Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:077/23.0BCLSB
Data do Acordão:06/20/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:HELENA MESQUITA RIBEIRO
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR
AGENTE
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ACUSAÇÃO
AUDIÊNCIA PRÉVIA
NULIDADE
SANÇÃO DISCIPLINAR
Sumário:I- O n.º 10 do artigo 32.º da Lei Fundamental manda expressamente aplicar aos processos sancionatórios duas das garantias mais importantes consagradas no âmbito do processo penal: os direitos de audiência e de defesa do arguido. O direito disciplinar não pode ser compreendido à margem dos princípios e das regras nucleares do processo penal.
II- Nos termos do disposto no artigo 4.º, al. e) do RDFPF (e artigo 1.º, al. f) do CPP), constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de uma infração diversa ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
III- A indicação dos factos que sustentam a aplicação da sanção disciplinar, definem o objeto do processo disciplinar. A partir da dedução da acusação disciplinar só estes factos é que serão objeto de apreciação pela entidade que detém o poder disciplinar.
IV- Não estando em vigor à data da prática dos factos imputados ao arguido (ano de 2019) a norma do artigo 127.º-B do RDFPF, que apenas foi introduzida na versão do RDFPF, publicado em 13/07/2020, para vigorar a partir da época 2020/2021, o mesmo não podia ter sido validamente acusado pela infração prevista e sancionada pelo artigo 127.º-B do RDFPF.
V- Tendo os factos descritos na acusação disciplinar sido alterados por despacho posterior datado de 02.08.2022, por via do qual foi assacada ao arguido a infração disciplinar prevista e punida no artigo 186.º do RDFPF, à qual corresponde uma sanção disciplinar máxima mais elevada do que a prevista na norma pela qual fora acusado, está-se perante uma situação não enquadrável na previsão do.º 4 do artigo 243.º do RDFPF.
VI- A violação do direito de audição do arguido em processo disciplinar determina a nulidade do procedimento disciplinar sancionatório, na medida em que constitui ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa. Sempre que o arguido venha a ser punido por factos ou preceitos legais não indicados na acusação, estamos perante uma situação de falta de audiência do arguido, geradora de nulidade do procedimento disciplinar.
(Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).
Nº Convencional:JSTA00071855
Nº do Documento:SA120240620077/23
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:AA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO DE REVISTA
Objecto:ACÓRDÃO DO TCA SUL
Decisão:NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO
Área Temática 1:PROCESSO DISCIPLINAR
Área Temática 2:REGULAMENTO DESPORTIVO
Legislação Nacional:ARTIGOS 4.º, 127.º-B, 186.º E 243.º, N.º 4 DO REGULAMENTO DISCIPLINAR DA FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Jurisprudência Nacional:ACS. TC 666/94 E 549/2008, ACS STJ DE 24.02.2021 (PROC. 15/20.2YFLSB), 31.03.2016 (PROC. 8/16.YFLSB) 30.06.2020 (PROC. 49/19.0YFLSB)
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I. RELATÓRIO

1.A FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL [FPF] vem, invocando o artigo 150.º do CPTA, interpor «recurso de revista» do acórdão do TCA Sul - datado de 11.01.2024 - que decidiu conceder provimento à «apelação» deduzida por AA, melhor sinalizado nos autos, e, em conformidade, revogar o acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto - de 29.03.2023 - e «declarar a nulidade» do ato pelo qual este último foi punido pela prática da «infração disciplinar prevista e punida pelo artigo 186.º n°1 do RDFPF» - Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol.

2. Para o efeito apresentou alegações, que culminaram nas seguintes conclusões:

«1. A Recorrente vem interpor recurso de revista para o STA do Acórdão proferido pelo TCA Sul, que deu provimento ao recurso interposto pelo Recorrido, revogando o acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto que julgou improcedente o recurso apresentado pelo ora Recorrido, que correu termos sob o n.º 63/2022.

2. Em concreto, o presente recurso versa sobre o segmento decisório do TCA Sul, revogando a decisão arbitral recorrida, em absolver o ora Recorrido, da prática da infração prevista e sancionada pelo artigo 186.º, nº 1 do RDFPF, revogando a sanção que lhe havia sido aplicada de impossibilidade de registo durante 2 (duas) épocas desportivas e cumulativamente na sanção de 18 (dezoito) UC de multa, ou seja, € 1.836,00 (mil, oitocentos e trinta e seis euros).

3. A questão em apreço diz à temática da atividade de intermediário, seus impedimentos e conflitos de interesses, matéria que está na ordem do dia e cuja importância e relevância social é suficiente para que seja conhecida por este Tribunal;

4. O Acórdão proferido, salvo o devido respeito, faz uma profunda errada apreciação e aplicação do direito.

5. A questão essencial trazida ao crivo deste STA – atividade de intermediário, seus limites e potenciais conflitos de interesses - revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida alguma que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito.

6. É verdade que o STA não pode ser chamado a pronunciar-se sobre todas as questões que lhe são colocadas, mas apenas quando a sua intervenção seja necessária para uma melhor aplicação do direito. Também não se ignora que a questão é complexa do ponto de vista jurídico e implica um profundo conhecimento das especificidades da realidade e do direito desportivo, o que, salvo o devido respeito, parece falhar neste Acórdão do TCA Sul.

7. Entende o Tribunal a quo, que existiu “uma clara alteração substancial dos factos, posto que foi imputada ao arguido uma infração diversa, com a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, cf. artigo 1.º, al. f), do CPP, e artigo 4º, al. e), do RDFPF. Sem que se mostre observado o procedimento previsto no artigo 359.º do CPP, sem que se alcance a indicação em sentido contrário da recorrida, foram violadas as garantias de defesa do recorrente. E a consequência é a nulidade do ato punitivo, pois conforme estatui o artigo 379.º, n.º 1, al. b), do CPP, é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º”.

8. Tendo em conta que, no número 3 do artigo 243.º do RDFPF, se estabelece, de forma expressa, a possibilidade de se proceder à alteração não substancial dos factos e à alteração da qualificação jurídica, contanto se conceda ao arguido possibilidade de pronúncia, no prazo de 5 (cinco) dias – procedimento que, no caso concreto, foi devidamente cumprido, conforme é demonstrado pelo processo disciplinar junto aos autos –, revela-se, a esta luz, cristalino que, no vertente caso, não existe fundamento algum que legitime a nulidade determinada pelo TCA Sul.

9. Além disso, no requerimento de fls. 748 a 754, o ora Recorrido, pronunciando-se quanto ao teor da alteração da qualificação jurídica, vem aduzir que “[o] processo disciplinar não pode ser “acomododado” para da melhor forma “condenar”», concluindo, citando jurisprudência, que «por ausência da necessária narração dos factos se mostrava a acusação ferida de nulidade e, por conseguinte, deveria, no momento próprio, ter sido rejeitada [artigo 311.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, alínea b), do CPP], não pode deixar de ser, na presente fase processual, outra senão a da absolvição do arguido/recorrente».”

10. O mesmo parece entender o TCA Sul, que, de forma surpreendente, diz que “sem que se alcance a indicação em sentido contrário da recorrida, foram violadas as garantias de defesa do recorrente” mesmo tendo sido dado prazo de defesa ao Recorrido…

11. Perante tal torna-se importante clarificar que, neste âmbito sancionatório, o despacho de acusação não consubstancia um verdadeiro ato administrativo (nos termos definidos pelo artigo 148.º do Código do Procedimento Administrativo, doravante CPA), mas antes um ato procedimental ou prodrómico, desprovido de eficácia externa, inserido numa sucessão instrumental necessária à formulação de uma decisão sancionatória.

12. Em virtude dessa natureza meramente procedimental, não acompanha o regime de invalidade do ato administrativo, previsto nos artigos 161.º a 164.º do CPA, não admitindo, nomeadamente e, salvo contadas exceções, imediata impugnação judicial (cf. artigo 51.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).

13. Conforme refere, e bem, o Tribunal Arbitral do Desporto neste ponto: “Mesmo que houvesse dúvida sobre a natureza substancial ou não da alteração da imputação feita, ao ter sido observado o procedimento do artº 359º do CPP, foram, dessa forma, salvaguardadas as garantias de defesa do Arguido/Recorrente, a efetividade do princípio do acusatório, e foi desde logo logrado a consecução da teleologia subjacente aos preceitos”.

14. Assim, demonstrado que está que foi garantida a defesa e audiência prévia do Recorrido, então arguido, não se compreende o decidido pelo Tribunal a quo.

15. A condenação do Recorrido sustentou-se em variada e extensa prova, toda ela devidamente suportada e devidamente fundamentada no Acórdão do CD, que não merece, quanto a este ponto, nenhuma censura.

16. A norma sancionatória em causa (artigo 186.º, n.º 1 do RDFPF) exige, para que se entenda consumada conduta disciplinarmente relevante, que, em concreto, se demonstre o exercício, de facto, da atividade de intermediário, quando, por força do Regulamento de Intermediários da FPF, tal exercício se veja impedido.

17. No caso concreto, em face do vertido em sede de fundamentação de facto, que não foi impugnada, recorde-se, demonstrou-se que o Recorrido, girando sob o nome comercial A..., aceitou representar, ainda durante a época desportiva 2018/2019, a B..., SAD, na negociação da transferência internacional, do jogador BB, do ... para a referida sociedade desportiva.

