Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0925/15.9BEPNF
Data do Acordão:07/11/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P32534
Nº do Documento:SA2202407110925/15
Recorrente:AA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

AA, id. nos autos em epígrafe, notificada da decisão proferida pelo TCA Norte e não se conformando com a mesma na medida em que negou provimento ao recurso por si interposto da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, no âmbito da impugnação judicial das liquidações adicionais de IRS de 2011 e 2012, vem, nos termos do disposto no artigo 285.º do CPPT interpor recurso de revista.

Alegou, tendo concluído:
1 - A presente Revista deve ser admitida por estarem verificados os respetivos pressupostos (artigo 285.º, do CPPT), porquanto as questões controvertidas se revestem de importância fundamental atenta a sua relevância jurídica e social, sendo, ainda, a admissão do recurso essencial para uma melhor aplicação do direito;
2 – Está em causa a apreciação, feita pelo Tribunal Central Administrativo Norte, por um lado, sobre o âmbito e alcance do dever de fundamentação do ato de liquidação, concretamente, quais são os parâmetros mínimos de fundamentação exigível e se pode ser admitida fundamentação a posteriori, designadamente, a que se retira da contestação apresentada em sede de impugnação judicial;, por outro lado, está em causa saber se, em face do previsto na última parte do n.º 3 e no n.º 5 do artigo 60.º da LGT, podia em concreto ser dispensada a audição da recorrente antes das liquidações, convocando para este efeito a figura de atos consequentes articulada com o princípio do aproveitamento do ato;
3 – Ou seja, está em causa saber se o dever de fundamentação subjacente ao n.º 3 do artigo 268.º da CRP e artigo 77.º da LGT se pode considerar cumprido quando das notas de liquidação não consta a indicação das normas legais aplicáveis ou qualquer explicação, ainda que sumária, sobre o motivo da liquidação, e, por isso, se as exigências de fundamentação se podem diluir a ponto de não ser exigível que o ato tributário não contenha sequer os requisitos mínimos de fundamentação que o n.º 2 do artigo 77.º da LGT expressamente prevê;
4 – Isto porque, a ratio dos normativos aqui em causa é clara ao estabelecer que o dever de motivação dos atos tributários se concretize de forma acessível e expressa, e não implícita ou presumível, ainda que essa exposição possa ser sumária e, por isso, possa limitar-se à indicação das normas legais aplicáveis, à qualificação e quantificação dos factos tributários e à expressão das operações de apuramento da matéria tributável e do imposto;
5 - A potencialidade de se verificarem tomadas de posição contraditórias sobre quais são os parâmetros mínimos de fundamentação dos atos tributários, conduz a que seja pertinente que se clarifique esta questão, evidenciando-se que uma decisão do Supremo Tribunal Administrativo sobre este tema seria, assim, objetivamente útil e teria extrema relevância na salvaguarda da tutela jurisdicional efetiva dos sujeitos passivos, com destaque para a questão da pertinência de fundamentação a posteriori, face a situações em que a administração tributária, no decurso do processo judicial, adita fundamentos à fundamentação que acompanhou a emissão do ato tributário;
6 – A par, importa saber se a finalidade subjacente ao direito de audiência prévia dos interessados se compadece com situações em que se convoca, para legitimar o seu afastamento, a figura de atos consequentes articulada com o princípio do aproveitamento do ato, desconsiderando que a última parte do n.º 3 do artigo 60.º da LGT contém uma ressalva que, articulada com a previsão do n.º 5 do mesmo normativo, exige que seja direta e inequívoca a relação entre a audição do contribuinte numa das fases anteriores do procedimento descrito nas alíneas b) a e) do n.º 1 e a subsequente liquidação, i.e. que os fundamentos, de facto e de direito, que foram comunicados ao contribuinte para efeitos do exercício do direito de audição sobre o projeto de decisão (n.º 5 do artigo 60.º da LGT) sejam os mesmos que estão subjacentes ao ato tributário de liquidação que veio a ser efetuado, daqui derivando de forma direta e imediata a sua participação na formação dessa decisão;
7 – E, ainda, se nesta circunstância, a preterição desta formalidade se podia degradar em formalidade não essencial, mesmo sem que resulte evidenciado que a audição prévia não tivesse qualquer suscetibilidade de influenciar a decisão da AT de emitir as liquidações em crise;
