Texto Integral: | Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de oposição à execução fiscal com o n.º 50/24.1BEFUN
1. RELATÓRIO
1.1 A sociedade acima identificada recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal julgou improcedente a reclamação por ela deduzida, ao abrigo dos arts. 276.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), contra a decisão de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia por ela formulado num processo de execução fiscal em que lhe está a ser exigida coercivamente uma dívida resultante da liquidação adicional de IRC referente ao exercício de 2014, no âmbito do processo de recuperação dos auxílios de Estado concedidos a empresas da Zona Franca da Madeira.
1.2 A Recorrente apresentou as alegações, com conclusões do seguinte teor:
«I. Interpõe a Recorrente o presente Recurso contra a Sentença proferida no âmbito do processo de Reclamação Judicial que correu os seus termos, sob o n.º 50/24.1BEFUN, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, e que foi apresentada contra a decisão de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia, que a antecedeu;
II. Subjacente à Sentença ora recorrida, está o seguinte entendimento do Tribunal a quo:
o “No caso dos autos, a dívida em execução fiscal – processo de execução fiscal n.º ...72... – respeita à recuperação do auxílio de Estado em cumprimento da decisão adoptada pela Comissão Europeia – DECISÃO (UE) 2022/1414 da Comissão, de 04/12/de 2020 – relativa ao regime de auxílios SA21259 (2018/C), aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira, cf. 1. dos factos provados.
o Quanto à execução da Decisão de Recuperação, em virtude de Portugal não dispor de um regime legal específico para a recuperação de auxílios de estado considerados ilegais, a opção tomada por Portugal para a recuperação desses mesmos auxílios foi o recurso à emissão de actos tributário, v.g. actos de liquidação e, em caso do não pagamento voluntário pelo beneficiário do auxílio, o recurso à cobrança coerciva através do processo de execução fiscal.
o Sobre o regime a adoptar, neste âmbito, pelos Estados-Membros, importa considerar o disposto no art. 16.º (Recuperação do auxílio), do Regulamento (UE) 2015/1589 do CONSELHO, de 13 de Julho de 2015, que estabelece as regras de execução do art. 108.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), o qual dispõe que: «1. Nas decisões negativas relativas a auxílios ilegais, a Comissão decidirá que o Estado-Membro em causa deve tomar todas as medidas necessárias para recuperar o auxílio do beneficiário («decisão de recuperação»). A Comissão não deve exigir a recuperação do auxílio se tal for contrário a um princípio geral de direito da União.
2. (…)
3. Sem prejuízo de uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia nos termos do artigo 278.º do TFUE, a recuperação será efectuada imediatamente e segundo as formalidades do direito nacional do Estado-Membro em causa, desde que estas permitam uma execução imediata e efectiva da decisão da Comissão. Para o efeito e na eventualidade de um processo nos tribunais nacionais, os Estados-Membros interessados tomarão as medidas necessárias previstas no seu sistema jurídico, incluindo medidas provisórias, sem prejuízo da legislação da União».
o O princípio da cooperação leal assume uma importância fundamental no que respeita à execução administrativa do direito da União ou mesmo na sua aplicação pelos tribunais nacionais, impondo a estes que garantam a eficácia das normas da União nos ordenamentos jurídicos dos Estados.
o Nessa medida, dispõe o art. 4.º do Tratado da União Europeia:
“3. Em virtude do princípio da cooperação leal, a União e os Estados-Membros respeitam-se e assistem-se mutuamente no cumprimento das missões decorrentes dos Tratados.
o Os Estados-Membros tomam todas as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações decorrentes dos Tratados ou resultantes dos actos das instituições da União
Os Estados-Membros facilitam à União o cumprimento da sua missão e abstêm-se de qualquer medida susceptível de pôr em perigo a realização dos objectivos da União”.
o Neste contexto, a forma de recuperação dos auxílios de estado considerados ilegais por decisão da Comissão europeia, mediante a utilização do procedimento tributário, através da emissão de notas de liquidação, cujo destinatário é o beneficiário do auxílio, possibilitando a devolução voluntária, e do processo tributário, através do processo de execução fiscal, impondo a devolução coerciva, é compatível com o direito da União traduzido na Decisão de Recuperação - DECISÃO (UE) 2022/1414 da Comissão, de 04/12/ de 2020 – e no Regulamento (UE) 2015/1589 do CONSELHO, de 13 de Julho de 2015».