18. Mais se demonstrou, que, quer à data da outorga do respetivo contrato de representação, quer posteriormente (pelo menos até à data da prolação do despacho de acusação), inexistia, junto da FPF (como se exigia, nos termos das disposições legais e regulamentares acima sindicadas), registo de intermediário em nome do Recorrido, ou a favor de entidade que girasse sob a designação comercial A....

19. E, assim, não podem subsistir dúvidas quanto ao exercício, por este, da atividade de intermediário.

20. Por conseguinte, o Recorrido, ao exercer a atividade de intermediário, na ausência de registo prévio na FPF, ainda atuando sob as vestes de uma entidade que gira sob a designação comercial A..., incumpriu o disposto no artigo 37.º, n.º 1 da Lei n.º 54/2017 e, em consequência, desrespeitou, igualmente, o previsto nos artigos 5.º, n.º 2 e 6.º, n.ºs 1 e 2 do Regulamento de Intermediários da FPF.

21. E, nessa medida, tendo exercido, sem prévio registo, atividade de intermediação, encontram-se preenchidos, no vertente caso, todos os elementos típicos que constituem a facti species da norma sancionatória em análise.

22. Razões pelas quais não se pode manter o decidido pelo TCA Sul, devendo o Acórdão recorrido ser revogado e mantido o decidido pelo TAD.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis,

Deverá o presente recurso de revista ser admitido, sendo determinando procedente o recurso apresentado, e, consequentemente, revogado o acórdão proferido pelo TCA Sul no segmento recorrido, com as necessárias consequências,

ASSIM SE FAZENDO O QUE É DE LEI E DE JUSTIÇA.»

3. O recorrido AA apresentou contra-alegações, mas não formulou conclusões, pugnando pela inadmissibilidade do recurso de revista e, para o caso de assim se não entender, pela confirmação do acórdão recorrido proferido pelo TCA Sul.

4.A revista foi admitida pela formação preliminar deste STA, por acórdão de 04.04.2024, que no essencial, expendeu a seguinte fundamentação, que ora se transcreve:

“3. AA impugnou no «Tribunal Arbitral do Desporto» [TADI a decisão do «Conselho de Disciplina» que lhe aplicou as sanções disciplinares de «impossibilidade de registo durante duas épocas desportivas», e, cumulativamente, na «multa de 18 UC» por, na ausência de prévio registo na FPF, ter aceitado, em contrato reduzido a escrito, representar sociedade anónima desportiva que disputa competições organizadas pela LPFP e pela FPF em negociações visando a transferência internacional de um jogador com vista à inscrição e utilização do mesmo «nas referidas competições nacionais».

O TAD, por acórdão de 29.03.2023, decidiu julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão do «Conselho de Disciplina» segundo a qual o arguido, ao exercer a atividade de intermediário na ausência de registo prévio na FPF - ainda atuando sob as vestes de uma entidade que gira sob a designação comercial A... - incumpriu o disposto no artigo 37º, n°1, da Lei n°54/2017, de 14.07, e, em consequência desrespeitou igualmente o «previsto nos artigos 5º, n°2, e 6º, n°s 1 e 2, do Regulamento de Intermediários da FPF», pelo que deveria ser condenado, tal como foi, pela infração disciplinar prevista e punida no artigo 186°, n°1, do RDFPF.

Sobre uma alegada «alteração substancial dos factos» - relativamente à acusação - que vinha imputada à decisão aí recorrida, o acórdão do TAD referiu, nomeadamente, o seguinte: «Mesmo que houvesse dúvida sobre a natureza substancial ou não da alteração da imputação feita, ao ter sido observado o procedimento do artigo 359º do CPP, foram, dessa forma, salvaguardadas as garantias de defesa do arguido/recorrente, a efetividade do princípio do acusatório, e foi desde logo lograda a consecução da teleologia subjacente aos preceitos».

O tribunal de apelação - TCAS - concedeu provimento à apelação deduzida pelo arguido - AA - e decidiu revogar o acórdão do TAD e «declarar a nulidade do ato punitivo» - que condenou o arguido pela prática da infração disciplinar prevista e punida no artigo 186°, n°1, do RDFPF - com fundamento em «ilegal alteração substancial dos factos». Nele se diz, a respeito, nomeadamente o seguinte: «Trata-se, pois, de uma clara alteração substancial dos factos, posto que foi imputada ao arguido uma infração diversa, com a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis [ver artigo 1°, alínea f) do CPP, e artigo 4°, alínea e), do RDFPF]. Sem que se mostre observado o procedimento previsto no artigo 359º do CPP, sem que se alcance a indicação em sentido contrário da recorrida, foram violadas as garantias de defesa do recorrente. E a consequência é a nulidade do ato punitivo, pois, conforme estatui o artigo 379°, n°1, alínea b), do CPP, á nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º. Cumprindo declarar a nulidade do ato punitivo e a procedência da presente questão, queda prejudicado o conhecimento das demais questões invocadas. Em suma, será de conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e declarar a nulidade do ato punitivo através do qual se condenou o recorrente pela prática da infração disciplinar prevista e punida pelo artigo 186° n°1 do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol».

A FPF vem discordar deste provimento da apelação, pedindo a revista do acórdão do TCAS por - alegadamente - ter errado no julgamento de direito. Nada alega de específico sobre as questões julgadas improcedentes pelo tribunal de apelação - sobre a não aplicação da Lei da Amnistia; nulidade do acórdão do TAD por omissão de pronúncia; e nulidade do acórdão do TAD por falta de fundamentação - pelo que a sua discordância se reconduzirá à questão da «ilegal alteração substancial dos factos». Entende que a alteração dos factos ocorrida não é substancial, ou, a sê-lo, não é ilegal por ter sido cumprido o disposto no artigo 359° do CPP.

Compulsados os autos, importa apreciar «preliminar e sumariamente», como compete a esta Formação, se estão verificados os «pressupostos» de admissibilidade do recurso de revista - referidos no citado artigo 150.º do CPTA - ou seja, se está em causa uma questão que «pela sua relevância jurídica ou social» assume «importância fundamental», ou se a sua apreciação por este Supremo Tribunal é «claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

A questão que se perfila não é de resolução fácil, como desde logo ressuma da decisão discrepante dos tribunais de instância - arbitral e judicial -, antes exigindo o apuramento de institutos jurídicos complexos, como seja o da «alteração substancial dos factos» no contexto da responsabilidade disciplinar, sua legalidade, e sua correta aplicação neste caso concreto. O tratamento desta questão pelo tribunal de apelação não é apodítico, antes sendo permeável a dúvidas que merecem a clarificação pretendida com a revista, em prol de uma decisão mais sólida e mais convincente. Ademais, trata-se de um tema com inegável relevância jurídica, pois que estarão em causa os limites legais impostos à condenação do arguido por factos alegadamente distintos dos da acusação, e todas as consequências inerentes à estrita necessidade da defesa quanto a eles.

Importa, pois, considerar que este caso integra a natureza excecional que é exigida por lei à admissão deste tipo de recursos, e admitir a revista interposta pela FPF.

Nestes termos, e de harmonia com o disposto no artigo 150º do CPTA, acordam os juízes desta formação em admitir a revista.”

5.Notificado para se pronunciar, nos termos do artigo 146.º, n.º 1 do CPTA, o Magistrado do Ministério Público nada veio dizer.

6. Sem vistos atendendo à natureza urgente do processo, mas com envio do prévio do projeto aos Senhores Conselheiros adjuntos, vai o mesmo à Conferência para julgamento.

II- QUESTÕES A DECIDIR

7. Tendo em conta as conclusões das alegações apresentadas pela Recorrente - as quais delimitam o objeto do recurso, nos termos dos art.ºs 635.º nº 4 e 639º nº 1 do CPC, ex vi, arts. 1º e 140.º n.º 3 do CPTA (sem prejuízo de eventual matéria de conhecimento oficioso) — as questões a decidir na presente revista são as de aferir se o acórdão do TCA Sul incorreu em erro de julgamento ao decidir verificada a alteração substancial dos factos resultantes da acusação disciplinar deduzida contra o ora recorrido, o que passa por saber, primeiro, se a alteração verificada consubstancia efetivamente uma alteração substancial da acusação disciplinar e, segundo, na afirmativa, sendo aplicável o regime previsto no artigo 359.º do CPP, se esse regime foi observado no caso.

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III- FUNDAMENTAÇÃO
III.A- Fundamentação de facto

8.No Acórdão recorrido foi fixado o seguinte probatório reputado relevante para a decisão:

«1. O Demandante é acionista da empresa C... COMPANY LTD., NIPC: ...60, com sede na …, ... 12 ..., ..., na qual detém participações sociais correspondentes a 50 % do capital social.

2. Na sociedade aludida no ponto anterior também é acionista, em igual proporção (50%), CC.

3. A C... Company LTD detém participação social correspondente a 85,88% das ações da D... SAD, sendo, portanto, sua acionista maioritária.

4. O Demandante não está inscrito na Federação Portuguesa de Futebol por clube ou sociedade desportiva, e nunca esteve registado como intermediário.

5. O Demandante não tem cadastro disciplinar na FPF.

6. Na época desportiva 2018/2019, o jogador BB foi contratado como jogador profissional pelo ..., clube do ... - ..., após rescindir, por mútuo acordo, o contrato de trabalho desportivo que tinha convencionado com a D..., SAD.

