o Saneador-Sentença do TAF de Viseu incorreu em erro de julgamento de direito, por errada interpretação da norma contida no artigo 10.º, n.º 5 do Programa do Procedimento.

C. O Tribunal a quo entendeu que a interpretação que o TAF de Viseu deu a tal norma foi errada, sendo violadora do regime jurídico aplicável e, em consequência, concedeu provimento ao recurso jurisdicional intentando pela A..., Lda.

D. A presente revista incide, sobre a interpretação que o Tribunal Central Administrativo Norte conferiu ao artigo 10.º, n.º 5 do Programa do Procedimento concursal, tendo-a feito com a prolação de um Voto Vencido e em sentido diametralmente oposto ao decidido em Saneador-Sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, em especial, sobre a densificação dos limites admitidos para cada preço parcial dos diferentes Capítulos dos Trabalhos, aferidos por percentagem, ínsito naquela norma, e a relevância para o efeito da eventual exclusão das propostas que a ultrapassassem, sendo que os mesmos não constituíam atributos da proposta, nem parâmetros base definidos no Caderno de Encargos.

E. Resulta clara e inequívoca a importância fundamental da análise desta questão em sede da mais Alta Instância Judicial, mormente em face da sua inquestionável relevância jurídica e social.

F. Afigura-se, ademais, evidente que a apreciação do presente recurso se apresenta como essencial para melhor aplicação do direito.

G. O Tribunal a quo errou no modo como interpretou o n.º 5 do Artigo 10.º do Programa do Procedimento.

H. O Programa do Procedimento é, conforme se estipula no Artigo 41.º do CCP, o regulamento (administrativo) que define os termos a que obedece a fase de formação do contrato até à sua celebração.

I. O Artigo 132.º, n.º 4 do CCP admite que o Programa do Procedimento contenha regras específicas sobre o procedimento consideradas convenientes pela entidade adjudicante, desde que não tenham por efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência

J. Nos termos da al. n), do n.º 2 do artigo 146.º do CCP, extrai-se que no relatório preliminar, o júri deve também propor, fundamentadamente, a exclusão das propostas: “n) Que sejam apresentadas por concorrentes em violação do disposto nas regras referidas no n.º 4 do artigo 132.º, desde que o programa do concurso assim o preveja expressamente.”.

K. O artigo 132.º, n.º 4 do CCP admite que o Programa do Concurso contenha regras específicas sobre o procedimento consideradas convenientes pela entidade adjudicante, desde que não tenham por efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência.

L. As entidades adjudicantes dispõem de poderes de regulamentação procedimental, podendo prever uma disciplina normativa específica nas peças, de forma a conformar o procedimento como melhor lhe aprouver, de acordo com a sua necessidade e conveniência.

M. O artigo 10.º do Programa do Procedimento, no seu n.º 5, determinava o seguinte: “5 – Na elaboração da sua proposta, os concorrentes devem ter em consideração os limites máximos admitidos para cada Capítulo do Mapa de Trabalhos e Quantidades, face ao preço global a propor, nos seguintes termos: Capítulo A – Arquitetura, 86%; Capítulo B – Fundações e Estrutura, 1%; Capítulo C – Rede de Abastecimento de Água, 1%; Capítulo D Rede de Drenagem de Águas Residuais, 1%; Capítulo E – Instalações e Equipamentos Elétricos, 5%; Capítulo F – Instalações de Telecomunicações, 1%; Capítulo G –Segurança Contra Incêndios, 1%; Capítulo H – AVAC, 6%.”.

N. O artigo 10.º, n.º 5 do Programa do Procedimento definia, assim, determinadas percentagens, por Capítulos de Trabalhos, que as propostas tinham de responder.

O. O Saneador-Sentença proferido pelo TCA Norte, in casu o ponto 8 dos Factos Provados, e tendo por base a proposta sobre a qual recaiu a adjudicação, apresenta a relação entre preços dos trabalhos (por Capítulo) e o preço contratual global.

P. Do tal quadro decorre que foram integralmente cumpridas as percentagens definidas no Programa do Procedimento, para cada um dos Capítulos identificados, como bem se decidiu no Saneador-Sentença: “Daí que, atendendo a este contexto e uso, afigura-se que a intencionalidade que se retira do estabelecimento das percentagens em causa, é a determinação de um critério objetivo que possa ser apreendido por todos os concorrentes de forma clara, sem equívocos ou indeterminação. Pelo que o sentido jurídico a se extrair do termo “percentagem” seja o que atenda aos valores das propostas dos concorrentes em termos do número inteiro da percentagem que foi definido, sem atender a qualquer casa decimal.” (Destacados nossos)

Q. E como bem invoca a Senhora Juíza Desembargadora no seu Voto de Vencido: “Note-se que o PP, não se prevê que as referidas percentagens seriam consideradas até à segunda casa decimal. Caso a Entidade adjudicante o pretendesse, tê-lo-ia feito, tal como fez relativamente ao “Modelo de Avaliação de Propostas para Adjudicação” (Anexo IV) do PP, onde expressamente se prevê, no tocante à fórmula/expressão de cálculo/modelo de avaliação das propostas, que “os cálculos matemáticos implicados serão efetuados sempre considerando 3 casas decimais”. O PP não definiu que para certa percentagem do preço total por capítulo, que essa aferição seria feita à décima, à centésima, ou à milésima. Ademais, não é despiciendo ter presente que essa regra não foi estabelecida como um parâmetro base do contrato, não constituindo um fator de avaliação definido pelo PP, conforme se pode constatar pela consulta do Anexo IV, que contém o respetivo modelo de avaliação. Não se trata de um atributo levado à concorrência, mas de uma regra quanto ao modo de apresentação das propostas.” (Destacados nossos)

R. O n.º 5, do artigo 10.º do Programa do Procedimento visava que, em sede de execução do contrato, a entidade adjudicante tivesse a previsão necessária à melhor gestão da execução da obra, nomeadamente, da sua Tesouraria, na medida, e numa leitura necessariamente integrada da proposta, haverá que conjugar os preços por Capítulos de Trabalho, com os planos de trabalhos, mão de obra e equipamento, incluindo o estaleiro, com o cronograma financeiro e plano de pagamentos, com a memória descritiva e justificativa e com a lista de preços unitários (tudo documentos exigidos pelo Programa do Procedimento).