III. Em primeiro lugar, e como a ora Recorrente tem sustentado ao longo das peças judiciais apresentadas, o raciocínio adoptado pela Autoridade Tributária, agora corroborado pelo Tribunal a quo, padece de um erro de direito inultrapassável, o qual toma a presente Decisão ilegal;
IV. É que, ao contrário do que a Autoridade Tributária e o Tribunal a quo sustentam, a questão não se prende com a vinculação do Estado Português e respectivas instituições à Decisão da Comissão Europeia, mas apenas com a forma adoptada na execução da referida Decisão;
V. É que como bem sabe o Tribunal a quo é o próprio Tribunal de Justiça da União Europeia a dizer que a execução das decisões de recuperação de auxílios de Estado considerados ilegais deve ser feita de acordo com a ordem jurídica interna dos Estados Membros;
VI. A este propósito veja-se a posição adoptada pelo Tribunal Geral da União Europeia, em 27 de Outubro de 2023, nos processos T-718/22 e T-723/22. Diz então o Tribunal que “No caso de ser identificado um beneficiário do auxílio declarado ilegal e incompatível com o mercado interno, a Comissão esclareceu, no considerando 216 da decisão recorrida, o método com base no qual o montante do auxílio a restituir devia ser calculado pelas autoridades portuguesas”;
VII. Mais dizendo que: “É irrelevante para esta conclusão a alegação de que, na prática, as autoridades portuguesas quantificaram o montante dos auxílios a recuperar junto de cada beneficiário segundo um método fixo. Com efeito, essa crítica visa as modalidades de recuperação dos auxílios em causa, que estão sujeitas à fiscalização exclusiva dos órgãos jurisdicionais nacionais (v., neste sentido, Acórdão de 21 de Dezembro de 2011, A2A/Comissão, C-320/09 P, não publicado, EU:C:2011:858, n.º 162)” – assinalado pela Recorrente;
VIII. Isto porque:
o Ora, o contencioso relativo a essas medidas nacionais de recuperação, susceptível de determinar a sua anulação, é da competência exclusiva do juiz nacional e deve ser considerado uma simples emanação do princípio da protecção jurisdicional efectiva que constitui, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, um princípio geral do direito da União Europeia (v., neste sentido, Acórdãos de 13 de Fevereiro de 2014, Mediaset, C-69/13, EU:C:2014:71, n.º 34, e de 11 de Setembro de 2014, Comissão/Alemanha, C-527/12, EU:C:2014:2193, n.º 45 e jurisprudência referida);
o Decorre do exposto que cabe ao órgão jurisdicional nacional, se for interpelado, pronunciar-se sobre a questão de saber se os auxílios concedidos às recorrentes ao abrigo do Regime III o foram em conformidade com as Decisões de 2007 e de 2013 que o autorizaram e, por conseguinte, constituem «auxílios existentes» na acepção do artigo 1.º, alínea b), ii), do Regulamento 2015/1589, eventualmente após ter submetido uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 267.º TFUE;
o Assim, no âmbito dos presentes recursos, o Tribunal Geral examinará os fundamentos invocados pelas recorrentes apenas na parte em que dizem respeito à decisão recorrida e não às medidas nacionais de recuperação adoptadas pelas autoridades portuguesas em execução desta última decisão (cfr. pontos 26, 27 e 28 da Decisão do Tribunal Geral da União Europeia).