7. Na época desportiva seguinte, 2019/2020, BB retornou ao futebol português, ao ser contratado como jogador profissional pela B..., SAD, clube que, nessa época desportiva, participava na I Liga (organizada pela Liga Portugal) e na Taça de Portugal (organizada pela FPF) - competições que ainda disputa atualmente.

8. Na época desportiva 2020/2021, o jogador BB estava inscrito como jogador profissional pela B..., SAD, e foi cedido ao ..., clube dos ..., pelo período compreendido entre 19/01/2021 a 30/06/2021.

9. O jogador BB, de nacionalidade ..., na época desportiva 2021/2022, esteve inscrito na FPF, como jogador profissional, pela B..., SAD.

10. Em 27 de agosto de 2021, o jogador foi cedido a termo certo à D... SAD.

11. A A..., representada pelo Arguido AA, iniciou, em abril de 2016, processo de registo na FPF para atuar como intermediária na época desportiva 2015/2016, no âmbito do qual foi apresentada, entre outros documentos, uma ― Declaração de Intermediário para pessoas colectivas" (fls. 494) onde se menciona, além do mais, «A..., aqui representada pelo Sr. AA, abaixo signatário com poderes para o acto» e «[n]a qualidade de representante da empresa, subscrevo a presente declaração de boa-fé e confirmo a autenticidade da mesma», juntamente com a qual foi apresentada cópia do passaporte do arguido AA.

12. O processo de registo aludido no ponto anterior não foi finalizado, pelo que a A... nunca teve, junto da FPF, registo como intermediária.

13. O Demandante, além da A..., é sócio, no ..., da E... LTDA, inscrita no CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) sob o n.º ...-91, cadastrada na CBF (Confederação Brasileira de Futebol) desde 08/05/2018, com sede na Cidade .../... — ..., e que tem como ramo de atividade o agenciamento de profissionais para atividades esportivas, culturais e artísticas.

14. Em 25 de junho de 2019, a B..., SAD (de ora em diante também identificada como B..., SAD) celebrou, por documento escrito outorgado na cidade do Porto, em Portugal, com a A..., entidade com sede em 146-...85, ..., ..., ... 5-27, ... 1-110, ..., representada pelo Demandante, contrato de intermediação desportiva, com vista à prestação, pela segunda, de serviços de intermediação na negociação da transferência internacional do Jogador BB do ..., clube para a B..., SAD.

15. Nos termos do contrato aludido no ponto anterior, a contrapartida acordada, no valor de € 600.000,00, a pagar antes ou até 10 de outubro de 2020, seria devida «caso o CLUBE, O ... e O JOGADOR venham a celebrar um Contrato e Transferência, bem como celebrar/assinar todos os documentos adicionais por forma a que o JOGADOR se possa ver inscrito por parte do CLUBE» (a cláusula 2.1.), competindo à A...: «a) Aconselhar o CLUBE na estratégia negocial com O ...; b) Actuar como intermediário do CLUBE comunicando ao ... os termos contratuais propostos pelo CLUBE ao ...; c) Convencer o ... a aceitar os termos propostos pelo CLUBE».

16. A assinatura aposta, pelo representante da entidade A..., no contrato aludido no ponto 14) é semelhante à apresentada no Passaporte... ...92, de que é detentor o Demandante.

17. Em 1 de julho de 2019, o jogador BB firmou com a B..., SAD, contrato de trabalho desportivo com termo inicial no próprio dia 01 de julho, e termo final em 30 de junho de 2024.

18. A outorga do contrato de trabalho desportivo referido no ponto anterior ocorreu no âmbito da transferência internacional do referido jogador do ... para a B..., SAD, que foi objeto de acordo reduzido a escrito, outorgado no dia 1 de julho de 2019, entre o AI-..., a B..., SAD e o jogador BB, em cuja cláusula 8) é referido que «a B... declara que o Intermediário A... participou em representação da B... nas negociações do presente acordo», ou seja, no original, em inglês, «B... declares that the Intermediary A... has participated in the interest of B... in the negotiations of this Agreement» .

19. Consta na cláusula JJ do Contrato de Trabalho Desportivo referido no ponto 17), convencionado entre o Jogador BB e a B..., SAD, que o presente contrato ...9) No registo do contrato de trabalho desportivo firmado entre o jogador BB e a B..., SAD, junto da ..., no campo que se destina a prestação de informação se houve a atuação de intermediário, a B..., SAD fez contar ter sido representada, no contrato referido no ponto 16) dos factos provados deste libelo, pela A....

20. O Demandante interveio como intermediário, enquanto representante da A..., na negociação da transferência acima mencionada e do subsequente contrato de trabalho desportivo celebrado entre o jogador BB e a B..., SAD.

21. O Demandante tornou pública, na rede social “Instagram” a sua intervenção na intermediação da transferência internacional do jogador BB, vindo do ..., clube do ..., para a B..., SAD.

22. O Demandante sabia, não podendo ignorar, que não podia exercer a atividade de intermediário desportivo sem registo na FPF, ato obrigatório para que pudesse exercer regulamente a referida profissão.

23. Ao atuar nos termos acima descritos, o Demandante agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de ofender a lei e os regulamentos, resultado que representou, e, bem sabendo ainda que o seu comportamento era proibido e sancionado pela lei e pelos regulamentos (e, nessa medida, conhecendo a ilicitude do seu comportamento), consubstanciando conduta prevista e sancionada pelo ordenamento jusdisciplinar desportivo, não se absteve de o realizar.»


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III.B. Fundamentação de direito

a.1. alteração substancial dos factos constantes de acusação disciplinar formulada contra agente desportivo, em processo disciplinar sujeito ao Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol (RDFPF).

9. Por deliberação da FPF de 18/09/2020 foi instaurado contra AA, ora recorrido, procedimento disciplinar em que foi acusado da prática do ilícito previsto no artigo 127.º-B do RDFPF. Este preceito, tem como epígrafe o “Exercício indevido de atividade”, e esse comportamento é “sancionado com suspensão entre 6 meses a 2 anos e cumulativamente com multa entre 10 UC e 20 UC”.

10. Como observa o recorrido, esse processo disciplinar foi inicialmente instaurado contra si e tramitado no pressuposto de que seria dirigente da “D... SAD” e que nessa qualidade exerceu em termos indevidos a atividade de intermediação.

11. Sucede que por força do despacho de 02.08.2022 da autoria do relator, foi alterada a acusação disciplinar inicialmente formulada e notificada ao ora recorrido, passando a ser-lhe assacada a infração prevista e sancionada pelo artigo 186.º, n. º1 do RDFPF.

12.Lê-se nesse despacho, designadamente, que «analisada a materialidade constante do libelo acusatório, constata-se que, independentemente da solução jurídica que ao caso venha a caber, os factos descritos no despacho de acusação são, em abstrato, suscetíveis de integrar a infração prevista e sancionada pelo artigo 186.º, n.º1, do RDFPF ( Usurpação e burla), que sanciona com “impossibilidade de registo entre 1 e 3 épocas desportivas e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC” “[q]uem exerça de facto a atividade de intermediário, estando impedido nos termos do Regulamento de Intermediários da FPF», por referência ao disposto nos artigos 36.º, n.º1 e 37.º, n.º1 da Lei n.º 54/2017, de 14 de julho e, também, no artigo 6.º do Regulamento de Intermediários da FPF. Nestes termos, para melhor disciplina processual e considerando o disposto no art.º 243.º, n.º4 do RDFPF, decide-se proceder, desde já, à correspondente alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação em conformidade com o aludido supra, de que os arguidos AA e …, e o seu Ilustre mandatário devem, por economia processual, ser igualmente notificados para, querendo e nos mesmos 5 dias, se pronunciarem».

13. Na sequência do referido despacho, onde se qualificou a alteração operada como “não substancial”, o recorrido foi condenado pela prática da infração prevista e sancionada pelo artigo 186.º, n. º1 do RDFPF, concretamente, nas sanções de impossibilidade de registo durante 2 (duas) épocas desportivas e cumulativamente na sanção de 18 (dezoito) UC de multa.

14. Inconformado, o ora recorrido interpôs recurso dessa decisão disciplinar para o Tribunal Arbitral do Desporto impetrando-lhe várias nulidades e erros, máxime, para o que interessa ao objeto do presente recurso de revista, que a decisão disciplinar que o sancionou assentou em factos substancialmente alterados em relação aos que constavam da acusação que inicialmente lhe foi notificada.

15.O Tribunal Arbitral do Desporto julgou o recurso improcedente por decisão proferida em 29.03.2023, no processo n.º 63/2022. Quanto à questão da alteração substancial dos factos constantes da acusação invocada pelo então recorrente e ora recorrido, que foi julgada improcedente, os senhores juízes árbitros, depois de transcreverem o teor do despacho de 02.08.2022, e o conceito de alteração substancial que consta do artigo 4.º, al. e) do RDFPF, expenderam a seguinte fundamentação para o julgamento que efetuaram:

«Ora: o Demandante foi acusado da prática de uma infração disciplinar muito grave prevista e sancionável no artigo 127.º -B (Exercício indevido de atividade) à qual corresponde, em abstrato, a aplicação da sanção de suspensão de 6 meses a 3 anos, e cumulativamente, com multa entre 10 UC e 20 UC.

