Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: | 01619/23.7BEPRT |
Data do Acordão: | 07/04/2024 |
Tribunal: | 1 SECÇÃO |
Relator: | JOSÉ VELOSO |
Descritores: | RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL APRECIAÇÃO PRELIMINAR INFRACÇÃO DISCIPLINAR AMNISTIA ÂMBITO |
Sumário: | Justifica-se a admissão de recurso de revista em que se suscita a questão da aplicação do âmbito etário previsto no artigo 2º, nº1, da Lei nº38-A/2023, de 02.08, às infracções disciplinares previstas no nº2, alínea b), do mesmo artigo e Lei. |
Nº Convencional: | JSTA000P32505 |
Nº do Documento: | SA12024070401619/23 |
Recorrente: | ORDEM DOS MÉDICOS DENTISTAS |
Recorrido 1: | AA |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Acordam, em «apreciação preliminar», na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: 1. ORDEM DOS MÉDICOS DENTISTAS - demandada nesta acção administrativa - vem, invocando o artigo 150º do CPTA, interpor recurso de revista do acórdão do TCAN - de 05.04.2024 - que negou provimento à sua «apelação» e manteve na ordem jurídica a sentença pela qual o TAF do Porto - 29.11.2023 - decidiu julgar extinta a instância com fundamento na inutilidade superveniente da lide - por considerar amnistiadas [ao abrigo da Lei nº 38-A/2023, de 02.08] as «infracções disciplinares» pelas quais a autora da acção [AA] tinha sido sancionada [PD nº 4-A/2021 e PD nº 4B/2021]. Alega que o recurso de revista deverá ser admitido em nome da «necessidade de uma melhor aplicação do direito» e em nome da «importância fundamental» da questão. A recorrida - AA - contra-alegou defendendo a «não admissão» do recurso de revista por falta de verificação dos pressupostos legais - artigo 150º, nº 1, do CPTA - e por verificação de «dupla conforme». Alega, ainda, que o tribunal deve ordenar à recorrente o pagamento da taxa de justiça, devida quer no recurso de apelação quer neste recurso de revista, de acordo com o «valor da acção» fixado pelo tribunal de 1ª instância acrescido das respectivas multas. 2. Dispõe o nº 1, do artigo 150º, do CPTA, que «[d]as decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que pela sua relevância jurídica ou social «se revista de importância fundamental» ou quando a admissão do recurso seja «claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». Deste preceito extrai-se, assim, que as decisões proferidas pelos TCA’s, no uso dos poderes conferidos pelo artigo 149º do CPTA - conhecendo em segundo grau de jurisdição - não são, em regra, susceptíveis de recurso ordinário, dado a sua admissibilidade apenas poder ter lugar: i) Quando esteja em causa apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental; ou, ii) Quando o recurso revelar ser claramente necessário para uma melhor aplicação do direito. 3. Na presente acção administrativa a autora - AA - demandou a ré - ORDEM DOS MÉDICOS DENTISTAS - pedindo ao tribunal a anulação do acórdão - Conselho Deontológico e de Disciplina da Ordem dos Médicos Dentistas - que lhe aplicou a «sanção disciplinar de advertência» - prevista no artigo 83º nº 1 alínea a) do Estatuto da Ordem - com a «sanção acessória de publicidade» - nos termos do artigo 85º nº 1 alínea b) do Estatuto da Ordem - pela violação dos artigos 39º, nº 1, 41º, nº s 3, 4 e 5, do Código Deontológico, 104º nº 10, e 107º do Estatuto da Ordem, e 15º- A do Decreto nº 3-A/2021. O tribunal de 1ª instância - TAF do Porto - julgou procedente a «questão» da inutilidade superveniente da lide - que suscitara oficiosamente - por considerar amnistiadas as infracções pelas quais a autora havia sido disciplinarmente sancionada, e, por via disso, declarou extinta a instância. Para tal, considerou tratar-se de infracções disciplinares praticadas antes de 19.06.2023 [artigo 2º, nº 2, alínea b), da Lei nº 38-A/2023, de 02.08], que não são passiveis de constituir ilícitos criminais [artigo 6º da Lei nº 38-A/2023, de 02.08], puníveis com pena não superior a suspensão [artigo 6º da Lei nº 38-A/2023, de 02.08], que não foram praticadas por um funcionário nem com a violação de direitos, liberdades e garantias pessoais de outrem [artigo 7º, nº 1 alínea k), da Lei nº 38-A/2023, de 02.08]. Relativamente à circunstância de a autora já ter mais de 30 anos à data da prática dos factos [artigo 2º, nº 1, da Lei nº 38-A/2023, de 02.08], na sentença foi entendido que a amnistia é aplicada aos jovens sancionados penalmente, mas aplicada a todas as pessoas que - independentemente da idade - foram sancionadas a título disciplinar. O tribunal de 2ª instância - TCAN - negou provimento à apelação interposta pela ORDEM DOS MÉDICOS DENTISTAS - com um voto de vencido -, confirmando assim, por maioria, a decisão tomada pelo tribunal de primeira instância. De novo a ORDEM DOS MÉDICOS DENTISTAS discorda, e pede «revista» do assim decidido, apontando erro de julgamento de direito ao «acórdão» do