8 - Também esta questão se revela de complexidade jurídica superior ao comum, porquanto convoca a ponderação dos verdadeiros contornos do direito de audição prévia e das eventuais situações em que o mesmo pode ser afastado, concretamente com base no n.º 3 do artigo 60.º da LGT, máxime por apelo à figura de “atos consequentes”;
9 – É grande a probabilidade de situações que possam subsumir-se à hipótese configurada, pelo que a questão apresenta aspetos indiciadores de que a solução que venha a ser erigida possa constituir uma orientação para a apreciação de outros casos;
10 – Estamos, assim, perante questões que vão muito para além da definição concreta da lide em causa, porque se prendem com a melhor interpretação do dever de fundamentação e dos contornos do direito de participação dos interessados, questões que, salvo o devido respeito, não foram devidamente enquadradas e decididas nas instâncias, reclamando, assim, a prolação de uma decisão por parte desse Colendo Tribunal que seja a mais conforme ao direito aplicável, para evitar uma contradição de valoração insanável no âmbito da aplicação daqueles institutos, da mens legis que lhe está subjacente e contrária à unidade do sistema jurídico;
11 – Não se trata, portanto, de uma mera operação de interpretação de normas jurídicas, mas da conjugação e subsunção jurídicas de direitos consagrados na Constituição e na Lei Geral Tributária como garantias fundamentais dos contribuintes, quer no que respeita à fundamentação dos atos tributários quer em relação à participação dos contribuintes na formação dos atos tributários que lhes digam respeito, que conjuntamente e com a configuração sub judice, não se mostra até à data efetuada pelos tribunais superiores, sendo inequívoca a possibilidade de replicação em casos futuros;
12 – No que respeita à questão da fundamentação dos atos tributários, a decisão recorrida contraria o estabelecido no Acórdão do Pleno do STA de 07.06.2017, no Processo 0723/15, segundo o qual, “No que concerne aos actos tributários de liquidação, o n.º 2 do art.º 77º da LGT estabelece os parâmetros mínimos de fundamentação. Estes actos podem conter uma fundamentação sumária, que, no entanto, não pode deixar de conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.”, e, bem assim, o Acórdão do STA de 21.11.2012 no Proc. 0736/12, em que se salienta que «(…) a lei constitucional e tributária são expressas quanto ao dever de motivar os actos tributários (artigos 268.°, n.° 2 da Constituição da República, 77.° da Lei Geral Tributária e 66.°, n.° 2 do Código do I.R.S), admitindo-a de forma sucinta e mesmo por remissão, mas impondo-a de forma expressa, que não meramente implícita, presumível ou intrínseca, pois, (…) não incumbe aos contribuintes anteverem, anteciparem ou preverem os motivos que conduziram à alteração da sua situação tributária (cfr. sentença recorrida, a fls. 48 dos autos), antes constitui dever da Administração o de fundamentar nos termos legais os actos tributários e em matéria tributária potencialmente lesivos, sem excepções à regra, (…).»;
13 – Perante liquidação adicional de IRS, as exigências de fundamentação não se podem compadecer com a mera indicação de “demonstração de liquidação de IRS” standardizada, a que é anexada uma “demonstração de acerto de contas”, com enunciação de números de notas de liquidação de “estorno” e de “acerto”, sem qualquer explicação, ainda que sumária, sobre o motivo da alteração à rúbrica das perdas a reportar e ao imposto apurado na primitiva liquidação de IRS e sem qualquer referência às disposições legais subjacentes a esta nova liquidação,
14 – Transferindo para o contribuinte o dever de descortinar a motivação para a emissão dessa liquidação de IRS e o respetivo suporte legal;
15 – Aliás, o TCA Sul pronunciou-se sobre situação de facto substancialmente idêntica à dos presentes autos e em sentido contrário ao aqui decidido, considerando que a notificação ao contribuinte de correções promovidas a determinado exercício não invalida que o mesmo tenha de tomar conhecimento, através de fundamentação específica, dos termos e condições em que essas correções se repercutem no apuramento do imposto devido em anos subsequentes ao que foi objeto de correções – cfr. Acórdão de 10.03.2022, proferido no Processo n.º 1490/11.1BELRA;
16 – Donde, a falta de diligência administrativa no cumprimento do dever legal de fundamentação não pode ser transferida para o contribuinte (exigindo-se que depreenda para além do que é expectável ao cidadão médio) e também não poderá ser suprida através de fundamentação a posteriori, tal como se verifica nos presentes autos;