No despacho de 02/08/2022, verificou-se que o comportamento do Demandante seria suscetível de integrar a infração prevista e sancionada pelo artigo 186.º, n.º1, do RDFPF ( Usurpação e burla), que sanciona com a impossibilidade de registo entre 1 e 3 épocas desportivas e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC.

Analisando os limites máximos das sanções aplicáveis a ambos os tipos de infração verificamos que, entre a sanção prevista no artigo 127.º-B e o artigo 186.º, inexiste qualquer alteração do limite máximo das sanções.

O n.º4 do artigo 243.º do RDFPF estabelece, de forma expressa, a possibilidade de se proceder à alteração não substancial dos factos e à alteração da qualificação jurídica, contando se conceda ao arguido possibilidade de pronúncia, no prazo de 5 (cinco) dias- procedimento que, como se verifica nos autos, foi cumprido.

Mesmo que houvesse dúvida sobre a natureza substancial ou não da alteração da imputação feita, ao ter sido observado o procedimento do art-º 359º do CPP, foram, dessa forma, salvaguardadas as garantias de defesa do Arguido/Demandante, a efetividade do princípio do acusatório, e foi desde logo logrado a consecução da teleologia subjacente aos preceitos.

Inexistiu, pois, qualquer perversão das garantias jus-penalmente consagradas e que, por remissão do art.º 16.º, n.º1 do RDFPF, 2019/2020(…) são aqui aplicáveis in totum» ( negrito nosso).

16. Conforme resulta do relatório supra elaborado, AA, ora recorrido, interpôs recurso de apelação da decisão arbitral para o TCA Sul, assando à decisão arbitral nulidade por omissão de pronuncia e por falta de fundamentação, erro de julgamento sobre a matéria de facto e erro de direito decorrente da errada interpretação e aplicação do direito invocado.

17. O TCA Sul concedeu provimento ao recurso, dando como verificada a alteração substancial dos factos constantes da acusação disciplinar que foi arguida pelo recorrente, ora recorrido, e em conformidade, revogou o acórdão arbitral e declarou a nulidade do ato punitivo através do qual se condenou o ora recorrido pela prática da infração disciplinar p.e p. pelo artigo 186.º, n.º1 do RDFPF.

18. É quanto a esta decisão que foi admitido o presente recurso de revista interposto pela FPF, que com a mesma não se conformou, estando agora em discussão apenas a questão de saber se houve ou não alteração substancial dos factos que constavam a acusação formulada no processo disciplinar em curso. Conforme se expendeu no acórdão elaborado pela formação preliminar deste STA, a resposta a essa questão exige “o apuramento de institutos jurídicos complexos, como seja o da «alteração substancial dos factos» no contexto da responsabilidade disciplinar, sua legalidade, e sua correta aplicação neste caso concreto» tanto mais que “estarão em causa os limites legais impostos à condenação do arguido por factos alegadamente distintos dos da acusação, e todas as consequências inerentes à estrita necessidade da defesa quanto a eles».

O que dizer?

19. O êxito e a imagem de qualquer organização dependem do brio e do caráter dos membros que a integram, pelo que, naturalmente, a responsabilidade disciplinar assume-se como uma ferramenta indispensável para garantir o seu bom funcionamento, permitindo corrigir, reprimir e, no limite, afastar aqueles que comprometem esse objetivo. Nos dias de hoje o direito disciplinar apresenta-se como uma realidade jurídica transversal a todas as áreas da sociedade, desde o setor público ao privado, desde a magistratura às profissões liberais, desde os militares aos alunos do ensino básico e secundário, abrangendo os mais variados setores de atividade, de que destacamos, para o que releva a estes autos, a atividade desenvolvida pelos agentes desportivos.

20.Tem-se assistido, nas últimas décadas a um aprofundamento do estudo das questões ligadas ao direito disciplinar, tanto na sua dimensão substantiva como na sua vertente processual, o que permitiu evidenciar as especificidades deste ramo do direito, conduzindo a uma progressiva autonomização do direito disciplinar face aos quadros do direito penal, que se manifesta, desde logo, no princípio da atipicidade das infrações disciplinares. Na verdade, contrariamente ao direito penal, o direito disciplinar não foi construído em torno da exigência de tipificação densificada e exaustiva das condutas que podem ser qualificadas como “infração disciplinar”. Em bom rigor, no âmbito disciplinar, o ilícito decorre mais da violação de um dever e menos da adoção de uma conduta descrita na lei. Conforme bem refere o Tribunal Constitucional «A regra da tipicidade das infrações, corolário do princípio da legalidade, consagrado no nº 1 do artigo 29º da Constituição (nullum crimen, nulla poena, sine lege), só vale, qua tale, no domínio do direito penal, pois que, nos demais ramos do direito público sancionatório (maxime, no domínio do direito disciplinar), as exigências da tipicidade fazem-se sentir em menor grau: as infrações não têm, aí, que ser inteiramente tipificadas»- cfr.Ac. TC, n.º 666/94, de 14.12.1994.

21. Pese embora, em matéria disciplinar, não se exija uma transposição do art. 29.º, n.º 1 da CRP, nos termos do qual “Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior”, a tipificação das infrações disciplinares pode ocorrer, como sucede no âmbito do RDFPF, em que se está, consequentemente, perante um regime disciplinar muito tributário dos quadros próprios do direito penal. O artigo 15.º do RDFPF não deixa dúvidas quanto à tipicidade das infrações ao estabelecer que «1. Constitui infração disciplinar o facto voluntário, ainda que meramente culposo, que por ação ou omissão previstas ou descritas neste Regulamento viole os deveres gerais e especiais nele previstos e na demais legislação desportiva aplicável

22.Sendo o direito disciplinar um direito sancionatório, compreende-se que o processo de autonomização do direito disciplinar tenha vindo a ser acompanhado e contrabalançado pelo progressivo alargamento das garantias do direito penal ao direito disciplinar. Como marco histórico desta evolução, podemos destacar o acórdão proferido pelo TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM no âmbito do caso “Konig” de 28 de junho de 1978. Aí se afirmou que a sanção disciplinar de inibição do exercício da profissão de médico estava sujeita às garantias jurisdicionais e processuais do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que consagra, como se sabe, o “Direito a um Processo Equitativo”.
23. Na sequência desta evolução, é hoje indiscutível que o direito disciplinar não pode ser compreendido à margem dos princípios e das regras nucleares do processo penal, designadamente dos direitos de audiência e de defesa do arguido, assegurando-se o direito à assistência por um defensor, respeito pelo princípio do contraditório, pela vinculação temática da acusação, direito do arguido a não ter de provar a sua inocência. É isso que também resulta da Constituição da República Portuguesa (CRP).

24. Com efeito, o n.º10 do artigo 32.º da Lei Fundamental manda expressamente aplicar aos processos sancionatórios duas das garantias mais importantes consagradas no âmbito do processo penal: os direitos de audiência e de defesa do arguido. É por isso que, como refere a professora Ana Fernandes Neves numa expressão feliz: “As garantias do processo penal surgirão como o magma das garantias de um processo sancionatório público” - cfr. ANA FERNANDA NEVES, in “Direito Disciplinar da Função Pública”, Vol.I, pág. 34.

25. Referindo-se ao n. º10 do artigo 32.º da CRP, também Germano Marques da Silva e Henrique Salinas, enfatizam que: “O n. º10 garante aos arguidos em quaisquer processos de natureza sancionatória os direitos de audiência e de defesa. Significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas. Neste sentido, entre outros, os Acs. n.ºs 659/06, 313/07, 45/08, e 135/09…A defesa pressupõe a prévia acusação, pois que só há defesa perante uma acusação. A Constituição proíbe absolutamente a aplicação de qualquer tipo de sanção sem que ao arguido seja garantida a possibilidade de se defender.» - cfr. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 740.

26. Um dos princípios que informam o direito penal é precisamente o da vinculação temática. Sobre a aplicação deste princípio ao direito disciplinar, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 24/02/2021, proferido no processo n.º 15/20.2YFLSB, que foi «seguido na integra» pelo acórdão recorrido.

27.Conforme se escreveu nesse acórdão do STJ: « (…) na medida em que o poder disciplinar tem a sua razão de ser nos próprios fins públicos do direito sancionatório, que pode atingir uma extrema severidade de moldura sancionatória abstrata, facilmente se percebe que tenham de ser observados os mesmos princípios garantísticos de defesa do arguido que presidem ao direito penal.

Desde logo, é nesta sede aplicável o princípio da vinculação temática, consagrado no artigo 359.º, n.º 1, do vigente Código de Processo Penal (doravante CPP), segundo o qual a “alteração substancial dos factos descritos na acusação não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso”. Ou seja, proíbe-se a alteração substancial dos factos da acusação, conceito que o artigo 1.°, n.° 1, alínea f), do CPP define como “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.

Esclareça-se ainda, a este propósito, que a solução do artigo 359.º do vigente CPP se afasta do estatuído no artigo 447.° do CPP/1929, pois que hoje, à luz do direito processual penal, “também a diversa qualificação pode significar a alteração substancial dos factos, ainda que naturalisticamente considerados sejam os mesmos” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. I, Noções Gerais, Elementos do Processo Penal, Lisboa, Verbo, 2010, p. 359).

Assim, por imperativo do artigo 32.º, nºs 1 e 2, da CRP cumpre observar, não só as garantias de defesa do arguido e a estrutura acusatória do processo, como também o princípio do contraditório do arguido, de modo a evitar que, pese embora no contexto dos mesmos factos naturalísticos da acusação, venha a ser surpreendido por juízos jurídicos de desvalor de ação e resultado distintos, que originem uma condenação por crime diferente ou por sanção concreta distinta por reporte à sanção abstrata cominada na lei.