S. O n.º 5, do artigo 10.º do Programa do Procedimento visava, igualmente, evitar a decomposição artificial de preços, mitigando eventuais constrangimentos mais ou menos comuns na execução de empreitadas, como seja a realização de trabalhos complementares, reequilíbrios financeiros do contrato, revisões de preços

T. A empreitada objeto do concurso foi “levada” à concorrência num momento de grande volatilidade no mercado e nos preços praticados, fruto de eventos que são do domínio público (pandemia devido à doença COVID, a guerra na Europa e a crise energética) e que geraram repercussões severas ao nível da rotura das cadeias de abastecimento e escassez de bens, com consequências nos preços das matérias primas, materiais e mão de obra.

U. O que originou, inclusivamente, uma intervenção legislativa, consagrando um regime excecional de revisão de preços nos contratos de empreitada e cuja vigência foi, por duas vezes, prorrogada (Decreto-Lei n.º 36/2022, de 20 de março). Do que decorre que a aferição que se pretendia com o n.º 5 do artigo 10.º do Programa do Procedimento releva, essencialmente, em sede de execução do contrato.

V. A informação solicitada nos termos do n.º 5 do artigo 10.º do Programa do Procedimento não era objeto de avaliação não integrando qualquer fator ou subfactor da mesma. Não era, assim, algo que estivesse submetido à concorrência, não sendo um atributo da proposta.

W. Quanto a esta conclusão, leia-se o Voto Vencido: “Ademais, não é despiciendo ter presente que essa regra não foi estabelecida como um parâmetro base do contrato, não constituindo um fator de avaliação definido pelo PP, conforme se pode constatar pela consulta do Anexo IV, que contém o respetivo modelo de avaliação. Não se trata de um atributo levado à concorrência, mas de uma regra quanto ao modo de apresentação das propostas.”

X. O Tribunal a quo limitou-se a uma interpretação literal (para não dizer mera leitura) do n.º 5 do artigo 10.º do Programa do Procedimento, não curando, como se impunha a um Tribunal Superior, de saber, qual a razão e o propósito de tal norma.

Y. No Acórdão sob recurso, o TCA Norte rejeita o entendimento sufragado pelo TAF Viseu, que as percentagens definidas no n.º 5 do Artigo 10.º do Programa do Procedimento não podem ser interpretadas no sentido que o valor percentual é o valor desconsiderado das casas decimais, por falta do respetivo comando regulamentar.

Z. E seguindo esta ortodoxia interpretativa, o TCA Norte parece reconduzir o n.º 5 do Artigo 10.º do Programa do Procedimento a um parâmetro base do contrato.

AA. Do n.º 3 do artigo 42.º do CCP decorre que os parâmetros base dizem respeito à execução do contrato, sendo que a peça do procedimento que contem as cláusulas a incluir no contrato é o Caderno de Encargos e não o Programa do Procedimento.

BB. O desiderato que a Entidade Adjudicante, aqui Recorrente, pretendeu com o estabelecimento do n.º 5 do artigo 10.º do Programa do Procedimento, o qual é atinente à componente financeira do contrato, está nos antípodas da interpretação extremista que decorre do Acórdão do TCA Norte.

CC. Desde logo porque a mesma corresponderia, em termos materiais, a um parâmetro base da execução do contrato, cuja, ultrapassagem, por mais milimétrica que fosse determinaria tout court a exclusão da proposta que nela recaísse.

DD. Ora, não foi essa, a vontade da entidade adjudicante, a qual, apenas, pretendeu, num momento de severa volatilidade e incerteza no mercado, no que concerne aos preços, que lhe fosse presente uma determinada estrutura de encargos financeiros por Capítulos de Trabalhos. Acontece que, tal estrutura foi manifestamente respeitada em termos de percentuais inteiros, nomeadamente na proposta sobre a qual incidiu a adjudicação (a da Contrainteressada).

EE. A norma jurídica tem uma conceção, uma história, uma forma e um objetivo a realizar. E este objetivo acompanha singularmente a vida da norma como se esta fosse uma realidade dinâmica e com um fim útil a realizar.

FF. A interpretação racional do artigo 10.º, n.º 5 do Programa do Procedimento terá sempre de ser feita, neste caso como em todos os casos, porquanto a mesma constitui um elemento integrante e imprescindível da interpretação de qualquer lei (ou de qualquer norma).

GG. O que a Entidade Adjudicante plasmou na mencionada norma foi uma necessidade dos preços (parciais) por Capítulos de Trabalhos se conformarem em termos do número inteiro da percentagem que foi definida, sem atender a qualquer casa decimal.

HH. Se Entidade Adjudicante pretendesse tal grau de exigência teria expressamente feito tal menção, tal como acontece no Modelo de Apreciação de Propostas para Adjudicação (Anexo IV do Programa do Procedimento, onde expressamente se prevê no tocante à fórmula/expressão de cálculo/modelo de avaliação das propostas, que os “Os cálculos matemáticos implicados nas operações de avaliação das propostas serão efetuados sempre considerando três casas decimais”.

II. Esta factualidade foi completamente ignorada no Acórdão em recurso, mas não passou no crivo do, bem fundamentado e acertado, Voto Vencido: “Note-se que o PP, não se prevê que as referidas percentagens seriam consideradas até à segunda casa decimal. Caso a Entidade adjudicante o pretendesse, tê-lo-ia feito, tal como fez relativamente ao “Modelo de Avaliação de Propostas para Adjudicação” (Anexo IV) do PP, onde expressamente se prevê, no tocante à fórmula/expressão de cálculo/modelo de avaliação das propostas, que “os cálculos matemáticos implicados serão efetuados sempre considerando 3 casas decimais”. O PP não definiu que para certa percentagem do preço total por capítulo, que essa aferição seria feita à décima, à centésima, ou à milésima.” (Destacados nossos)

JJ. O TCA Norte considerou que era de excluir a proposta da Contrainteressada por ultrapassar, por décimas, os valores percentuais de Capítulos (B, C, E, F, G e H) que somados não representam mais do que 14% do preço global. É importante atentar que o que se discute não são os 14%, mas sim décimas de 14%, as quais não tiveram impacto na avaliação (pontuação) das propostas, desde logo porque os preços por Capítulo não eram fator de avaliação.