17 – E quanto ao direito de audição prévia, a possibilidade de dispensa de audição no caso dos “atos consequentes” não pode ter o alcance que as instâncias lhe conferiram, dada a inelutável lesão do princípio da participação a que a mesma conduziria, como conduziu na situação aqui em apreço;
18 – A razão de ser e a finalidade do direito de audição é permitir o confronto dos pontos de vista da Administração Fiscal com os do contribuinte sobre todos os aspetos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito que estiverem em causa e que este possa, inclusivamente, suscitar ou requerer a realização de provas que invalidem ou ponham em causa os caminhos que a Administração intenta percorrer;
19 – Pelo que, a “importação” para o procedimento tributário de liquidação da figura dos atos consequentes não dispensa a audição prévia sempre que essa “consequência” não resulta inequivocamente compreendida/apreendida por parte dos contribuintes, por via de anterior participação no procedimento, sob pena de evidente lesão das garantias constitucionais consagradas a este respeito;
20 – Para efeitos da dispensa de audição antes da liquidação tem que atender-se a um conceito muito restrito de ato consequente, de forma a não colocar em causa a verdadeira ratio e essência do direito de participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito, assegurando que a decisão de procedimento concretamente em causa e a respetiva fundamentação de facto e de direito já foi objeto de comunicação ao contribuinte nos termos e para os efeitos previstos nos números 1 e 5 do artigo 60.º da LGT;
21 – E não pode haver dúvida de que a audição prévia respeita tanto a questões de facto como de direito, como resulta do estabelecido no n.º 2 do artigo 121.º do CPA e decorre do Acórdão do STA de 23.02.2012, proferido no Proc. n.º 059/12, em que consigna: «Trata-se, em suma, do direito que assiste aos contribuintes interessados de serem ouvidos num determinado procedimento tributário, antes de ser proferida a decisão, com vista a garantir a observância de princípios que regem a actividade procedimental no plano da relação jurídica tributária e que impõem a participação e a transparência procedimental, pilares fundamentais de um Estado de direito. Deste modo, sempre que se esteja na presença de um procedimento tributário há que permitir a participação dos cidadãos nas decisões que lhes digam respeito, de modo a que possam contribuir para um cabal esclarecimento dos factos e para uma mais adequada e justa decisão, sob pena de preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão (...)»;
22 – Como foi decidido no Acórdão desse Douto STA, de 25.06.2015, Proc. 1391/14, “O facto de a matéria tributável que serviu de base à liquidação se dever já considerar estabilizada e fixada em procedimento autónomo de avaliação no qual o contribuinte teve oportunidade de participar, não significa, sem mais, que seja dispensável a notificação para exercício do direito de audiência prévia à liquidação, pois o direito de audiência não tem como única finalidade a possibilidade de participar na fixação da matéria colectável, antes podendo essa participação (que o direito de audiência visa assegurar) assumir outros domínios da formação da decisão final”;
23 – Pelas razões apontadas, deverá ser admitido o presente recurso de revista dada a necessidade de o aresto daqui resultante orientar os Tribunais sobre estas matérias, definindo o sentido que deve presidir à respetiva jurisprudência, em questões que se consideram de relevância;
24 – Não pode a aqui recorrente conformar-se com a análise apriorística sacada pelas instâncias, quando as questões colocadas se revelam de complexidade, como supra deixamos apontado, e, salvo o devido respeito, demandavam maior atenção e decisão diversa;
25 – Tal como se expressou na impugnação judicial, as liquidações de IRS objeto de impugnação não contêm qualquer fundamentação de facto ou de direito que elucide sobre a razão para a sua emissão, nem a impugnante foi ouvida a esse respeito antes da emissão das liquidações;
26 – Como a jurisprudência desse Colendo Tribunal vem considerando, a exigência legal e constitucional de fundamentação decorrente dos artigos 268º, n.º 3 da CRP e 77.º da LGT visa, primacialmente, permitir aos interessados o conhecimento das razões que levaram a autoridade administrativa a agir, por forma a possibilitar-lhes uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do ato e a sua impugnação contenciosa.