A própria doutrina administrativa, ponderando a ratio punitiva subjacente à perseguição disciplinar e cotejando-a com a natureza, que lhe reconhece próxima, da perseguição criminal, não deixou, desde cedo, de fazer notar que “[a] redação dos artigos da acusação corresponde ao ato mais delicado do processo disciplinar, visto que neles se fixa a matéria de facto sobre a qual, daí por diante, versará a discussão processual e que pode servir de base à decisão final. Factos não articulados não poderão ser mais ser invocados contra o arguido ou fundamentar a sua condenação. E têm-se por não articulados os factos apenas insinuados ou obscura, vaga ou confusamente apresentados” (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, volume II, 10.ª edição, 2013, Almedina, pp. 845 e 846).

É a acusação, pois, que determina, com efeitos preclusivos, os limites da perseguição disciplinar que se há-de determinar ao arguido – sejam esses limites em termos de moldura sancionatória, seja mesmo em termos de «factologia» imputada ao arguido. Trata-se aqui do denominado princípio da vinculação temática, que passou a estar consagrado normativamente nos diplomas que se seguiram ao Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de janeiro, sendo hodiernamente estabelecido de forma expressa que “na decisão não podem ser invocados factos não constantes da acusação nem referidos na resposta do arguido, exceto quando excluam, dirimam ou atenuem a sua responsabilidade disciplinar” (vide artigo 220.º, n.º 5, da LGTFP).

Veiga e Moura e Cátia Arrimar, op. cit, p. 624, esclarecem, a propósito desta solução normativa, que “o n.º 5 reforça a importância da maneira como se formula a acusação, pois qualquer facto que não conste da acusação não pode nunca ser tido em consideração, exceto se resultar da matéria de facto alegada na defesa do arguido ou for um facto que afaste ou diminua a sua responsabilidade. // Trata-se de uma concretização dos princípios do dispositivo e da aquisição da prova, excecionando-se apenas os factos que comprovem a ausência de responsabilidade, os quais poderão ser tidos em consideração desde que constem do processo, independentemente da sua alegação em sede de acusação ou defesa”.

Mais assertivamente: “não podem dar-se como provados factos que não constem da acusação, sob pena de nulidade. A exceção reconduz-se aos factos que beneficiam a posição jurídica do arguido, designadamente circunstâncias dirimentes ou atenuantes» (Raquel Carvalho, op. cit., pág. 156).

É na acusação, portanto, que se delimita o thema decidendum ou o objeto da(s) imputação/ões feita(s) ao trabalhador arguido. E, se “nada obsta a que na pendência de um procedimento disciplinar, o objeto da investigação se alargue a outras infrações entretanto também participadas” ou conhecidas (Carlos Alberto Fernandes Cadilha, «Direito Disciplinar da Função Pública. Alguns tópicos», texto policopiado para apoio à preleção ocorrida a 09-05-2003 aos auditores de justiça do curso de formação de juízes dos tribunais administrativos e fiscais), sempre se exigirá, em contrapartida, que o ajustamento de novas infrações posteriores ao despacho acusatório, bem como a introdução de alterações significativas ao mesmo, implique a reelaboração da acusação e a concessão de novo período de defesa ao trabalhador.

Na verdade, se a acusação é a “pedra de toque da defesa do trabalhador, o pilar do contraditório [ou] o momento do confronto do trabalhador com a juridicidade da infração e com as consequências que legalmente estão previstas […]”, então o arguido “[…] não pode ser sancionado senão pelos factos constantes da acusação […]” (Ana Fernanda Neves, O Direito…, vol. II, cit., pág. 391). “a defesa à acusação é a defesa contra “o todo juridicamente possível”, no concreto. A fixação dos factos e a apreciação de direito no relatório/decisão final, ao dever conter-se necessariamente nos limites daquela, nada “furta” à pronúncia do arguido” (idem, ibidem, pág. 392).

Daí que a acusação tenha de elencar com previsão tanto os factos como a qualificação jurídica pertinente, não podendo ser ocultado ao trabalhador o valor jurídico dos factos e da decisão projetada com base neles. Daí também que o recorte punitivo, factual e de qualificação jurídica da decisão projetada deva constar da acusação.

Ainda a este propósito, mais ensina a doutrina da especialidade que “a alteração dos factos que não os coloque fora do recorte infracional levado à acusação (infração e sanção aplicável, incluindo, portanto, os elementos de determinação da sanção concretamente a aplicar, como, por exemplo, uma circunstância agravante) — “inalterabilidade ou identidade dos factos imputados” — e a alteração de qualificação jurídica para um patamar inferior de gravidade, de modo a que se possa dizer com segurança que não propicia acrescento defensivo não passível de ser aduzido em face da anterior acusação, não justifica a apresentação de nova acusação (sem prejuízo da eventual pertinência de nova audição). Uma alteração substancial da acusação (v.g., consideração de factos novos, redefinição mais gravosa dos factos, consideração de circunstâncias agravantes, modificação que agrave a qualificação jurídica) subsequente à respetiva notificação importa notificação de nova acusação e a reabertura ou reajustamento do período de defesa» (idem, ibidem, pág. 393).

Concluindo: em homenagem ao princípio da vinculação temática, a decisão sancionatória não pode conter, por adicionamento, matéria de facto que não se mostre descrita na acusação, uma vez que, nesta fase do procedimento disciplinar, ou seja, após dedução da acusação, o facto juridicamente relevante é o facto materialmente ilícito e culposo e não o facto naturalístico.

Por esse motivo, constitui elemento essencial da acusação a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, sendo estes que constituem o objeto do processo disciplinar e por sua vez, serão objeto de apreciação e decisão pela entidade competente para o exercício da função disciplinar. De tal sorte que a decisão sancionatória há-de incidir apenas sobre a matéria da acusação, sendo sancionado com nulidade insuprível o despacho disciplinar que aplique uma pena por factos substancialmente diversos ou com qualificação jurídica diversa dos descritos na peça acusatória, por falta de audiência do arguido no exercício do contraditório, correlativo do princípio constitucional estatuído no artigo 269.°, n.° 3, da CRP, pelo que o procedimento disciplinar em tramitação da acusação, para o relatório final e para o despacho decisório tem, naturalmente, de seguir o estipulado no regime remissivo do CPP.»

28. O artigo 11.º do RDFPF, sob a epígrafe “Direito subsidiário” estipula que “Na determinação da responsabilidade disciplinar é subsidiariamente aplicável o disposto no Código Penal e, na tramitação do respetivo procedimento, as regras constantes do Código de Procedimento Administrativo e, subsequentemente, do Código de Processo Penal, com as necessárias adaptações”.

29.O artigo 4.º, al. e) do RDFPF define como alteração substancial dos factos “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de uma infração diversa ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”. Esta definição é similar à dada pelo artigo 1.º, al. f) do CPP onde se identifica como alteração substancial dos factos “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.

30.Por sua vez, diz-nos o n. º4 do artigo 243.º do RDFPF que «4. Se da produção da prova resultar alteração não substancial dos factos ou da qualificação jurídica da acusação, o relator notifica o arguido e o instrutor da alteração e para, querendo, se pronunciarem sobre a alteração no prazo de 5 dias e requererem prova complementar, salvo se a alteração da qualificação ou dos factos resultar da defesa do arguido ou representar a imputação de uma infração menos grave que a constante da acusação, desde que não comporte alteração substancial dos factos». Tratando-se de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, basta que seja garantido ao arguido o direito a ser ouvido, para que a mesma possa produzir efeitos. Deste preceito também se extrai não ser possível a denominada alteração substancial dos factos descritos na acusação disciplinar, os quais não podem ser atendidos na decisão sancionatória.

31. No CPP, é no artigo 358.º que tem como epígrafe “Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”, que vem regulado o procedimento a observar nestes casos, aí se deferindo a possibilidade ao arguido de se pronunciar, ao passo que a “Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronuncia, vem disciplinada no subsequente artigo 359.º do CPP, nos seguintes termos:

«1. Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.

2. A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objeto do processo.

3. Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.

4. Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para a preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário».

32. Não obstante a autonomia do direito disciplinar público face ao direito penal, que tivemos ensejo de referir, muitos dos princípios e regras que informam o direito penal e processual penal são transponíveis para o campo disciplinar, o que bem se compreende, uma vez que estando em causa a aplicação de sanções sabe-se que as sanções disciplinares não raras vezes produzem efeitos na esfera jurídica do “arguido” bem mais hostis do que as decorrentes da aplicação de algumas penas criminais.

33.Nos termos do disposto no artigo 359.º do CPP, acima transcrito, para que uma alteração substancial dos factos descritos na acusação crime ou no despacho de pronuncia possa ter lugar, é necessário que o arguido consinta nessa alteração, pelo que, mutatis mutandis, para que uma qualquer alteração substancial dos factos constantes da acusação disciplinar formulada contra o ora recorrido, no âmbito do RDFPF, por aplicação subsidiária deste preceito legal do CPP, possa produzir efeitos na sua esfera jurídica, exigia-se que o arguido tivesse dado o seu acordo a essas alterações aos factos descritos na acusação disciplinar já deduzida contra o mesmo. Sem acordo do arguido, os factos apurados que impliquem uma alteração substancial dos factos descritos na acusação não podem ser considerados na decisão final sancionatória, do mesmo modo que também não podem atendidos na sentença penal.