KK. Tal interpretação é desconforme com a Jurisprudência desse colendo Tribunal, neste sentido o Acórdão de 21 de abril de 2022 (Proc. 03/21.1BEBRG), (disponível em www.dgsi.pt), que no seu sumário escreve: “III – Para efeitos de ponderação de exclusão de proposta com fundamento na alínea f) do nº 2 do art. 70º do CCP (“cuja análise revele que o contrato a celebrar implicaria a violação de quaisquer vinculações legais ou regulamentares aplicáveis”) – tal como na alínea e) (“cuja análise revele um preço ou custo anormalmente baixo”) - não relevam preços parcelares relativos a partes de execução do contrato, em si mesmo considerados, sem prejuízo de estes poderem servir de elementos indiciários de tais violações ou da anomalia do preço global, designadamente quando corresponderem a partes com peso significativo na execução do contrato, afetando a sua coerência e a do preço global (cfr. Ac. TJUE de 28/1/2016, proc. T-570/13, “Agroconsulting”).”

LL. Os preços parcelares por Capítulo (alegadamente violados) todos somados não significam mais do que 0,31% (zero, vírgula trinta e um por cento) do Valor Global da proposta sobre a qual recaiu a adjudicação.

MM. Em idêntico sentido o Voto Vencido proferido no Acórdão em análise: “A existir alguma irregularidade com a proposta da CI, tendo em conta que, os preços parciais, por referência às percentagens relativas a cada capítulo do mapa de trabalhos, ultrapassam o limite percentual definido no PP em algumas décimas, essa irregularidade não tem qualquer repercussão no conteúdo da proposta, não podendo configurar mais do que uma mera irregularidade sem relevo.”

NN. O princípio da concorrência, a par de outros princípios específicos do concurso público (princípios da objetividade, da publicidade e da estabilidade das regras), e também de toda a contração pública, tem que ver com uma ideia de igualdade, de justiça, de imparcialidade, de transparência, constituindo uma “verdadeira trave-mestra dos procedimentos concursais” (Marcelo Rebelo de Sousa in “O Concurso Público na Formação do Contrato Administrativo”, cit., p. 63)

OO. As sucessivas gerações de Diretivas comunitárias em matéria de contratação pública têm procurado e: “… tendo justamente como pano de fundo a ideia de uma economia aberta e de livre concorrência, assegurar a efetiva eliminação das chamadas barreiras «invisíveis» ao mercado interno da contratação pública, bem como condições fundamentais de igualdade dos agentes económicos na participação nos diversos procedimentos de formação dos contratos públicos” (Rui Medeiros in “Âmbito do novo regime da contratação pública à luz do princípio da concorrência”, Cadernos de Justiça Administrativa (CJA), N.º 69, Maio/Junho 2008, p. 4).

PP. O Acórdão do TCA Norte, na prática, ao aplicar como aplicou o n.º 5 do artigo 10.º do Programa do Procedimento, afasta a concorrência, conduzindo a um status quo em que apenas uma proposta poderia ter sido admitida.

QQ. O Supremo Tribunal Administrativo, em Acórdão de Julho de 2003 (Proc. n.º 491/03), dita: “…como resulta da lei e tem sido afirmado pela Jurisprudência do STA, o acto de admissão de uma candidatura após apreciação da regularidade formal da proposta e da avaliação da capacidade financeira, económica e técnica do concorrente (…) apenas assegura a passagem do concorrente de respectiva proposta à fase de “análise das Propostas” (…). Acrescentando-se logo a seguir que “… apenas por motivos resultantes da análise do conteúdo da proposta, designadamente que impeçam o seu cotejo com os demais concorrentes por eventual desvio das exigências e especificações do caderno de encargos, a proposta pode ser excluída (rejeitada) …”. (Destacado nosso).

RR. O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 3 dezembro de 2020 (Processo n.º 02189/19.6BEPRT), que no seu sumário determina que: “I – (…). II - A apreciação de subfactores submetidos à concorrência, relativos à execução do contrato de empreitada, que no aspeto da sua avaliação, são pontuados na sua muito insuficiência não são manifestamente elementos suscetíveis de conduzirem à exclusão da proposta quer nos termos do artigo 146.º, n.º 2, al. d) do CCP quer nos termos do artigo 70.º, n.º 2 do mesmo CCP. III - A não apresentação dos planos de trabalhos exigidos na proposta só pode levar à exclusão de uma proposta quando, na situação concreta em que a questão se coloque, se comprove que a sua falta contende com a avaliação da mesma ou que resulte do caderno de encargos a sua essencialidade. IV - A incompletude e falta de alguns planos previstos nas condições técnicas do projeto, no que toca à manutenção e garantia não tendo gerado a impossibilidade de avaliação da proposta e da sua comparação com as restantes não se repercute ao nível da exclusão da proposta, mas antes ao nível da sua avaliação da mesma, já que se trata de aspeto da proposta submetido à concorrência. V - O que está em sintonia com o caderno de encargos onde se admite que o projeto de execução a considerar para a realização da empreitada possa ser, em última instância, o apresentado pelo empreiteiro, e aceite pelo dono da obra relativamente a aspetos da execução submetidos à concorrência.” (Destacados nossos)

SS. É atualmente pacífico que as formalidades – mesmo as legalmente impostas – não se encontram todas no mesmo plano, pelo que a inobservância de uma ou de outra não tem necessariamente de ser fulminada com a mesma sanção. Aceita-se comummente, de facto, que a qualificação de uma formalidade (assim como de um aspeto ou elemento da proposta ou de uma qualquer regra concursal) como essencial – ou não – deve operar à luz dos grandes parâmetros que enformam os procedimentos concursais, designadamente os princípios da concorrência, igualdade, imparcialidade, publicidade, transparência, estabilidade e boa-fé. Veja-se, em abono desta tese, a “nova” redação do Artigo 72. º do CCP, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 78/2022, de 7 de novembro e trazida à colação no Voto Vencido plasmado no Acórdão do TCA Norte em recurso.

TT. O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 1 de outubro de 2015 (Proc. 0856/15) (disponível em www.dgsi.pt): “ I - A preterição da formalidade prevista no art. 60º, nº 4 do CCP, de apresentação da declaração de preços parciais, degrada-se numa mera irregularidade ou formalidade não essencial, desde que, comprovadamente, se conseguiu atingir a finalidade visada com a exigência de tal declaração, pela análise da lista de preços unitários conjugada com o mapa de quantidades.