IX. De onde se conclui que cabe aos juízes nacionais controlar juridicamente os moldes em que é feita a recuperação dos auxílios em execução da Decisão da Comissão, através da aplicação da legislação interna, o que não sucedeu, antes tendo optado o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo por não apreciar o mérito da pretensão como legalmente se impunha e agora se requer;
X. Com efeito, a decisão de não conhecer o mérito da pretensão como legalmente se impunha e ora se requer para além de ser manifestamente ilegal, teve consequências graves na situação económica da ora Recorrente;
XI. Conforme sobejamente demonstrado, foi a própria Autoridade Tributária que, incumbida de proceder à recuperação dos auxílios de Estado, decidiu liquidar adicionalmente imposto (IRC), como se este fosse devido nos anos em causa; e subsequentemente, em face da falta de pagamento voluntário do imposto adicionalmente liquidado, instaurar os processos de cobrança coerciva a que ora se reage;
XII. Assim, o que está a ser exigido à Recorrente é o pagamento de IRC, pelo que ao qualificar a quantia a recuperar como imposto e emitir actos tributários está a Autoridade Tributária vinculada a cumprir a lei (nomeadamente a possibilidade de pagamento em prestações ou da suspensão do processo de execução fiscal através da prestação de uma garantia ou através da sua dispensa);
XIII. Afastar a aplicação destes institutos jurídicos significa negar a natureza tributária da dívida (em manifesta contradição com os actos emitidos);
XIV. Certo é que o recurso ao procedimento tributário não possibilita a selecção parcial dos segmentos daquele regime, sendo igualmente certo que não existe qualquer procedimento específico para o efeito porque o Estado (enquanto legislador) não o previu;
XV. Centrando o tema que nos ocupa – a Sentença que indeferiu a Reclamação Judicial apresentada contra o pedido de dispensa da prestação da garantia – importa deixar claro que porque assim entendeu o Estado português, na origem destes autos está a emissão de liquidações de IRC, cuja falta de pagamento dentro do prazo de pagamento voluntário deu origem à instauração de processos de execução fiscal contra a Recorrente;
XVI. Ora, o processo de execução fiscal consiste num processo de execução simplificado face àquele que é o regime geral de execução (civil), porque assenta no princípio de que o Estado é uma entidade investida de maior autoridade e que se presume que actua de boa fé, circunstância que permite simplificar o processo (menos moroso e com menos etapas que o processo de execução civil), o que precisamente tem levado a um alargamento das dívidas (ainda que não fiscais, o que não é o caso dos autos), a serem cobradas coercivamente por esta via;
XVII. A este propósito, veja-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA Sul”) de 25/11/2021, proferido no processo 239/14.1BECTB: “O recurso ao processo executivo para cobrança de dívidas não fiscais, legalmente previsto, tem sido visto como uma forma apetecível para diversas entidades credoras, atenta a sua rapidez, simplicidade e eficácia, quando comparado com a execução comum, o que nos deve levar a uma cuidada interpretação e aplicação do n.º 2 do artigo 148.º do CPPT”;
XVIII. Naturalmente, e ainda que tendencialmente mais célere e simplificado, o processo de execução fiscal é um processo de cobrança coerciva, em que naturalmente (por imposição da própria justiça e da Constituição portuguesa), são consagradas diversas garantias aos executados;
XIX. Ou seja, aqui chegados o que se verifica é que em resultado da Decisão da Comissão que condena o Estado português à recuperação de auxílios ilegais concedidos no âmbito do reconhecimento da ZFM e do regime fiscal especial ao abrigo do qual as entidades com sede naquele local eram tributadas, a Autoridade Tributária optou por recuperar os auxílios de Estado em questão através de liquidações de imposto;
XX. E que o recurso àquele procedimento de liquidação de imposto (cfr. artigos 59.º e seguintes do CPPT) implica o cumprimento das normas que o regem, incluindo - com redobrada relevância - as normas que titulam as garantias dos contribuintes;
XXI. No que diz respeito à dispensa de prestação de garantia importa ainda notar que de acordo com o n.º 4, do artigo 52.º, da LGT, para que o Executado possa ser isentado da prestação de garantia é necessário que i) a prestação de garantia lhe cause prejuízo irreparável ou ii) que seja manifesta a sua falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido e, bem assim, que iii) a insuficiência / inexistência de bens não seja da sua responsabilidade;
XXII. Estes requisitos, exigidos pelo n.º 4 do artigo 52.º da LGT, são requisitos alternativos, como nos indica a conjunção disjuntiva “ou”, o que significa que a lei se basta com a verificação de um dos requisitos aí previstos, desde que não seja apurada a responsabilidade do executado pela insuficiência ou inexistência de bens ou de rendimentos (cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, no Processo: 02029/07, de 09-10-2007, in www.dgsi.pt).