34. A Recorrente FPF insiste na natureza não substancial das alterações introduzidas aos factos constantes da acusação disciplinar resultantes do despacho de 02.08.2022. Ademais, sustenta que a entender-se que essas alterações configuram uma alteração substancial dos factos constantes da acusação, nenhuma invalidade pode ser assacada à decisão disciplinar sancionatória, por ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 359.º do CPP.

Será assim?

35. Nos termos que constam do despacho de 02.08.2022 proferido pelo relator do processo disciplinar, o mesmo versou sobre a seguinte factualidade:

««1) No contrato a que se refere o artigo 18.º da acusação, que foi outorgado no dia 25 de junho de 2019, na cidade do Porto, estabeleceu-se, na cláusula 2.1., que a contrapartida acordada, no valor de €600.000,00, a pagar antes ou até ao dia 10 de outubro de 2020, seria devida « caso o CLUBE, o ... e o JOGADOR venham a celebrar um Contrato e Transferência, bem como a celebrar/assinar todos os documentos adicionais por forma a que o JOGADOR se possa ver inscrito por parte do CLUBE ( cf. Documento de fls. 418 a 420).

2)A transferência internacional aludida no artigo 21.º da acusação foi objeto de acordo reduzido a escrito, outorgado no dia 1 de julho de 2019, entre o ..., a B..., SAD e o jogador BB, em cuja cláusula 8) é referido que « A B... declara que o Intermediário A... participou em representação da B... nas negociações do presente acordo», ou seja, no original, em inglês (…) (cf. Documento de fls. 423 a 426).

3) No âmbito do pedido de inscrição referido no artigo 25.º da acusação, foi apresentada, entre outros documentos, uma “Declaração de Intermediário para pessoas coletivas” ( fls. 494) onde se menciona, além do mais, «A..., aqui representada pelo Sr. AA..., abaixo signatário com poderes para o ato» e «[n]a qualidade de representante da empresa, subscrevo a presente declaração de boa-fé e confirmo a autenticidade da mesma», juntamente com a qual foi apresentada cópia do arguido AA (fls.485)»».

36.Em função destas alterações aos factos descritos na acusação, foi alterada a imputação que constava da acusação já deduzida contra o arguido no processo disciplinar em curso e pela qual vinha acusado da prática da infração disciplinar prevista e sancionada pelo artigo 127.º-B do RDFPF, passando a ser-lhe assacada a prática da infração prevista no artigo 186.º, n.º1 do RDFPF, pelo qual passou a estar acusado.

37. A primeira questão que se coloca é a de saber se as alterações provocadas pelo despacho de 02.08.2022, são ou não alterações substanciais e, a serem, a segunda questão que se coloca passa por saber se nos termos do artigo 359.º do CPP o arguido deu o seu acordo a que o processo disciplinar prosseguisse com o acolhimento dessas alterações.

38.Resulta da leitura do despacho de 02.08.2022 que as alterações efetuadas na acusação disciplinar formulada contra o ora recorrido no processo disciplinar em curso foram configuradas pela entidade com poderes disciplinares (a ora recorrente FPF) como tratando-se de alterações não substanciais dos factos descritos na acusação e, bem assim, que na perspetiva da mesma os factos descritos no despacho de acusação eram, em abstrato, suscetíveis de integrar a infração prevista e sancionada pelo artigo 186.º, n.º1 do RDFPF ( Usurpação e burla). Nessa medida, determinou-se nesse despacho, dando-se cumprimento ao disposto no n.º4 do artigo 243.º do RDFPF, onde se estabelece, como vimos, o procedimento a seguir perante alterações à acusação de natureza não substancial, a comunicação dessas alterações ao arguido, ora recorrido, para, querendo, se pronunciar, no prazo de 5 (cinco) dias previsto nesse preceito.

39. O arguido, ora recorrido, opôs-se à denominada “alteração não substancial dos factos” e, para o caso de essa sua pretensão não ser atendida, solicitou que lhe fosse concedido novo prazo de pronúncia não inferior a 10 dias «uma vez que a pronuncia apenas radica na oportunidade procedimental de alteração dos mesmos e não sobre a substância [sic] da matéria agora alterada, prazo esse de que não prescinde». Esta pretensão foi indeferida.

40. Na acusação formulada contra o arguido, ora recorrido, é incontestável que o mesmo foi acusado pela prática da infração disciplinar prevista e sancionada no artigo 127.º-B do RDFPF (norma introduzida na versão publicada em 13/07/2020, para vigorar a partir da época 2020/2021), relativa ao exercício irregular de atividade de intermediação, no qual se prevê que o dirigente de clube que exerça atividade de representação ou intermediação, ocasional ou permanente, é sancionado com suspensão de 6 meses a 2 anos e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC”. Ou seja, ao arguido, ora recorrido, foi-lhe assacada uma infração decorrente de ser dirigente desportivo e nessa condição ter exercido uma atividade de intermediação ilícita.

41. Acontece que, por força das alterações operadas pelo despacho de 02.08.2022 o arguido passou a estar acusado, e acabou condenado, pela prática da infração prevista e sancionada pelo artigo 186.º, n. º1 do RDFPF relativa a “Usurpação e burla”. Neste dispositivo, prevê-se que quem exerça de facto a atividade de intermediário, estando impedido nos termos do Regulamento de Intermediários da FPF, é sancionado com impossibilidade de registo entre 1 e 3 épocas desportivas e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC. Ou seja, o arguido, ora recorrido, passou a estar acusado da prática de uma infração de usurpação de funções, decorrente do exercício de atividade de intermediação que lhe estava vedada nos termos do Regulamento de Intermediários da FPF.

42.Em face do exposto, é insofismável que o arguido, ora recorrido, por força das alterações introduzidas na acusação pelo despacho de 02.08.2022, não só foi condenado numa infração diversa da que lhe fora imputada na acusação deduzida inicialmente no processo disciplinar em curso, na medida em que foi condenado pela prática da infração prevista no artigo 186.º, n.º do RDFPF quando fora acusado nesse processo disciplinar da prática da infração prevista no artigo 127.º-B do RDFPF, como a moldura sancionatória máxima prevista no artigo 186.º, n.º1 é inequivocamente superior à prevista no artigo 127.º-B do mesmo RDFPF. Comparando a previsão sancionatória de ambas as normas, é apodítico que à infração prevista no artigo 186.º, n.º1 corresponde a uma moldura sancionatória máxima mais grave do que a prevista no artigo 127.º-B, ambos do RDFPF.O arco das molduras sancionatórias máximas previstas em ambos os preceitos é, por conseguinte, diferente, sendo mais gravosa a sanção que consta do artigo 186.º, n.º1 do RDFPF.

43.Não foi essa a conclusão a que chegou o TAD no acórdão arbitral que prolatou no qual erradamente sustenta que entre ambas as normas do RDFPF- artigos 127.º-B e 186.º, n. º1- “inexiste qualquer alteração ao limite máximo”. É o que se extrai do seguinte segmento do acórdão do TAD, onde se escreve que “o demandante foi acusado da prática de uma infração disciplinar muito grave prevista e sancionável no artigo 127.º-B (Exercício indevido de atividade) à qual corresponde, em abstrato, a aplicação da sanção de suspensão de 6 meses a 3 anos, e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC”, quando, o que consta desse normativo é antes “a aplicação da sanção de suspensão de 6 meses a 2 anos, e cumulativamente com multa entre 10 e 20 UC “.Considerando a letra da lei, a mesma evidencia que o TAD incorreu em erro quanto à moldura sancionatória que considerou como prevista no artigo 127.º-B do RDFPF, uma vez que, diversamente do que consta do acórdão do TAD, a mesma não vai “de 6 meses a 3 anos”, mas dede 6 meses a 2 anos”.

44. Aqui chegados, é inequívoca a conclusão de que as molduras sancionatórias máximas previstas nos artigos 127.º-B e artigo 186.º, n.º1, ambos do RDFPF não são iguais, sendo a prevista no último preceito mais gravosa.

45. Se dúvidas houvesse sobre a maior gravidade da moldura sancionatória máxima prevista no artigo 186.º, n.º1 do RDFPF em relação à prevista no artigo 127.º-B do RDFPF, então, em reforço dessa evidência, basta atentarmos no artigo 20.º do RDFPF , no qual se indicam por ordem crescente de gravidade as sanções disciplinares aplicáveis aos agentes desportivos a saber: -Repreensão;-Multa;-Reparação;-Suspensão por período de tempo ou por número de jogos;-Impossibilidade de registo. Como bem se nota no acórdão recorrido, a técnica legislativa patenteada na indicação das sanções disciplinares que constam deste elenco enuncia de forma clara e objetiva uma “gradação crescente da gravidade das penas a aplicar. Vale isto por dizer que a sanção disciplinar de impossibilidade de registo se afigura mais gravosa que a sanção disciplinar de suspensão. “ ( negrito da nossa autoria).