UU. O Voto Vencido no Acórdão sob censura, preporá no seguinte sentido, o qual se acompanha inteiramente: “Note-se que, com a alteração operada ao CCP em 2022, com a aprovação do Decreto-Lei nº 78/2022, de 07/11. O legislador ampliou «o âmbito do dever de regularização até fronteiras antes não conhecidas, certificando-se de que o leque de exemplos não taxativos incluídos no nº 3 do artigo 72º fosse tão alargado que impossibilitasse o mesmo tipo de interpretação propostas pela jurisprudência e pela doutrina muito restritivas». Ou seja, com a nova redação do nº 3 do artigo 72º do CCP o intérprete fica a sabe que «o Âmbito do regime de regularização de candidaturas e propostas pode abranger qualquer tipo de formalidade violada no momento da respetiva entrega, independentemente de qualquer avaliação da sua essencialidade, desde que o candidato ou concorrente não precise, para proceder ao suprimento, de afetar o conteúdo da proposta. […] Mas a leitura do restante teor do nº 3 do artigo 72º do CCP com as respetivas alíneas que enumeram um leque (aliás não taxativo) de situações que a lei já considera a priori como suscetíveis de suprimentos, esclarece o intérprete de que aqueles princípios materiais da contratação pública não exercem agora a mesma função restritiva do âmbito do regime de regularização das candidaturas e propostas que exerciam com o regime aprovado em 2017» - Cfr. Pedro Fernández Sánchez, in “A Revisão de 2022 do Regime de Formação e Execução de Concursos Públicos” AAFDL, Editora, págs. 26 e 27.”

VV. A decisão, colocada em crise pela Acórdão do TCA Norte, em nada impediu a avaliação das propostas face ao critério de adjudicação definido.

WW. O Acórdão do TCA Norte ao excluir propostas perfeitamente aptas a servir a boa execução do contrato, com base numa eventual ultrapassagem, só observável à décima, das percentagens definidas para cada um dos Capítulos dos Trabalhos, e sem qualquer estribo nas regras do Programa do Procedimento, configura uma clara violação do Princípio da Concorrência e do Princípio da Prossecução do Interesse Público.

XX. A exclusão da proposta apresentada pela Contrainteressada sempre seria de afastar face ao Princípio da Proporcionalidade e ao Princípio do Favor do Procedimento.

YY. No domínio da contratação pública, o Princípio da Proporcionalidade assume, igualmente, inegável importância, sendo mesmo um dos pilares fundamentais da mesma (cfr. Artigo 1.º-A, n.º 1 do CCP). “O princípio da proporcionalidade, também replicado na estrita disciplina da atividade administrativa, mas ínsito, desde logo, na ideia de Estado de Direito consagrada no artigo 2.º da CRP e em matéria de restrições a direitos, liberdades e garantias, conforme o subsequente artigo 18.º, o qual, e segundo a síntese de Miguel Nogueira de Brito, “tem especial incidência na definição do universo concorrencial admitido a participar no procedimento, dele decorrendo que, à luz da função e objetivos do procedimento em causa, não sejam adotadas medidas restritivas da concorrência sem justificação suficiente e adequada para o efeito [,enquanto,] já no plano da condução do procedimento, (…) [se] dirige (...) especialmente às decisões das entidades adjudicantes, exigindo que [as mesmas] (…) em matérias tão diversas quanto as prorrogações de prazos, a valorização de irregularidades das propostas, a aplicação dos critérios de adjudicação, a concessão dos períodos de tempo necessários à consulta ou obtenção de documentos e à elaboração de reclamações, etc., sejam adotadas com base nos subprincípios da proporcionalidade (adequação, necessidade e ponderação).”(Ricardo Branco, “Os princípios jurídicos gerais em matéria de contratação pública” inserto na obra “Comentários ao Código dos Contratos Públicos – Volume I, 5ª Edição- 2023”) (Destacados nossos).

ZZ. A recentíssima jurisprudência desse Colendo Tribunal, o Acórdão do STA, de 11 de janeiro de 2024 (Proc. 01661/22.5BEPRT), que transcreve Acórdão do TCA Norte, datado de 13 de setembro de 2023 (disponível em www.dgsi.pt) dispõe o seguinte: “E é aqui que vem desaguar a questão trazida a recurso nas Contra alegações de recurso por parte da Recorrida, pois que à luz dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, não podem ser decididas exclusões do procedimento que se mostrem manifestamente desproporcionadas e prejudiciais para o interesse público, já que, como referimos supra, deve ser favorecida a concorrência, sempre com salvaguarda da observância da não violação do princípio da igualdade dos concorrentes.

AAA. O Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 20 de outubro de 2023 (Proc. 01661/22.5BEPRT) (disponível em www.dgsi.pt): “E é aqui que vem a desaguar a questão trazida a recurso nas Contra alegações de recurso por parte da Recorrida, pois que à luz dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, não podem ser decididas exclusões do procedimento que se mostrem manifestamente desproporcionadas e prejudiciais para o interesse público, já que, como referimos supra, deve ser favorecida a concorrência, sempre com salvaguarda da observância da não violação do princípio da igualdade dos concorrentes.”

BBB. O preço, alegadamente, ultrapassado face às percentagens definidas no n.º 5 do artigo 10.º do Programa do Procedimento, para cada um dos Capítulos supra identificados, é no total de 8.653,44€ (oito mil, seiscentos e cinquenta e três euros e quarenta e quatro cêntimos).

CCC. O que representa, tendo em conta o preço global da proposta sobre a qual recaiu a adjudicação [2.768.836,00€ (dois milhões, setecentos e sessenta e oito mil e oitocentos e trinta e seis euros)], uma insignificante percentagem de 0,31% (zero, vírgula trinta e um por cento).

DDD. Se essa aferição for feita tendo em conta o preço base do concurso [2.900.000,00€ (dois milhões e novecentos euros)], obtemos uma percentagem, ainda mais residual, no caso 0,29% (zero, vírgula vinte e nove por cento).