27 – Para atingir esse objetivo, a fundamentação deve proporcionar ao destinatário do ato a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela entidade que praticou o ato, de forma a poder saber-se claramente as razões por que se decidiu da forma que decidiu e não de forma diferente;
28 – Ou seja, a motivação do ato deve ser percetível ao destinatário, o seu conteúdo deve ser acessível e suficiente para esclarecer o contribuinte, colocado na posição de um destinatário normal – o bónus pater familiae de que fala o artigo 487.º, n.º 2 do Código Civil –, sobre as razões pelas quais a decisão foi tomada;
29 – Como se refere no Acórdão do STA de 16.11.2016 (Proc. 0954/16), há uma declaração mínima, no que toca à fundamentação dos atos tributários, para que se cumpram as exigências legais de fundamentação e que visam que o contribuinte possa optar conscientemente entre conformar-se com o ato ou contra ele reagir administrativa ou contenciosamente;
30 – E nesse conteúdo mínimo da declaração fundamentadora deverá incluir-se a indicação ou a referência à norma legal subjacente à prática do ato, a par das operações de cálculo do imposto, da indicação da taxa aplicável, etc.
31 – E no que respeita aos atos tributários de liquidação – em causa nos presentes autos – o Acórdão do Pleno do STA de 07.06.2017, no Processo 0723/15, assinalou que “o n.º 2 do art.º 77º da LGT estabelece os parâmetros mínimos de fundamentação. Estes actos podem conter uma fundamentação sumária, que, no entanto, não pode deixar de conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.”
32 – Assim, se a “Demonstração de Liquidação de IRS” emitida em cada um dos anos em causa no processo de impugnação judicial não contém as disposições legais aplicáveis nem qualquer explicação, ainda que sumária, sobre o motivo da liquidação,
33 – É forçoso concluir que não cumpre, sequer, os parâmetros mínimos de fundamentação dos atos tributários, enunciados no n.º 2 do artigo 77.º da LGT, em que se exige que a fundamentação contenha sempre as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo;
34 - Ademais, há que salientar que a fundamentação tem que ser contemporânea à prática do ato e integrante do mesmo, na medida em que a fundamentação “a posteriori” não satisfaz a exigência legal de fundamentação dos atos tributários;
35 – No caso em apreço, só através da contestação apresentada pela Fazenda Pública é que a recorrente ficou a conhecer as razões determinantes da prática dos atos de liquidação impugnados, i.e., que as liquidações adicionais de 2011 e 2012 estão relacionadas com a correção aos elementos declarados com referência ao ano de 2010, que foi objeto de ação de inspeção;
36 – A compreensão do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela AT, bem como, a perceção das disposições legais subjacentes às liquidações impugnadas, revelada na decisão proferidas pelas instâncias, advém, única e exclusivamente, dos esclarecimentos prestados pela Fazenda Pública na contestação apresentada nos presentes autos e dos documentos juntos a essa peça, que não da fundamentação constante das liquidações objeto de impugnação judicial, dado que, como consta inequivocamente desses atos, é inexistente;
37 – Contudo, como se salienta no Acórdão do STA de 28.10.2020, proferido no Proc. 02887/13.8BEPRT, «I- No contencioso de mera legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial previsto no art. 99.º e segs. do CPPT, o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado em face da fundamentação contextual integrante do próprio acto, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados a posteriori. II-Assim, não pode a AT, em sede de recurso jurisdicional pretender que se aprecie a legalidade da correcção que esteve na base da liquidação impugnada à luz de outros fundamentos senão aqueles que constam da declaração fundamentadora que oportunamente externou.»