XXIII. Ora, a Recorrente não dispõe de meios financeiros ou quaisquer bens imóveis que possa oferecer à penhora e que lhe permitam suspender este processo de execução fiscal – situação essa que o Tribunal a quo não cuidou de analisar;
XXIV. Ficou demonstrado nos presentes autos a imperatividade da lei interna na execução da Decisão proferida pela Comissão Europeia, não restando senão concluir que a Sentença proferida pelo Tribunal a quo deve ser anulada por este Tribunal por ter sido proferida em sentido contrário à legislação portuguesa aplicável, devendo ser determinada a baixa dos autos e condenado o Tribunal a quo a proferir uma Sentença que analise o mérito da pretensão da ora Recorrente, como legalmente se impõe.
Nestes termos e mo melhores de Direito, deverá o presente recurso merecer provimento e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e substituída a mesma por um acórdão que dê total provimento à pretensão da recorrente, com todas as consequências legais».
1.3 Não foram apresentadas contra-alegações.
1.4 O Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal admitiu o recurso, para subir imediatamente nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e ordenou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo.
1.5 Recebido o processo neste Supremo Tribunal, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso com a seguinte fundamentação: «[…]
Damos aqui por reproduzidos todos os factos contantes da douta sentença recorrida.
Nos termos do disposto no n.º 4, do art. 52.º, da LGT, “A administração tributária pode, a requerimento do executado, isentá-lo da prestação de garantia nos casos de a sua prestação lhe causar prejuízo irreparável ou manifesta falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, desde que não existam fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado”.
Tendo em conta os factos dados como provados, afigura-se-nos evidente que não se mostram preenchidos os pressupostos que permitam à AT dispensar a recorrente da prestação de garantia.
A recorrente formulou pedido de dispensa de garantia, o qual foi indeferido.
Tal indeferimento constitui o objecto da reclamação e do presente recurso.
Como se salientou, dos factos provados não resulta que se mostrem preenchidos os pressupostos que permitam a dispensa de garantia.
Assim sendo, e sem quebra do muito devido respeito por posição contrária, afigura-se-nos despiciendo tecer quaisquer considerações quanto à natureza da dívida exequenda (liquidação de IRC / recuperação de auxílios de Estado), a forma utilizada para recuperação da quantia exigida, se é ou não compaginável com este concreto processo de execução fiscal a dispensa de garantia, etc.
Tais questões poderão relevar num plano teórico e/ou terem interesse doutrinário.
Porém, surge uma questão inultrapassável, não resultando dos factos provados que se mostrem preenchidos os requisitos de que depende a isenção de garantia, não pode o ora recorrente ser isentado da prestação da mesma».
1.6 Cumpre apreciar e decidir, sendo a questão a dirimir a de saber se é, ou não, admissível a dispensa da prestação de garantia em ordem à suspensão do processo de execução fiscal instaurado para recuperação de auxílio de estado, que foi determinada pela Decisão (UE) 2022/1414, de 4 de Dezembro de 2020, relativa ao regime de auxílios SA21259 (2018/C).