EEE. Quanto à questão dos preços parciais, em particular quando não relevam para efeitos de avaliação das propostas, invoca-se a seguinte jurisprudência: Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 21 de abril de 2022 (Proc. 03/21.1BEBRG), (disponível em www.dgsi.pt): “Estamos, pois, longe de também poder afirmar, tal como no caso do Acórdão do TJUE2 , que “a importância da parte da execução do contrato” a que se refere o preço parcial em questão “na globalidade do contrato não levanta nenhuma dúvida” ou que “não se referia a um aspeto menor ou isolado da proposta e era, assim, suscetível de afetar a coerência do preço global proposto e, consequentemente, da proposta no seu conjunto”. Pelo contrário, no caso dos autos, a parte de execução do contrato a que se refere o preço parcial em questão é, indubitavelmente, de escassa importância na globalidade do contrato, referindo-se a um aspeto menor e isolado da proposta (no máximo, de importância relativa a 2% da globalidade do valor do contrato). Mas o mais decisivo é que, sendo o objeto da ponderação da anomalia o “preço global”, o TJUE confirmou, no caso que apreciou, a anomalia do preço global da proposta ali em questão, ao passo que, no caso dos presentes autos, nenhuma dúvida é levantada, seja por quem for, quanto à normalidade do “preço global” da proposta da Adjudicatária/Contrainteressada. O aludido preço parcial não é, pois, no caso dos autos, “suscetível de afetar a coerência do preço global proposto e, consequentemente, da proposta no seu conjunto”. (Destacados e sublinhado nossos)

FFF. Assim, como o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 1 de outubro de 2015 (Proc. 0856/15) (disponível em www.dgsi.pt): “É, precisamente, este o caso em apreço em que a preterição da formalidade prevista no art. 60º, nº 4 do CCP, de apresentação da declaração de preços parciais, se degradou numa mera irregularidade ou formalidade não essencial, uma vez que, comprovadamente, se conseguiu atingir a finalidade visada com a exigência de tal declaração, pela análise da lista de preços unitários conjugada com o mapa de quantidades, tal como entendeu o acórdão recorrido.” (Destacados nossos)

GGG. Uma eventual decisão de exclusão da proposta da Contrainteressada B..., Lda, sempre seria totalmente desproporcionada, quer face aos valores em causa, quer face à relevância, que in casu não foi nenhuma, de tal aspeto na avaliação das propostas.

HHH. No que concerne ao Princípio do Favor do Concurso, como defende Rodrigo Esteves de Oliveira, em “Os princípios gerais da contratação pública”, nos “Estudos de Contratação Pública” (CEDIPRE), I volume, Coimbra Editora, 2008, página 111, seguindo o entendimento anti-formalista prevalecente na nossa doutrina e jurisprudência: “…haverá uma situação de irrelevância do vício de procedimento sempre que (e na medida em que) os fins específicos que a imposição legal (ou regulamentar) da formalidade visava atingir tenham sido comprovadamente alcançados, ainda que por outra via” (na jurisprudência, seguindo este entendimento, ver os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, de 22.10.2010, no processo n.º 323/10.0 BECBR, de 27.01.2011, processo n.º 228 10.5 BEVIS, de 22.06.2011, processo n.º 00770 10.8 BECBR e de 27.04.2012, processo 619/11.4 AVR).

III. No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 11 de fevereiro de 2015 (processo 490/14.4 CBR): “Em termos muito sintéticos, dir-se-á apenas que a concorrência enquanto umbrella principle da contratação pública (na expressão de Rodrigo Esteves de Oliveira, Os princípios..., cit., 67), releva-se, além do mais, na garantia do mais amplo acesso aos procedimentos por parte dos interessados em contratar (v., entre outros, Marcelo Rebelo de Sousa/ André Salgado de Matos, Contratos Públicos, Direito Administrativo Geral, T. III, 2.ª ed., 2009, 83; Rodrigo Esteves de Oliveira, Os princípios..., cit., 68; Miguel Nogueira de Brito, Os princípios..., cit., 16). O que não pode deixar de significar, acrescentamos nós, que esse “amplo acesso” não pode ser restringido através de um regime de causas de exclusão das propostas, absolutamente rígido, que admita a exclusão de propostas por irregularidades formais, mesmo quando se mostrem insignificantes, inconsequentes e de fácil resolução. Portanto, se alguma orientação para o caso em apreço pode ser retirada do princípio da concorrência, será sempre no sentido da solução que perfilhamos, em detrimento da exclusão da proposta.” (Destacado nosso).

JJJ. Bem como, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, datado de 16 de abril de 2020 (processo n.º 164/19.0BEFUN): “(…) II. Caso a proposta de um concorrente não contenha determinado documento, que tinha de ser apresentado em separado dos demais por exigência do programa do procedimento, decorre dos artigos 57.º, n.º 1, al. b), e 146.º, n.º 2, al. b), do CCP, que a mesma deve ser excluída. III. Contudo, se estiverem em causa elementos funcionais que visam fornecer ao júri informação relativa ao preço proposto e alcance das coberturas abrangidas, e em tal proposta ficou disponível para o júri a informação pretendida, permitindo a análise comparativa com as demais, afigura-se desproporcionada a decisão de exclusão daquela proposta, fundada numa ilegalidade que se deverá ter por degradada em mera irregularidade, nos termos previstos no artigo 163.º, n.º 5, al. b), do CPA” (Destacado nosso).

KKK. E ainda relativamente ao princípio favor participacionis, veja-se a posição que obteve vencimento no aresto jurisprudencial emitido por esse Supremo Tribunal Administrativo, datado de 28 de abril de 2021 (processo n.º 015/20.2BEFUN): “No domínio da contratação pública, deve observar-se o princípio do favor participationis, ou do favor do procedimento, que impõe que, em caso de dúvida, se privilegie a interpretação da norma que favoreça a admissão do concorrente, ou da sua proposta”. (Destacados nossos)

LLL. Destarte, seja com amparo no princípio da concorrência, da prossecução do interesse público e da proporcionalidade, seja com estribo principiológico no favor participacionis, seja, ainda, com fundamento em tudo o que foi expressamente invocado e que por imperativa e conscienciosa economia expositiva nos dispensamos de invocar quanto à não violação do n.º 5 do Artigo 10.º Programa do Procedimento nunca a proposta apresentada pela Contrainteressada B..., Lda poderia ser excluída».