38 – Pelo que, a tese acolhida no Acórdão recorrido esvazia o conteúdo e a ratio do dever de fundamentação dos atos tributários, mormente dos atos de liquidação lesivos dos direitos e interesses legítimos dos contribuintes que a Constituição e Lei Geral Tributária expressamente consagram como garantia fundamental destes,
39 – Não podendo, por essa razão, merecer acolhimento, por não traduzir uma decisão conforme ao dever de fundamentação dos atos tributários e contrariar a jurisprudência dominante sobre esta matéria;
40 – Por outro lado, no que respeita ao vício de preterição de formalidade legal por omissão do direito de audição prévia, não podemos subscrever, também, o entendimento expresso no Acórdão recorrido;
41 – O direito de audição consagrado no artigo 60.º da LGT corresponde a um direito constitucional aplicado ao procedimento tributário, enquanto corolário do princípio da participação dos cidadãos na formação das decisões que lhes digam respeito, visando assegurar uma tutela preventiva contra qualquer lesão dos seus direitos ou interesses – cfr. artigo 267.º da CRP;
42 – Para esse efeito, prevê-se que a Administração Tributária comunique ao sujeito passivo o projeto da decisão e os seus fundamentos, de forma a que este fique a conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito que estiverem em causa, e se possa pronunciar sobre os mesmos;
43 – O artigo 60.º da LGT estabelece, contudo, no n.º 2, situações em que é dispensada a audição, consignando-se, ademais, no n.º 3, que “tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais ainda se não tenha pronunciado”;
44 – As instâncias vieram a concluir que o caso presente encontra plena cobertura no n.º 3 do artigo 60.º da LGT porque “a Impugnante foi sujeita a uma ação inspetiva, de âmbito geral, relativa ao ano de 2010, tendo sido notificada do projeto de Relatório de Inspeção Tributária para sobre o mesmo se pronunciar, assim se assegurando o seu direito de audição prévia”,
45 – Ultrapassando o facto de nenhuma referência constar desse projeto de relatório de 2010 sobre correções aos anos de 2011 e 2012, através do conceito de atos consequentes;
46 – E desconsiderando que a última parte do n.º 3 do artigo 60.º da LGT contém uma ressalva que, articulada com a previsão do n.º 5 do mesmo normativo, exige que seja direta e inequívoca a relação entre a audição do contribuinte na fase anterior do procedimento descrito nas alíneas b) a e) do n.º 1 e a subsequente liquidação, i.e. que os fundamentos, de facto e de direito, que foram comunicados ao contribuinte para efeitos do exercício do direito de audição sobre o projeto de decisão (n.º 5 do artigo 60.º da LGT) sejam os mesmos que estão subjacentes ao ato tributário de liquidação que veio a ser efetuado, daqui derivando de forma direta e imediata a sua participação na formação dessa decisão;
47 – Assim, se a liquidação adicional relativa aos anos de 2011 e 2012, tida por efeito ou consequência das correções ao ano de 2010, constitui um facto novo sobre o qual não houve pronúncia por parte da Recorrente, dado que no procedimento de inspeção que antecedeu a liquidação relativa a 2010 e em concreto no projeto de relatório da inspeção tributária, nada é referido a este respeito, não podia ser dispensada a sua audição antes da liquidação invocando-se, para o efeito, a previsão do n.º 3 do artigo 60.º da LGT e desconsiderando o teor do n.º 5 do mesmo normativo;
48 – Para efeitos da dispensa de audição antes da liquidação tem que atender-se a um conceito muito restrito de ato consequente, de forma a não colocar em causa a verdadeira ratio e essência do direito de participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito, assegurando que a decisão de procedimento concretamente em causa e a respetiva fundamentação de facto e de direito já foi objeto de comunicação ao contribuinte nos termos e para os efeitos previstos nos números 1 e 5 do artigo 60.º da LGT;
49 – Pelo que, a possibilidade de dispensa de audição prévia no caso dos “atos consequentes” não pode ter o alcance que as instâncias lhe conferiram, dada a inelutável lesão do princípio da participação dos contribuintes nas decisões que lhes digam respeito a que a mesma conduziria, como conduziu na situação aqui em apreço;
50 – Por outro lado, não é certo que a audição prévia da recorrente não tivesse qualquer suscetibilidade de influenciar a intenção da AT em emitir as liquidações em causa nos autos;
51 – Podia invocar que a impugnação judicial da liquidação de IRS relativa ao ano de 2010 constitui questão prejudicial das correções que a AT pretendia levar a cabo aos anos de 2011 e 2012, devendo, por essa razão, aguardar-se pelo desfecho daquele processo judicial, evitando, assim, a necessidade de ter de reagir contenciosamente contra essas liquidações antes de estar definitivamente assente a factualidade de que dependem;
52 – Esta argumentação era, efetivamente, suscetível de pôr em causa o caminho que a Administração Fiscal se propunha percorrer, i.e., de vir a inverter o projeto de decisão de proceder, desde logo, à correção das perdas reportadas em 2011 e 2012 através de liquidações adicionais, e, nessa medida, não pode afastar-se a relevância da audição da Recorrente, condição sine qua non para a aplicação do princípio do aproveitamento do ato, como resulta do Acórdão do Pleno do STA de 22.01.2014, no Processo 0441/13;
53 – Pelo exposto, a decisão recorrida ao não proceder ao correto enquadramento das questões sub judice, fez errada interpretação e aplicação do direito, devendo, por isso, ser revogada;
54 - Ao decidir nos termos em que o fez, a decisão recorrida violou, além do mais, as seguintes normas:
- Da Lei Geral Tributária, os artigos 60.º e 77.º, n.ºs 1 e 2;
- Da Constituição da República Portuguesa, os artigos 20.º, 267.º, n.º 5 e 268.º, n.º 3;
- Do Código do Procedimento Administrativo, o artigo 121.º;
- Do Código do IRS, o artigo 66.º;
Nestes termos, deve presente Recurso ser admitido e, concedendo-se provimento ao mesmo, ser revogada a decisão recorrida.