46. Assim, não podemos sufragar o entendimento propugnado pela recorrente quando pretende que as alterações introduzidas à acusação disciplinar por força do despacho de 02.08.2022 se configuram como alterações não substanciais, uma vez que, aquele despacho incorpora um enquadramento fático e jurídico-disciplinar novo, em consequência do qual se imputou ao arguido, ora recorrido, uma infração diversa e, bem assim, se sujeitou o mesmo a uma agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Esta realidade, à luz do disposto no artigo 4.º, al.e) do RDFPF constitui uma alteração substancial dos factos descritos a acusação, cuja possibilidade de produzir efeitos está expressamente afastada pelo disposto no n.º4 do artigo 243.º, in fine, do RDFPF.

47. E tais alterações, de acordo com o regime legal previsto no artigo 359.º do CPP, subsidiariamente aplicável ao presente processo disciplinar por força da remissão prevista no art.º 11.º do RDFPF, para serem consideradas, dependiam do acordo do arguido, aqui recorrido, que não foi dado.

48. Sobre a aplicação do princípio da vinculação temática, central no âmbito do direito processual penal, ao direito disciplinar, os tribunais superiores desta jurisdição já foram chamados a pronunciar-se em vários arestos, de que são exemplo dos acórdãos citados no Ac. do STJ, de 24/02/2021, processo n.º 15/20.2YFLSB, a saber:

-Acórdão do STA de 07-12-1989, in Apêndice ao Diário da República, 2.ª série, de 30-12-1994, pág. 7114: “Verifica-se a nulidade do processo disciplinar, por falta de audiência do arguido, quando no relatório final do instrutor, que antecedeu a decisão punitiva, foi introduzido, como agravante, um facto que não constava da acusação”;

- Acórdão do STA de 08-03-1990, in Apêndice ao Diário da República, 2.ª série, de 12-01-1995, pág. 1895: “Constitui nulidade insuprível prevista no artigo 42.º do Estatuto Disciplinar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, e viola o artigo 269.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, que garante ao arguido o direito à audiência e defesa, o ato punitivo que se fundamenta em factos, integrantes de infração disciplinar, que não se contêm na nota de culpa nem foram objeto de acusação complementar”;

- Acórdão do STA de 13-10-1992, processo n.º 029875, cujo sumário está acessível in http://www.dgsi.pt/jsta:I - A qualificação jurídica da falta constante da nota de culpa não vincula a entidade que detém o poder de punir. II - Deve, porém, ser ouvido o arguido sobre a nova qualificação da falta que lhe é imputada, sem o que são violados os seus direitos de audiência e defesa. III - Tal violação gera a nulidade insuprível do processo disciplinar”;

- Acórdão do STA de 12-04-1994, processo n.º 032236, cujo sumário está acessível in http://www.dgsi.pt/jsta:Encontra-se assegurado o direito de audiência e defesa se o arguido teve o ensejo de exercitar a sua defesa, de modo eficaz e organizado, e a coberto de qualquer surpresa; e isto mormente se não foram tomados em consideração no ato punitivo factos novos não incluídos na nota de culpa, nem deveres jurídicos supostamente infringidos não expressamente contemplados na acusação nem um enquadramento jurídico disciplinar dos factos indiciados em moldura sancionatória mais gravosa do que a que constava na peça acusatória”;

- Acórdão do STA de 19-01-1995, processo n.º 031496, cujo sumário está acessível in http://www.dgsi.pt/jsta:Embora a qualificação da falta constante da nota de culpa não vincule a entidade que detém o poder de punir, deve, também, ser ouvido o arguido sobre a nova qualificação da falta, sem o que são violados os seus direitos da audiência e defesa”;

49. Recorde-se, que resultando do disposto no artigo 4.º, al. e) do RDFPF, em sintonia com a definição que consta do artigo 1.º, al.f) do CPP, que constitui alteração substancial dos factos “ aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de uma infração ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”, no caso, as alterações substanciais dos factos descritos na acusação disciplinar não podem ser consideradas como fundamento para a condenação disciplinar no processo disciplinar em trâmite, por terem como efeito a condenação do ora recorrido em infração diversa e a que corresponde uma moldura máxima sancionatória mais elevada do que a indicada na acusação inicial.

50. Nem todas as modificações ou alterações de factos, seja por adição, seja por substituição ou exclusão, implicam uma alteração substancial. A substancialidade da alteração da base factual apenas sucede quando conduza à imputação ao arguido de um crime diverso ou ao agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis. No âmbito do direito disciplinar, a alteração dos factos somente será substancial quando implique a imputação de uma infração disciplinar diversa ao arguido, ou quando acarrete o agravamento das sanções aplicáveis

51.É a indicação dos factos que sustentam a aplicação da sanção disciplinar que definem o objeto do processo disciplinar, pelo que, a partir da dedução da acusação disciplinar só estes factos é que serão objeto de apreciação pela entidade que detém o poder disciplinar, sendo inválida a decisão disciplinar que aplique uma sanção disciplinar assente em factos substancialmente diversos dos descritos na acusação disciplinar. Logo, sempre que o arguido venha a ser punido por factos ou preceitos legais não indicados na acusação, estamos perante uma situação de falta de audiência do arguido, geradora de nulidade do procedimento disciplinar.

52. De todo modo, acresce referir que nunca o arguido, ora recorrido, poderia ter sido acusado, como foi, pela infração prevista e punida no artigo 127.º-B do RDFPF, sem se incorrer numa flagrante violação do princípio da legalidade, por uma questão prévia, que tem a ver o facto de essa norma apenas ter sido introduzida na versão do RDFPF, publicado em 13/07/2020, pelo CO 460, para vigorar a partir da época 2020/2021, tratando-se, por conseguinte, de uma previsão normativa inaplicável aos factos alegadamente praticados pelo ora recorrido que se situam temporalmente no ano de 2019.

53. No recurso que o então recorrente (ora recorrido) interpôs para o TCA Sul do acórdão proferido pelo TAD, reproduzindo fundamentação que já constava do voto de vencido da juiz arbitro por si indicada, foi suscitada a questão da violação do princípio da legalidade, «na dimensão da proibição de aplicação retroativa de disposições sancionatórias» decorrente de à data da alegada prática dos factos ( 01 de julho de 2019) não existir no ordenamento disciplinar a norma do artigo 127.º-B, que apenas foi introduzida no RDFPF, publicado em 13/07/2020, para vigorar a partir da época 2020/2021.

54. Pese embora essa questão não tenha sido decidida pelo TCA Sul no acórdão ora recorrido, e não venha suscitada no presente recurso de revista, tratando-se de uma questão que é do conhecimento oficioso do tribunal, podemos concluir que, por força do princípio da legalidade consagrado no n.º1 do artigo 7.º do RDFPF 2019/2020, e no artigo 1.º, n.º1 do CP na sua vertente de «nullum crimen sine lege scripta, proevia, certa», não existindo à data da alegada prática dos factos assados ao arguido a norma do artigo 127.º-B, pela qual foi acusado disciplinarmente, essa acusação nunca poderia ter sido legalmente deduzida. O artigo 7.º, n.º1 do RDFPF estabelece expressamente que «1. Só pode ser sancionado disciplinarmente o facto descrito e declarado passível de sanção por norma anterior ao momento da violação de dever praticada, cuja previsão tem de ser também precedente ao cometimento da infração». Sendo o “Regulamento Disciplinar” aplicável aquele que estiver em vigor à data da prática dos factos com relevo disciplinar, é seguro que no caso dos autos o arguido não podia ter sido acusado pela infração prevista e sancionada pelo artigo 127.º-B do RDFPF, por se tratar de norma inexistente nessa data.

55. Assim, na decorrência do que antecede, impõe-se concluir que, em bom rigor, não existe acusação disciplinar contra o arguido, ora recorrido, uma vez que, até à data, não foi elaborada uma nova acusação contra o mesmo e a primeira não subsiste. Em consonância com o que se expendeu, pese embora o despacho de 02.08.2022, configure uma alteração substancial dos factos descritos na acusação formulada contra o arguido, a verdade é que, esse despacho não equivale, do ponto de vista de processual, à dedução de uma nova acusação. Trata-se de um despacho que foi processado como respeitando a meras alterações não substanciais dos factos descritos na acusação, o que, nos termos do n.º 4 do artigo 243.º do RDFPF, levou a entidade com poderes disciplinares a ordenar tão somente a notificação do arguido para se pronunciar, querendo, no prazo de 5 (cinco) dias aí previsto. Essa notificação, com essa assumida finalidade, não pode ser tida como uma notificação do arguido para apresentar defesa escrita nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 240.º e seguintes do RDFPF.

56.In casu, o ora recorrido veio a ser condenado pela prática de uma infração que não lhe foi imputada na acusação (prevista pelo artigo 186.º, n.º2 do RDFPF), e sancionada com uma moldura máxima mais elevada do que a indicada no artigo 127.º-B, norma essa que, como vimos, ainda não existia no ordenamento disciplinar quando foram alegadamente praticados os atos assacados ao arguido, o que tem como consequência inelutável a nulidade do procedimento disciplinar.

57. No acórdão recorrido, partindo-se do pressuposto de que não foi «observado o procedimento previsto no artigo 359.º do CPP, sem que se alcance a indicação em sentido contrário da recorrida, foram violadas as garantias de defesa do recorrente», decidiu-se que a consequência daí decorrente « é a nulidade do ato punitivo, pois conforme estatui o artigo 379.º, n.º1, al. b), do CPP, é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º».