3. A Recorrente B... aderiu integralmente às conclusões do recurso interposto pela UNIÃO DAS MISERICÓRDIAS.

4. A Recorrida A... contra-alegou nos seguintes termos:

«(1) O presente recurso é interposto do douto Acórdão de fls., datado de 16 de Fevereiro de 2024, proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte, que, além do mais, julga «conceder provimento ao recurso jurisdicional [apresentado pela aqui Recorrida, da douta decisão prolatada em primeira instância pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu], revogar a sentença recorrida e julgar a presente ação totalmente procedente» – portanto, e em suma, satisfazendo, de forma integral, os pedidos deduzidos pela A... nos presentes autos e, assim, sendo

a. anulada a decisão de adjudicação tomada pela ora Recorrente no âmbito do concurso em crise,

b. anulado o contrato de empreitada que constitui seu objecto e

c. condenada a ora Recorrente a proferir nova decisão de adjudicação, cumprindo o dever vinculado de excluir as propostas apresentadas pelas concorrentes contrainteressadas B... e C....

(2) Pensa-se que o Tribunal a quo fez boa interpretação e aplicação dos factos e do direito – e, portanto, o presente recurso não tem fundamento.

(3) Em primeiro lugar, pensa-se que o presente recurso de revista se afigura inadmissível, de acordo com os pressupostos normativos consagrados no artigo 150º do CPTA, considerando que, conforme enuncia a Recorrente, a «questão que se pretende ver dirimida» é «a interpretação que o Tribunal Central Administrativo conferiu ao Artigo 10º, nº 5, do Programa do Procedimento concursal» (sic) – e, portanto, de forma notória:

i. Primeiro, a questão objecto de sindicância não parece conter especial vocação expansiva, de modo que a controvérsia seja susceptível de extravasar os limites da situação concreta – ou seja, não está em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental (cf. artigo 150º/1 do CPTA, primeira parte);

ii. Segundo, só em excesso de linguagem poderá a Recorrente afirmar, ou sugerir, que a douta decisão recorrida é “ostensivamente errada”, “juridicamente insustentável”, ou envolta de relevante “divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais”… – isto é, não se vislumbra (nem de perto, nem de longe) que a admissão desta revista seja claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito (cf. artigo 150º/1 do CPTA, segunda parte);


iii. Terceiro, a revista tem por fundamento a alegada (à luz da interpretação feita pelo Tribunal a quo) violação directa de uma norma regulamentar, prevista no programa do concurso dos autos – e não de qualquer lei substantiva ou processual (cf. artigo 150º/2 do CPTA.

(4) E também a admissibilidade da revista não poderia resultar da simples alegação – absolutamente abstracta e especulativa – da suposta postergação de princípios estruturantes da contratação pública.

(5) Em segundo lugar, verificar-se a improcedência da questão recursiva submetida pelo crivo da revista, na medida em que a Recorrente lavra os fundamentos do seu recurso em manifesto erro – sucintamente, considerando que (v. preâmbulo das alegações):

i. Na questão dos autos, não está em causa a aferição de atributos da proposta, avaliados com referência a parâmetros base definidos no caderno de encargos (artigo 42º/3 e 4 do CCP);

ii. Na questão dos autos, também não está em causa a aferição de limites do caderno de encargos fixados de forma vinculada (artigo 42º/5 do CCP);


iii. Na questão dos autos, aliás, não está sequer em causa a análise de qualquer matéria relacionada com o caderno de encargos, mas antes a violação de uma regra específica do programa do concurso (artigo 132º/4 do CCP), cuja violação (sendo assim prescrita no regulamento concursal) determina a proposta [artigo 146º/2.n) do CCP].


(6) Neste contexto, pensa-se que é completamente extrapolado e despiciendo todo o argumentário da Recorrente, no essencial, baseado na interpretação que faz daqueles aspectos jurídicos.

(7) Em terceiro lugar, improcede a questão substantiva

i. Cingido ao essencial, o recurso tem por fundamento a interpretação que o Tribunal a quo faz da norma contida no artigo 10º/5 do programa do procedimento que regula a tramitação do concurso público dos autos;

ii. Crê-se que esta douta decisão recorrida é correcta, porquanto: (a) O sentido jurídico da regra interpretada é objectivo, na medida em que resulta de um expresso valor aritmético, fixado em números inteiros;

a. De acordo com a simples lógica matemática, as décimas excedem necessariamente ao número inteiro;
b. E a proposta adjudicada pela Recorrente no concurso viola essa regra objectiva – pelo que devia ser excluída.

iii. No entender da Recorrida, não existe assim qualquer substracto fáctico ou jurídico que suporte a interpretação propugnada pela Recorrente a qual, aliás, violaria clamorosamente o princípio da estabilidade das peças procedimentais, na medida em que pretende reescrevê-las, passe o termo, juntando umas décimas acrescidas ao limite matemático fixado no programa do concurso.

iv. A aceitar-se a tese da aqui Recorrente, e tomando por exemplo o limite procedimental de 1%, que excesso poderia afinal ser permitido aos concorrentes? Atingir o valor de 1,9%... quase o dobro?

v. E, a vingar essa tese, que certeza e segurança jurídica passa a conformar a prática da contratação pública, supostamente, consubstanciado num procedimento administrativo de natureza formal? Sendo o “sentido jurídico”, afinal, uma “textura aberta”, têm as entidades adjudicantes a faculdade de “interpretar” limites assentes em valores matemáticos?...

vi. A ser assim:

a. Um procedimento cujo preço base seja fixado em um milhão, afinal, pode admitir propostas no valor de um milhão e noventa e nove cêntimos, porque o sentido jurídico era o de o regulamento do concurso se pretender reportar apenas ao número inteiro? E até onde vai a “textura aberta”? Até um milhão novecentos e noventa e nove mil?
b. Um procedimento que fixe o prazo para apresentação das propostas até às 17 horas, afinal, pode admitir propostas submetidas às 17 horas e um segundo? Ou até às 17h59?...

vii. Pensa-se que a leitura feita pela Recorrente – assente na tese da primeira instância e do voto vencido no Tribunal a quo – é infundada e, aliás, numa dimensão extraprocessual, susceptível de provocar o caos na prática jurídica da contratação pública».