Cumpre decidir da admissibilidade do recurso.

O presente recurso foi interposto como recurso de revista excepcional, havendo, agora, que proceder à apreciação preliminar sumária da verificação in casu dos respectivos pressupostos da sua admissibilidade, ex vi do n.º 6 do artigo 285.º do CPPT.
Dispõe o artigo 285.º do CPPT, sob a epígrafe “Recurso de Revista”:
1 - Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo, quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
2 - A revista só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual.
3 - Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.
4- O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
5- Na revista de decisão de atribuição ou recusa de providência cautelar, o Supremo Tribunal Administrativo, quando não confirme a decisão recorrida, substitui-a por acórdão que decide a questão controvertida, aplicando os critérios de atribuição das providências cautelares por referência à matéria de facto fixada nas instâncias.
6- A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Tributário.

Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do transcrito artigo a excepcionalidade do recurso de revista em apreço, sendo a sua admissibilidade condicionada não por critérios quantitativos mas por um critério qualitativo – o de que em causa esteja a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – devendo este recurso funcionar como uma válvula de segurança do sistema e não como uma instância generalizada de recurso.
E, na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal Administrativo - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 2 de abril de 2014, rec. n.º 1853/13 -, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória - nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.».

Vejamos, pois.
Como claramente resulta do disposto no artigo 285º, n.º 3 do CPPT, neste recurso de revista, apenas é permitido ao Supremo Tribunal Administrativo aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, não devendo o recurso servir para conhecer, em exclusivo, de nulidades da decisão recorrida ou de questões novas anteriormente não apreciadas pelas instâncias.
Igualmente não pode servir o recurso de revista para apreciar estritas questões de inconstitucionalidade normativa, que podem discutir-se em recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.

No essencial pretende a recorrente que este Supremo Tribunal se pronuncie sobre duas questões apreciadas pelas instâncias, saber se os actos de liquidação impugnados se mostravam devidamente fundamentados e saber se no caso concreto não se impunha à AT que tivesse realizado a audição prévia em momento anterior à emissão das liquidações.
As instâncias após terem analisado a matéria de facto relevante e terem concluído que os procedimentos que deram origem às liquidações agora impugnados se tratavam de uma mera consequência de uma correcção da liquidação referente ao exercício anterior, concluíram, face à matéria de facto disponível, que a fundamentação externada pela AT era suficiente para que a recorrente pudesse apreender correctamente as razões de facto e de direito que determinaram as liquidações e mais concluíram que no caso concreto não se justificava a audição prévia uma vez que sobre as ilegalidades que determinavam tais correcções já a recorrente se havia pronunciado no momento próprio.
Ora, daqui se percebe com clareza, que as decisões das instâncias não desconsideraram a jurisprudência maioritária sobre a matéria, aliás, invocaram-na para fundamentar a razão pela qual concluíram pela não verificação de ambas as ilegalidades.
Por outro lado, e como bem se percebe, tais decisões estão perfeitamente enquadradas pelos contornos concretos do caso concreto, não resultando de uma leitura atenta da decisão recorrida que se possa concluir ter ocorrido um claro e evidente erro de julgamento, aliás a solução jurídica encontrada configura-se como uma das soluções possíveis, repete-se, no caso concreto.
Conclui-se, assim, que o presente recurso não está em condições de ser admitido.

Pelo exposto, acordam os juízes deste Supremo Tribunal Administrativo, Secção do Contencioso Tributário, que compõem a formação a que alude o artigo 285º, n.º 6 do CPPT, em não admitir o presente recurso de revista.
Custas do incidente pela recorrente, com t.j. em 3 Ucs.
D.n.

Lisboa, 11 de Julho de 2024. – Aragão Seia (relator) – Francisco Rothes – Isabel Marques da Silva.