tribunal de apelação. Alega que no que tange às infracções disciplinares a lei da amnistia tem, também, um tecto etário de 30 anos à data da prática dos factos qualificados de infracção, porquanto tal lei se mostra justificada pela juventude dos infractores - a propósito da vinda do Papa por ocasião, precisamente, das «Jornadas Mundiais da Juventude». E sublinha que isso mesmo resultará, desde logo, do teor literal da lei, porque o advérbio «igualmente» utilizado pelo legislador no nº 2 do artigo 2º da Lei nº 38-A/2023 de 02.08, reforça a ideia de que a limitação etária expressamente aplicável às infracções penais é igualmente aplicável às disciplinares. E alega, ainda, que um entendimento contrário determinará a inconstitucionalidade da lei da amnistia, uma vez que resultará violado quer o princípio da separação de poderes - já que o entendimento sufragado no acórdão recorrido determinará que a lei da amnistia se configure como posição política arbitrária, visto não ter como escopo os jovens mas, antes, toda a população, independentemente da idade - quer o princípio da proporcionalidade - pois que aplicar a lei da amnistia a toda a população levará à restrição, injustificada, e por isso desproporcional, dos poderes disciplinares da Administração Pública. Compulsados os autos, importa apreciar «preliminar e sumariamente», como compete a esta Formação, se estão verificados os «pressupostos» de admissibilidade do recurso de revista - referidos no citado artigo 150º do CPTA - ou seja, se está em causa uma questão que «pela sua relevância jurídica ou social» assume «importância fundamental», ou se a sua apreciação por este Supremo Tribunal é «claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». Importa começar por chamar a atenção de que a «dupla conforme» invocada pela ora recorrida nas suas contra-alegações não opera na jurisdição administrativa, sendo, no entanto, relevante critério, utilizável ao lado de outros, na formação do juízo a emitir sobre a admissibilidade das revistas. De todo o modo, devido à existência - no caso - de um voto de vencido, nunca operaria por si só [ver o artigo 671º, nº 3, do CPC]. Os critérios aqui a ponderar, são, pois, e apenas, os já referidos, constantes do artigo 150º do CPTA. A questão central, objecto desta pretensão de revista, tem a ver com o âmbito etário da aplicação da lei da amnistia no âmbito das infracções disciplinares que ao mesmo tempo não possam configurar ilícitos penais. E quanto a ela as partes discordam, e o próprio acórdão justificou um voto de vencido, sendo certo que em abono de uma e de outra tese podem ser apresentados argumentos variados, retirados quer da letra quer do espírito da lei da amnistia, e, obviamente que a determinação da correcta aplicação da lei acarretará consequências relevantes no âmbito da operação do poder disciplinar. Trata-se de «questão» algo complexa, cuja solução, no processo, poderá ser, como foi, justificadamente questionada. É claro que as alegações de revista, invocando «erro de julgamento de direito» por entenderem errada, desde logo com base no teor da «letra da lei» - «igualmente» - a interpretação e aplicação concretamente efectuada, acabam por direccionar o seu ataque jurídico sobretudo à inconstitucionalidade dessa aplicação. Como tem dito esta Formação de Apreciação Preliminar as inconstitucionalidades por si só não justificam a admissão da revista, uma vez que não constituem objecto próprio deste recurso por poderem ser colocadas - separadamente - ao Tribunal Constitucional, no entanto, o objecto da revista contende, também, com a boa interpretação do artigo 2º, nº 1, e nº 2 alínea b), da Lei da Amnistia, com respaldo na letra da lei e na intenção do legislador. E sobre esta questão, com evidentes repercussões jurídicas e sociais, ainda não se pronunciou este Supremo Tribunal, pelo que entendemos justificar-se, pela sua importância fundamental, e pela busca de uma mais clara, sólida e melhor aplicação do direito, admitir a presente pretensão de revista. Por fim, a questão suscitada pela autora, ora recorrida, nas suas contra-alegações, e que tem a ver com ordenar à recorrente o pagamento da taxa de justiça devida pelos seus dois recursos de acordo com o valor da acção fixado pelo TAF do Porto, é questão que não pertence a esta Formação resolver, pois que esgota as suas competências na apreciação dos pressupostos legais de admissão da revista - artigo 150º, nº 1 e nº 6, do CPTA. Importa, pois, considerar que este caso integra a natureza excepcional que é exigida por lei à admissão deste tipo de recursos e admitir a revista interposta pela ORDEM DOS MÉDICOS DENTISTAS. Nestes termos, e de harmonia com o disposto no artigo 150º do CPTA, acordam os juízes desta formação em admitir a revista. Sem custas.
Lisboa, 4 de julho de 2024. – José Veloso (relator) – Teresa de Sousa – Fonseca da Paz. |