5. O recurso de revista foi admitido por Acórdão da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, em formação de apreciação preliminar, de 18 de abril de 2024, por se entender que «face à resposta divergente que as instâncias deram às questões suscitadas na acção e pela Recorrente na revista, é aconselhável a intervenção deste STA, para conhecimento de tais questões, com afastamento da regra da excepcionalidade das revistas».

6. Notificado para o efeito, o Ministério Público não se pronunciou – artigo 146.º/1 do CPTA.

7. Sem vistos, dada a natureza urgente do processo - artigo 36.º/1/c e 2 do CPTA.


II. Matéria de facto

8. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

«1) No dia 06/04/2023 a Ré publicitou o concurso público referente à empreitada de obras públicas designada de “Empreitada de Requalificação do Lar ... e do ... (...) do Centro de Apoio …, localizado em ..., ...”;

2) O Programa do Procedimento desse concurso público estabeleceu, quanto ao preço, que “Na elaboração da sua proposta, os concorrentes devem ter em consideração os limites máximos admitidos para cada Capítulo do Mapa de Trabalhos e Quantidades, face ao preço global a propor, nos seguintes termos:

Capítulo A – Arquitetura, 86%;
Capítulo B – Fundações e Estrutura, 1%;
Capítulo C – Rede de Abastecimento de Água, 1%;
Capítulo D – Rede de Drenagem de Águas Residuais, 1%;
Capítulo E – Instalações e Equipamentos Elétricos, 5%;
Capítulo F – Instalações de Telecomunicações, 1%;
Capítulo G –Segurança Contra Incêndios, 1%;
Capítulo H – AVAC, 6%”

e que “A violação do disposto no n.º 5 constitui motivo de exclusão da proposta, nos termos da alínea e) do artigo 18.º do presente Programa do Procedimento”;

3) Mais estabeleceu que um dos documentos da proposta seria a “Lista de Preços Unitários, acompanhada do respetivo ficheiro informático com extensão “.xls” devidamente preenchido e permitindo a sua utilização sem restrições de cálculo, elaborada em conformidade com os limites definidos nos n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º do presente Programa”;

4) Igualmente estabeleceu que “São excluídas as Propostas que: Que violem o disposto no n.º 5 do artigo 10.º do presente Programa”;

5) Assim como que “Os cálculos matemáticos implicados nas operações de avaliação das propostas serão efetuados sempre considerando três casas decimais”;

6) A Autora e a Contrainteressada apresentaram propostas a esse concurso público;

7) A Autora não requereu qualquer esclarecimento quanto à compreensão e interpretação do Programa do Procedimento;

8) Na proposta que apresentou, a Contrainteressada juntou o seguinte mapa resumo do seu orçamento:

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9) No dia 08/05/2023 foi elaborado o Relatório Preliminar de análise das propostas, tendo o júri do procedimento ordenado a Contrainteressada em primeiro lugar, a Autora em segundo e a proposta da sociedade C..., Lda. em terceiro; mais propôs a adjudicação da empreitada à Contrainteressada e concedeu o direito de audiência prévia aos concorrentes;

10) A Autora pronunciou-se em sede de audiência prévia, tendo suscitado – entre outras - a violação da regra procedimental prevista no artigo 10º, n.º 5 do programa do procedimento por parte das concorrentes B... e C... e que o júri devia propor a exclusão das respetivas propostas;

11) No dia 10/08/2023 o júri do procedimento elaborou o relatório final tendo mantido as conclusões do relatório preliminar; mais indeferiu a questão suscitada pela Autora na audiência prévia, com os seguintes fundamentos:

[IMAGEM]


(…)

[IMAGEM]

(…)

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12) No dia 16/08/2023 a Ré decidiu adjudicar a empreitada à Contrainteressada».





III. Matéria de direito

9. A questão de direito que se discute no presente recurso é a da interpretação do número 5 do artigo 10.º do Programa do Procedimento, nomeadamente no que se refere à densificação dos limites percentuais máximos ali estabelecidos para os preços parciais dos diferentes capítulos de trabalhos que compõem a empreitada.
Em causa, concretamente, está a questão de saber se se devem considerar ultrapassados aqueles limites quando a percentagem do preço parcial de cada um daqueles capítulos, representada à segunda casa decimal, é superior ao número inteiro estabelecido para o respetivo capítulo na citada disposição regulamentar.

10. As instâncias divergiram quanto à interpretação a dar à norma em questão.
Para o TAF de Viseu, o sentido jurídico a extrair do termo «percentagem» é o que atende «aos valores das propostas dos concorrentes em termos do número inteiro da percentagem que foi definido, sem atender a qualquer casa decimal», pelo que, «sendo de considerar que a proposta da Contrainteressada não violou os limites quantitativos, expressos em percentagem sem atender às casas decimais, estabelecidos no artigo 10º, n.º 5 do Programa do Procedimento, não se verifica a ilegalidade que lhe foi assacada pela Autora, não existindo assim fundamento para excluir a proposta da mesma do concurso público em apreço e, consequentemente, anular-se a adjudicação que foi efetuada pela Ré».
O TCAN, em contrapartida, considerou que «tendo a Entidade Demandada previsto que “(…) na elaboração da sua proposta, os concorrentes devem ter em consideração os limites máximos admitidos para cada Capítulo do Mapa de Trabalhos e Quantidades, face ao preço global a propor (...) não há como concluir que o valor percentual é o valor desconsiderado das casas decimais regulamentar».
E, em face dessa conclusão, não teve dúvidas, à luz do número 6 do artigo 10º do Programa do Procedimento, que a violação dos limites máximos preconizados no número 5 do mesmo preceito regulamentar «(…) constitui motivo de exclusão da proposta, nos termos da alínea e) do artigo 18º do presente Programa do Procedimento (…)».
Vejamos então.