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2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO
O Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal deu como provada a seguinte factualidade:
«1. A Comissão Europeia adoptou a DECISÃO (UE) 2022/1414, de 04/12/de 2020, relativa ao regime de auxílios SA21259 (2018/C), aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira – Regime III, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e da qual consta entre o mais, que:
“Artigo 1.º
O regime de auxílios «Zona Franca da Madeira (ZFM) – Regime III», na medida em que foi aplicado por Portugal em violação da Decisão C(2007) 3037 final da Comissão e da Decisão C(2013) 4043 final da Comissão, foi executado ilegalmente por Portugal em violação do artigo 108.º, n.º 3, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, e é incompatível com o mercado interno.
(…).
Artigo 5.º
1. A recuperação dos auxílios concedidos ao abrigo do regime previsto no artigo 1.º deve ser imediata e efectiva.
2. Portugal deve assegurar a execução da presente decisão no prazo de oito meses a contar da data da respectiva notificação.
(…).”
2. A 10/10/2023, foi emitida a certidão de dívida ...22, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e foi instaurado o processo de execução fiscal n.º ...72... contra a Reclamante.
3. A Reclamante foi citada para o processo de execução fiscal n.º ...72..., nos seguintes termos:
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4. A 20/11/2023, mediante requerimento cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, a Reclamante requereu ao órgão de execução fiscal – Serviço de Finanças do Funchal 1 - a dispensa de prestação de garantia para suspensão do processo de execução fiscal n.º ...72....
5. A 04/12/2023, através do ofício ...81, a Reclamante foi notificada da decisão de indeferimento do requerimento referido em 4. supra, com os seguintes fundamentos:
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2.2 DE FACTO E DE DIREITO
O recurso será julgado por remissão para o recente acórdão deste Supremo Tribunal, proferido em 3 de Julho de 2024 no processo com o n.º 33/24.1BEFUN, em que foi tratada a mesma questão que se suscita no presente recurso.
2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR
Passamos, a transcrever:
«A recorrente, com o argumento de que não dispunha de meios financeiros ou bens penhoráveis que lhe permitissem promover o pagamento da dívida que resultou da liquidação adicional de IRC, apresentou, junto do órgão de execução fiscal, um requerimento solicitando a suspensão do processo de execução fiscal com dispensa de prestação de garantia.
Este pedido foi indeferido com fundamento no pressuposto de que decorreria do Direito da União Europeia, designadamente (i) da Decisão da Comissão Europeia (Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de Dezembro de 2020, relativa ao regime de auxílios SA21259 (2018/C) (ex - 2018/NN) aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira (ZFM) – Regime III); (ii) da Comunicação da Comissão relativa à recuperação de auxílios estatais ilegais e incompatíveis (2019/C 247/01) e (iii) do Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho (também denominado «Regulamento Processual»): ser inadmissível qualquer medida que visasse o retardamento da restituição do auxílio declarado ilegal, de que constituiria exemplo a pretendida dispensa de prestação de garantia para suspensão do processo de execução fiscal. Até porque isso faria com que a decisão de recuperação não fosse imediata e efetiva, como se imporia nos termos da referida Decisão da Comissão.
A recorrente, por sua vez, sustenta que, tendo em conta que a recuperação de auxílios deve ser feita de acordo com as regras jurídicas nacionais, e que a AT na sequência de uma liquidação adicional de IRC iniciou um processo de execução fiscal, teria de assegurar o cumprimento das garantias ínsitas a esse processo, não as podendo afastar.
De forma sintética, dir-se-ia que a questão fundamental a que temos de responder é a de saber se decorre dos instrumentos de Direito da União Europeia invocados a inadmissibilidade da dispensa de garantia para a suspensão do processo de execução fiscal.
A resposta à questão colocada pressupõe que sejam feitas algumas precisões e delimitações no plano jurídico».