58. Sobre as consequências na decisão sancionatória decorrente da violação dos direitos de defesa do arguido durante a instrução do procedimento disciplinar, a jurisprudência não é uniforme. A esse respeito, pronunciou-se o STJ, em Acórdão de 31.03.2016, proferido no processo n.º 8/16.4YFLSB, nele se entendendo que, “O princípio da vinculação temática da decisão punitiva aos factos vertidos na acusação (art. 55.°, n.º 5, do EDTFP) constitui uma concretização, no mesmo passo, dos princípios do dispositivo e da aquisição processual e veda apenas a consideração de factos que não constem da acusação, sendo que a sua inobservância conduz a uma nulidade insuprível do procedimento disciplinar (n.º 1 do art. 37.° do EDTFP), a qual, porém, apenas acarreta a anulabilidade do ato administrativo punitivo”.

59. No mesmo sentido, afirma-se no Acórdão do STJ, de 30.06.2020, proferido no processo n.º 49/19.0YFLSB que: “XV - São princípios de direito disciplinar no domínio da relação jurídica de emprego público, entre outros, os princípios da legalidade sancionatória, da culpa, do respeito pelos direitos de audiência, defesa e contraditório, do respeito pelos direitos fundamentais, da proporcionalidade das sanções, o princípio ne bis in idem e o princípio da presunção de inocência do trabalhador. Encontramo-nos, nos casos apontados, perante manifestações ou concretizações do direito de defesa, consagrado nos n.ºs 1 a 3 do art. 32.º da CRP para o processo criminal, mas extensível ao processo disciplinar, não só por determinação constitucional expressa (art. 269.º, n.º 3, do mesmo diploma), mas também porque o direito de audiência e defesa integra o cerne do princípio do Estado de direito democrático, sendo, por isso, inerente a todos os processos sancionatórios. // XVI - Desde logo, é nesta sede aplicável o princípio da vinculação temática, consagrado no art. 359.º, n.º 1, do CPP e, no que ora importa, no art. 220.º, n.º 5, da LGTFP, de acordo com o qual a acusação tenha de elencar com previsão tanto os factos como a qualificação jurídica pertinente, não podendo ser ocultado ao trabalhador o valor jurídico dos factos e da decisão projetada com base neles. Daí também que o recorte punitivo, factual e de qualificação jurídica da decisão projetada deva constar da acusação. // XVII - Por esse motivo, constitui elemento essencial da acusação a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, sendo estes que constituem o objeto do processo disciplinar e que, por sua vez, serão objeto de apreciação e decisão pela entidade competente para o exercício da função disciplinar. De tal forma que a decisão sancionatória há de incidir apenas sobre a matéria da acusação, sendo sancionado com nulidade insuprível o despacho disciplinar que aplique uma pena por factos substancialmente diversos ou com qualificação jurídica diversa dos descritos na peça acusatória, por falta de audiência do arguido no exercício do contraditório, correlativo do princípio constitucional estatuído no art. 269.°, n.º 3, da CRP, pelo que o procedimento disciplinar em tramitação da acusação, para o relatório final e para o despacho decisório tem, naturalmente, de seguir o estipulado no regime aplicável pela remissão para o CPP. // […] XXV - Traduzindo esta imputação uma alteração “factológica” (ao nível do tipo objetivo e subjetivo de infração disciplinar), bem como uma alteração de qualificação jurídica relevante - na exata medida em que foi essa alteração que possibilitou a aplicação de pena disciplinar (posto que, sem tal alteração, o demandante não teria sido punido) -, prefigura-se a verificação da nulidade insuprível consagrada no art. 203.º, n.º 1, ex vi art. 220.º, n.º 5, ambos da LGTFP, o que determina a anulação do ato impugnado”.

60. É certo que no caso dos autos não estamos perante uma sentença penal, porém é incontestável não poder haver lugar à aplicação de uma sanção disciplinar sem que seja assegurado ao arguido a possibilidade de se defender, máxime, o direito a se fazer ouvir no processo. Tendo em conta a natureza sancionatória do processo disciplinar, podemos afirmar sem hesitação que o direito de o arguido ser ouvido no processo disciplinar configura mais um direito de audição e não tanto um direito à audiência prévia, uma vez que, devendo o processo disciplinar constituir-se como um processo justo, nele têm de ser observadas todas as garantias de defesa e audição do arguido, princípios que têm previsão constitucional.

61.Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira «o sentido útil da explicitação constitucional do direito de audiência e de defesa é o de se dever considerar a falta de audiência do arguido ou a omissão de formalidades essenciais à defesa como implicando a ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa, daí resultando a nulidade de procedimento disciplinar» - cfr. in Constituição da República Portuguesa, Vol.II, pág. 841.

62. Ora, no artigo 161.º, n. º2, al. d) do Código de Procedimento Administrativo o legislador estabelece que são nulos «Os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental». No caso, relembre-se, está em causa um processo sancionatório de natureza disciplinar, no qual foi violado o direito do arguido a ser ouvido durante a respetiva instrução. O TC, no seu Acórdão n.º 594/2008, 2ª secção, proferido em 10.12.2008, no âmbito do processo nº 1111/07, citado no Acórdão deste STA, de 23.03.2023, processo n.º 01235/21.21.8BEPRT, expendeu, sobre os efeitos da preterição da audiência, nos seus traços mais expressivos, a seguinte jurisprudência: «Assim sendo, o que importa apurar é se decorre deste preceito constitucional que o direito de audição deva ser havido como formalidade essencial do procedimento administrativo e se esta, por razões constitucionais, tem de equivaler a falta de elemento essencial do ato administrativo que deva ser sancionada com a nulidade.

Resulta, claramente, do referido preceito que a Constituição não prevê a participação dos interessados, no procedimento administrativo, como uma garantia individual cuja concreta operacionalidade prático-jurídica, relativamente a determinado sujeito, derive, direta e imediatamente, da norma constitucional.

A Constituição limita-se a afirmar a existência da garantia como um instrumento jurídico-procedimental que o legislador especial deve prever, ou seja, como garantia dependente de intermediação e densificação legislativas.

A audição do interessado tem, assim, a natureza de princípio constitucional cuja efetivação como regra se impõe que seja adotada pelo legislador ordinário, não podendo a sua dispensa deixar de estar sujeita aos princípios da necessidade e da proporcionalidade, ínsitos no princípio do Estado de direito democrático (cf. Artº 2º da CRP).

Nesta perspetiva, o direito de audição corresponde a uma formalidade essencial do procedimento administrativo, funcionalizado para a formação das decisões e deliberações administrativas, com a participação dos interessados.

Mas, atribuir-se ao direito de audição, na conformação do procedimento a que o legislador ordinário se encontra obrigado, uma função essencial, e, até, quando previsto, a natureza de uma formalidade essencial, não consequência, necessariamente, que o preceito constitucional o tenha como elemento essencial do ato, até, porque o ato é evento posterior do procedimento a que respeita a audição, ou, sequer, que o mesmo artigo obrigue o legislador ordinário a atribuir-lhe tal natureza cuja falta haja de ser sancionada com a nulidade, nos termos do artº 133º, nº 1, do CPA, em vez de o ser, apenas, mediante a sanção regra que o legislador ordinário adotou para sancionar a ilegalidade dos atos administrativos – a anulabilidade (artº 135º do CPA).

O que vem de dizer-se não impede que, em certos casos, se reconheça ao direito de participação, sob a forma de direito de audição, uma natureza especial tal que demande que a sua violação seja sancionada com o estigma da nulidade própria da afetação do núcleo essencial dos direitos fundamentais (cf. Artº 133º, nº 2, alínea d), do CPA).

Será o caso do direito de audiência e de defesa, nos procedimentos contraordenacionais e quaisquer processos sancionatórios (artº 32º, nº 10, da CRP) e nos processos disciplinares (artº 269º, nº 3, da CRP).

Mas, aqui, a configuração como verdadeiro direito subjetivo fundamental não se funda, diretamente, no referido artº 267º, nº 5, da Constituição, mas em outros preceitos constitucionais, prendendo-se, diretamente, não com o interesse da comparticipação dos interessados na formação das decisões ou deliberações administrativas, no processamento da atividade administrativa, compaginante da melhor realização do interesse público e dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, mas com a fixação das condições, necessárias e indispensáveis, à garantia ou à realização “dos direitos fundamentais”, impondo-se, então, como um postulado da dignidade da pessoa humana ou por um direito fundamental material em que ela se concretize (cf. José Carlos Vieira de Andrade, O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, 1991, pp. 197 e segs.).

Temos, assim, de concluir que o sancionamento da falta do direito de audição, a que se refere o artº 100º do Código de Procedimento Administrativo, com a anulabilidade, nos termos do artº 135º, do mesmo código, não viola o disposto no artº 267º, nº 5, da Constituição, nem qualquer outra norma ou princípio constitucional.”

63. Em face do exposto, no caso em análise, não vemos razões para nos distanciarmos do acórdão recorrido ao declarar a nulidade da decisão sancionatória aplicada ao arguido, ora recorrido, considerando que estamos em presença de uma decisão disciplinar condenatória proferida sem que tivesse sido respeitado o direito de audiência e de defesa do arguido.

64. Termos em que se impõe confirmar o acórdão recorrido, que revoga o acórdão proferido pelo TAD.


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IV-DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, em negar provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul.

Custas a cargo da recorrente.


Lisboa, 20 de junho de 2024. - Helena Maria Mesquita Ribeiro (relatora) - Pedro Manuel Pena Chancerelle de Machete - Maria do Céu Dias Rosa das Neves.