11. Nos termos do número 5 do artigo 10.º do Programa do Procedimento, «na elaboração da sua proposta, os concorrentes devem ter em consideração os limites máximos admitidos para cada Capítulo do Mapa de Trabalhos e Quantidades, face ao preço global a propor, nos seguintes termos:

Capítulo A – Arquitetura, 86%;
Capítulo B – Fundações e Estrutura, 1%;
Capítulo C – Rede de Abastecimento de Água, 1%;
Capítulo D – Rede de Drenagem de Águas Residuais, 1%;
Capítulo E – Instalações e Equipamentos Elétricos, 5%;
Capítulo F – Instalações de Telecomunicações, 1%;
Capítulo G –Segurança Contra Incêndios, 1%;
Capítulo H – AVAC, 6%»
Da referida disposição resulta claro, simultaneamente, que o limite máximo estabelecido para cada capítulo foi definido percentualmente, em função da proporção do preço de cada capítulo em relação ao preço global da empreitada, e não em valores monetários absolutos, e que aquelas percentagens foram definidas em números inteiros, sem qualquer densificação adicional em casas decimais.
Significa isto que, mais do que fixar um preço máximo absoluto, o que aquela disposição faz é estabelecer uma proporção entre os preços de cada parcela da empreitada.
De outro modo não se compreenderia que os limites não sejam estabelecidos em valores monetários, mas em percentagens, dado que, logicamente, desde que uma parcela seja inferior ao seu limite máximo inteiro, uma ou mais das restantes serão, necessariamente, superiores ao respetivo limite, se aferidas à décima, à centésima, ou à milésima.
Por absurdo, aliás, um preço expresso num valor monetário que não seja divisível pelo respetivo limite percentual máximo, será sempre maior ou menor do que aquele limite, quando seja representado à décima, à centésima ou à milésima.

12. Não oferece discussão que um preço parcelar que corresponda a uma percentagem do preço global da empreitada expressa em casas decimais positivas é superior ao respetivo número inteiro.
É óbvio que 1,1 é superior a 1, e o que é do domínio da matemática não é passível de controvérsia jurídica.
A questão que se coloca, no entanto, no plano da interpretação jurídica, é a de saber se, não estabelecendo aquela norma um limite máximo absoluto de preços parcelares, mas uma proporção entre eles, deve entender-se que uma divergência expressa em décimas é suscetível de comprometer a proporção que a mesma visa obter.
E a resposta a essa questão é claramente negativa.
Desde logo, porque não deve o intérprete distinguir onde o teor literal da norma não distingue, introduzindo nela um grau de densificação que, manifestamente, não foi desejado pelo seu autor, como aliás resulta claro do confronto desta disposição com outra, do mesmo articulado, constante do Anexo IV do Programa do Procedimento, onde expressamente se prevê, relativamente à fórmula/expressão de cálculo/modelo de avaliação das propostas, que «os cálculos matemáticos implicados serão efetuados sempre considerando 3 casas decimais”.
Por outro lado, porque uma divergência expressa em décimas é, evidentemente, uma divergência marginal, insuscetível de comprometer substancialmente a proporção que o estabelecimento daqueles limites visa alcançar.
A esse respeito, aliás, tem razão a Recorrente quando invoca o princípio do favor do concurso, ou da concorrência, e o princípio da proporcionalidade, para argumentar que qualquer dúvida que a interpretação desta norma possa suscitar sempre deverá ser resolvida em benefício da admissibilidade das propostas, e da sua avaliação competitiva.

13. Interpretando-se a norma no sentido em que ela não impõe, ou não consente, a densificação das percentagens nela estabelecidas em casas decimais, não se chega, verdadeiramente, a colocar a questão da necessidade do suprimento de eventuais irregularidades em que tenha incorrido o adjudicatário na elaboração da sua proposta.
Não obstante, não se deve deixar de dizer, como se fez no voto de vencido com que foi aprovado o acórdão recorrido, que «a existir alguma irregularidade com a proposta da CI, tendo em conta que, os preços parciais, por referência às percentagens relativas a cada capítulo do mapa de trabalhos, ultrapassam o limite percentual definido no PP em algumas décimas, essa irregularidade não tem qualquer repercussão no conteúdo da proposta, não podendo configurar mais do que uma mera irregularidade sem relevo».
Com se observou ali, com a aprovação do Decreto-Lei n.º 78/2022, de 7 de novembro, que alterou o Código dos Contratos Públicos, uma eventual irregularidade da proposta da adjudicatária sempre seria suprível, nos termos do número 3 do artigo 72.º do Código dos Contratos Públicos, na medida em que não se trata de um aspeto da proposta sujeita a concorrência, passível de afetar o princípio da igualdade entre os concorrentes, ou o princípio da concorrência, e o seu suprimento não alteraria substancialmente o respetivo conteúdo.

14. Deste modo, conclui-se que o acórdão recorrido fez errada interpretação do disposto no número 5 do artigo 10.º do Programa do Procedimento, não se verificando, nos termos do número 6 do mesmo artigo, e dos artigos 41°, 132°, número 4 e 146°, número 2, alínea n), todos do Código dos Contratos Públicos (CCP), fundamento para a exclusão da proposta do adjudicatário, ora Recorrente B... e consequentemente, para a adjudicação da empreita à Recorrida.

15. Resta, por fim, apreciar a questão da dispensa do remanescente da taxa de justiça, pese embora ela apenas tenha sido suscitada pelos Recorrentes, que são vencedores, e não pela Recorrida, que é vencida.
Trata-se de questão que pode ser conhecida oficiosamente pelo juiz da causa, nos termos do número 6 do artigo 7.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP), e neste caso justifica-se que o seja, considerando que o valor da causa é bastante elevando - € 2.620.732,32 - e implica o pagamento de um remanescente de taxa de justiça desproporcional ao custo do serviço prestado pelo Tribunal.
Na verdade, a questão decidida não se revelou ser particularmente complexa, a sua apreciação traduziu-se numa tramitação processual simples, potenciada pela adequada conduta processual das partes.
As partes – e em especial a Recorrida – apresentaram, articulados normais, com uma motivação não excessivamente longa, com conclusões claras e concisas. Ao assim proceder, a Recorrida não demandou ao tribunal a realização de um trabalho que fosse para além do que normalmente se exige para a devida identificação das questões suscitadas, tendo atuado de modo a contribuir para a agilização do serviço de prestação da justiça.
Pelo que se justifica dispensá-la integralmente do pagamento do remanescente da taxa de justiça.


IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em conferência, em conceder provimento aos recursos e, em consequência, em revogar o acórdão recorrido e em confirmar a sentença do TAF de Viseu.

Custas pela Recorrida, com dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do artigo 7.º, n.º 6, do RCP. Notifique-se


Lisboa, 4 de julho de 2024. – Cláudio Ramos Monteiro (relator) – Pedro Manuel Pena Chancerelle de Machete – Pedro José Marchão Marques.