2.2.2 DA POSSIBILIDADE DA DISPENSA DA PRESTAÇÃO DA GARANTIA
Prosseguindo com a transcrição:
«É certo que o controlo dos auxílios faz parte do Direito da União Europeia e que tem como principal suporte o artigo 107.º do TFUE. Importa lembrar também a este respeito que, regra geral, os auxílios são proibidos, havendo um procedimento específico para os controlar que decorre do artigo 108.º do TFUE e do referido Regulamento (EU) 2015/1589.
Relativamente ao TFUE, ao Regulamento (UE) 2015/1589 e às decisões do TJUE, não há dúvidas que prevalecem sobre o direito nacional, em harmonia, aliás, com o prescrito pelo artigo 8.º, n.º 4, da CRP. No que respeita à articulação das decisões da Comissão e meras Comunicações com o Direito Nacional a situação é, todavia, distinta.
No que concerne à Decisão (UE) 2022/1414 impõe-se que se refira que, não obstante as relevantes consequências que dela decorrem, não tem a mesma natureza do TFUE e do Regulamento (UE) 2015/1589, até porque poderia ceder perante uma decisão do TJUE. Já no que se refere à Comunicação 2019/C 247/01 e sem prejuízo da sua valia em termos de orientação da actuação dos Estados-Membros, é meramente soft law, não se podendo sobrepor, sem mais, ao direito nacional, sobretudo se estiverem em causa disposições que consagram matérias essenciais dos impostos, como são as garantias dos sujeitos passivos.
Infere-se, portanto, do que acabámos de referir que só tem carácter vinculativo o que decorre do TFUE, do Regulamento e, em menor medida, da Decisão.
Ora, como o TFUE não se refere especificamente ao modo de recuperação dos auxílios, releva essencialmente a esse respeito o que decorre do Regulamento (UE) 2015/1589 no seu artigo 16.º, n.º 3, que prescreve:
«Sem prejuízo de uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia nos termos do artigo 278.º do TFUE, a recuperação será efectuada imediatamente e segundo as formalidades do direito nacional do Estado-Membro em causa, desde que estas permitam uma execução imediata e efectiva da decisão da Comissão. Para o efeito e na eventualidade de um processo nos tribunais nacionais, os Estados-Membros interessados tomarão as medidas necessárias previstas no seu sistema jurídico, incluindo medidas provisórias, sem prejuízo da legislação da União.»
Na mesma linha, sem acrescentar muito mais, o artigo 5.º da Decisão da Comissão Europeia (Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de Dezembro de 2020, determina que:
«1. A recuperação dos auxílios concedidos ao abrigo do regime previsto no artigo 1.º deve ser imediata e efectiva.
2. Portugal deve assegurar a execução da presente decisão no prazo de oito meses a contar da data da respectiva notificação».
Surge como claro que a recuperação deve ser feita de acordo com as formalidades do direito nacional do Estado-Membro em causa, desde que estas permitam a execução imediata da decisão da Comissão. A remissão é, portanto, feita de forma inequívoca para o direito interno, exigindo-se apenas que as suas regras sejam aptas para o propósito de recuperar os auxílios, ou, eventualmente, que o legislador crie mecanismos para o efeito, incluindo eventuais medidas provisórias (como refere o Regulamento). Não havendo um mecanismo específico para recuperar auxílios e tendo o Estado Português, no âmbito das competências que lhe são reconhecidas, adoptado a liquidação adicional e, na sequência disso, o processo de execução, será unicamente no domínio desse enquadramento que deverão, portanto, ser recuperados os auxílios.
A exigência de que a recuperação dos auxílios seja imediata e efectiva, tem de ser devidamente entendida. Isto é, o seu carácter imediato e efectivo não pode, sob pena de se desafiar a realidade dos factos, ser confundido com uma recuperação instantânea e 100% eficaz. Pois, a aplicação de um qualquer mecanismo de recuperação de auxílios tem de obedecer sempre a uma tramitação própria, devidamente harmonizada com a legalidade, e por isso pouco consentânea com uma recuperação instantânea. Isto é, a tramitação tem de ter necessariamente uma duração mínima, até para permitir a realização dos vários actos a compõem, só assim se podendo acomodar as exigências da legalidade e afastar a arbitrariedade. Consequentemente, num quadro de legalidade só poderia ser este o entendimento expresso quer no regulamento quer na Decisão, sob pena de serem postos os em causa os princípios gerais de direito partilhados pela União, como são aqueles a que alude o artigo 16.º, n.º 1, in fine, do Regulamento. O razoável é inferir da fórmula execução imediata e efectiva o imperativo de que sejam iniciadas imediatamente, sem demoras, as diligências para a recuperação do auxílio, sendo, na verdade esse impulso o que verdadeiramente depende do Estado-membro. Isto porque haverá seguramente situações, inelutáveis, em que a efectiva recuperação do auxílio, poderá nunca ocorrer, por exemplo, devido a uma insuficiência patrimonial ou outras vicissitudes que afectem o processo de execução (o que aliás é típico e pode ocorrer com e qualquer dívida tributária, em geral).
A Autoridade Tributária não pode, no plano ad hoc, adaptar o regime legal da execução fiscal, especialmente no que respeita às garantias dos contribuintes, de modo a assegurar o que depreende serem os imperativos do Direito da União Europeia. Sobretudo se o fizer com base numa comunicação da Comissão que reveste a natureza de uma recomendação, sem carácter vinculativo, que, curiosamente, até reconhece no ponto 2.4.1.4, apesar de tudo, situações de impossibilidade absoluta de recuperação do crédito, como as que referimos. Reforçando, assim, a ideia de que a recuperação nem sempre é imediata e efectiva, tendo apenas de ser empreendida com prontidão.
Não cabe, portanto, à Autoridade Tributária modelar o que é ou não possível no âmbito da execução tributária, truncando garantias e subtraindo expedientes, substituindo-se, assim, ao legislador na criação de um regime de execução específico para dívidas decorrentes da recuperação de benefícios fiscais. A este propósito é interessante recordar que, no âmbito do artigo 169.º do CPPT, no que era o seu n.º 11, já existiu um preceito (revogado pela Lei n.º 7/2021, de 26 de Fevereiro, com efeitos a partir de 1 de Julho de 2021) que afastava expressamente (por via legal, naturalmente, e não por via de uma actuação administrativa) a possibilidade de suspender a execução quando estivessem em causa as dívidas de recursos próprios comunitários. Não havendo, nesse contexto, uma referência a auxílios de Estado, ou seja, a recursos estaduais; o que permite inferir que não estariam incluídos. Com o desaparecimento da única a excepção que existia, se já não estavam incluídos os auxílios de Estado e não tendo havido a substituição daquela excepção por uma mais abrangente, sai ainda mais reforçada a ideia de que não há qualquer base legal interna para o regime interno que a AT pretendeu criar.
Moldar de forma livre o processo de execução implicaria ainda uma discriminação intolerável dos sujeitos passivos que se vissem envolvidos numa execução por uma dívida fiscal que tivesse origem na recuperação de um auxílio de Estado; face a outros sujeitos passivos que devessem uma quantia exactamente igual ou superior, por razões até de maior censura, designadamente por sonegação de rendimentos, erros grosseiros ou deliberados em termos da contabilidade, só para dar alguns exemplos. Não podemos esquecer que a dívida fiscal só surgiu porque o Estado Português viu, no âmbito de uma decisão da Comissão, a vantagem fiscal que criou e que foi legitimamente aproveitada pelos sujeitos passivos, subitamente retirada. Com efeito, o próprio Estado Português a tentou manter de forma veemente como demonstram os parágrafos que se transcrevem da Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão:
«…
(64) Portugal alega que uma decisão negativa sobre o regime da ZFM teria efeitos dramáticos e irreparáveis sobre a sustentabilidade económica da Madeira (82). Por conseguinte, a Comissão deve ter em conta o estatuto de região ultraperiférica da Madeira, reconhecido no artigo 349.º do TFUE.
(220) Portugal considera que as empresas que receberam um auxílio ao abrigo do regime da ZFM adquiriram o direito à segurança jurídica e à confiança legítima de não serem objecto de qualquer decisão de recuperação (207)».
Não significa o que expomos, independentemente das consequências económicas, e sensibilidade da situação, que os sujeitos passivos não tenham de devolver o que resultou da atribuição de um auxílio ilegal, não sendo contestável, no quadro actual do Direito a União Europeia, a necessidade de devolução. Isto, porém, jamais pode implicar que, no âmbito de um processo de execução que em termos de garantias deveria ser igual a qualquer outro, se viole o princípio da igualdade, ao subtrair garantias que normalmente assistem a todos os executados.
A dispensa ou não de garantia pode ser feita com uma margem muito diminuta, permitindo-se a ponderação apenas dos elementos que de decorrem do artigo 53.º, n.º 4, da LGT, designadamente a susceptibilidade de surgir um prejuízo irreparável ou verificação manifesta da falta de meios económicos, revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda, no pressuposto de que não existam fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado. Pelo que as limitações decorrentes da letra do preceito citado, não admitem espaço para considerar os imperativos que decorrem da Decisão da Comissão. Assim, por maioria de razão, se afastará que, logo à partida, seja recusada a suspensão do processo de execução fiscal com dispensa de prestação de garantia, só porque, supostamente, seria isso que resultaria dos instrumentos de Direito da União Europeia invocados, tal como o fez a AT. Sendo essa actuação ainda mais censurável por se apoiar, sobretudo, numa comunicação da Comissão - 2019/C 247/01 - (de onde são citadas várias partes), centrada unicamente na recuperação dos auxílios (sem considerar as especificidades do caso concreto no confronto com leis nacionais e respectivo enquadramento constitucional particular). Mesmo no plano dos princípios gerais da União dificilmente se conceberia uma discriminação dos executados em função da situação que esteve na origem do crédito fiscal a recuperar.
Em resposta à questão fundamental, entendemos, por tudo o que referimos, que a possibilidade de dispensa de garantia no quadro da suspensão da execução não poderia ter sido negada e subsequentemente confirmada pela sentença recorrida, nos termos em que foi».
Com esta fundamentação, que fazemos nossa, entendemos que o recurso merece provimento, como decidiremos a final.
2.2.4 CONCLUSÕES
Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões, decalcadas do sumário do citado acórdão de 3 de Julho de 2024, proferido no processo com o n.º 33/24.1BEFUN:
I - Não pode subscrever-se a tese, adoptada pelo órgão da execução fiscal, de que decorre dos invocados instrumentos de Direito da União Europeia a inadmissibilidade da dispensa de garantia para a suspensão do processo de execução fiscal, instaurado para cobrança de dívida resultante da liquidação adicional de IRC, no âmbito do processo de recuperação dos auxílios de Estado concedidos a empresas da Zona Franca da Madeira.
II - É de afastar, logo à partida, essa inadmissibilidade, só porque, supostamente, seria o que resultaria dos instrumentos de Direito da União Europeia invocados:
III - Essa actuação é ainda mais censurável por se apoiar, sobretudo, numa comunicação da Comissão.
IV - Mesmo no plano dos princípios gerais da União dificilmente se conceberia uma discriminação dos executados em função da situação que esteve na origem do crédito fiscal a recuperar.
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3. DECISÃO
Em face do exposto, concedemos provimento ao recurso, revogamos a sentença recorrida e, julgando procedente a reclamação judicial, anulamos a decisão reclamada.
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Custas pela Recorrida, que ficou vencida no recurso (cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 281.º do CPPT), que não paga taxa de justiça neste Supremo Tribunal porque não contra-alegou.
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Lisboa, 11 de julho de 2024. – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) – Anabela Ferreira Alves e Russo – Gustavo André Simões Lopes Courinha. |