Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01638/15
Data do Acordão:06/16/2016
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:COSTA REIS
Descritores:SERVIDÃO DE VISTAS
JANELA
LICENCIAMENTO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA00069769
Nº do Documento:SAP2016061601638
Data de Entrada:12/16/2015
Recorrente:MUNICÍPIO DA FIGUEIRA DA FOZ
Recorrido 1:A...
Votação:MAIORIA COM 2 VOT VENC
Meio Processual:REC UNIFORM JURISPRUDÊNCIA
Objecto:AC TCAN - AC STA
Área Temática 1:DIR ADM CONT.
DIR URB - LICENCIAMENTO CONSTRUÇÃO.
Legislação Nacional:RGEU51 ART58 ART73 ART75.
CCIV66 ART1362 ART1547.
DL 555/99 DE 1999/12/16 ART24 N1 A.
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENO PROC046946 DE 2007/05/29.; AC STA PROC0707/09 DE 2009/09/24.; AC STA PROC0663/07 DE 2007/11/28.; AC STA PROC0208/07 DE 2007/07/16.; AC STA PROC047882 DE 2004/02/17.; AC STA PROC046996 DE 2003/02/24.; AC STA PROC045026 DE 1999/10/20.; AC STA PROC010290 DE 1978/01/19.
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NO PLENO DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

A…… intentou, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra (doravante TAF), contra o Município da Figueira da Foz, acção administrativa especial pedindo a anulação do acto da respectiva Câmara Municipal que legalizou as alterações ao projecto de obras que o contra interessado D…………….. havia apresentado no competente Departamento de Urbanismo.

Tal acção foi julgada procedente e o despacho impugnado anulado.

Decisão que o Tribunal Central Administrativo Norte (doravante TCAN) confirmou.

É deste Acórdão do TCAN que vem o presente recurso para uniformização de jurisprudência onde são formuladas as seguintes conclusões:
I. No presente recurso para uniformização de jurisprudência vem impugnado o Acórdão do TCAN proferido no âmbito da acção administrativa especial 614/06.5BECR no qual se decidiu manter a decisão da 1ª instância de anular o acto do administrativo de legalização de alterações ao projecto de obras, datado de 25/11/2005, no âmbito do processo administrativo 1283/01 do Departamento de Urbanismo da Câmara Municipal da Figueira da Foz.
II. Para fundamentar uma tal decisão, entendeu-se que a autarquia não podia licenciar a construção em crise com desprezo pela posição relativa da mesma em relação à construção da autora A……………. Concluiu o aresto em crise que tendo a pré-existente habitação da autora, a nascente, três janelas que estão a menos de 2 metros da fachada lateral direita da construção do contra-interessado, e apesar de esta fachada ser uma parede cega, não podia a edificação do contra-interessado ser licenciada sem violação dos art.ºs 58°, 73°, e 75° do RGEU.
III. Tal decisão mostra-se em total contradição com o Acórdão do STA de 24/09/2009, processo 0707/09, disponível em www.dgsi.pt que debateu situação em tudo similar à dos autos, relacionada com implantação de uma obra a localizar a menos de metro e meio de uma janela existente num prédio contíguo. Aí se concluiu que “As janelas a que alude o art. 73º (do RGEU) são as do prédio a edificar e não as existentes num imóvel contíguo”.
IV. Com efeito, no Acórdão do STA de 24/09/2009 decidiu-se que a dúvida relativa à interpretação do art. 73° do RGEU, respeitante a “saber se «as janelas» a que se refere são só as previstas no edifício a construir ou também as já existentes num prédio vizinho” tem de resolver-se no primeiro sentido, afinal o único que minimamente se harmoniza com a leitura do preceito (art.º 9°, n.º 2, do Código Civil).” Na verdade, “a norma trata da maneira como as janelas «deverão» ser dispostas, tempo verbal que se refere ao processo e ao resultado ulteriores do traçado delas numa fachada, logo se vê que o preceito alude a janelas futuras e, entretanto, apenas projectadas - e não a janelas preexistentes noutro edifício, cuja disposição se fez no passado e subsiste no presente. Depois, há que notar também que o artigo se ocupa da disposição de janelas, e não da disposição do «muro ou fachada» que lhes sejam fronteiros; e, negá-lo, é ler o preceito ao invés. Portanto, as «janelas» mencionadas no art. 73° são as previstas no projecto a licenciar.”
V. A decisão recorrida vem fundamentada essencialmente no Acórdão do Pleno de 29/05/2007 (rec. 46.946, disponível em www.dgsi.pt). Registe-se, no entanto, que no Ac. fundamento, um dos Juízes Conselheiros - que no Acórdão do Pleno de 29/05/2007, votara ao lado da posição que saiu vencedora - decidiu precisamente no sentido contrário à posição que subscrevera no Pleno. Tal facto, a que o recorrente tem sucessivamente apelado, parece de somenos importância, pois o TCAN e o STA, no âmbito dos recursos apresentados pela autarquia no âmbito do processo 614/06.5BECR, passaram praticamente à margem desta questão.
VI. Todavia, crê-se que não é de ignorar a relevância da orientação perfilhada no Acórdão do STA de 24/09/2009, processo 0707/09, dada a inflexão que ela revela na interpretação das normas em crise e pela importância que essa decisão tem no contexto dos licenciamentos e particularmente no caso concreto em que, mantendo-se a decisão, o contra-interessado terá de demolir a sua habitação.
VII. Dois anos depois do Pleno, um dos seus subscritores perfilha orientação diametralmente oposta, o que significa que, se fosse hoje, a decisão do Pleno seria em sentido favorável ao que aqui será defendido pelo recorrente. Impõe-se, pois, a admissão do recurso em nome de uma clarificação da matéria aqui tratada e como forma de encerrar a incerteza que as decisões proferidas geram junto das autoridades competentes para decidir os licenciamentos.
VIII. Entende o recorrente que a questão de mérito deve ser decidida no entendimento perfilhado no Acórdão do STA de 24/09/2009, pelo que na apreciação e aprovação dos projectos de arquitectura apresentados no âmbito de processos de licenciamento para construção ou reconstrução de edifícios não há que atender à posição relativa das construções vizinhas para aferir do cumprimento, por esse projecto, dos artigos 58, 73° e 75° do Regulamento Geral das Edificações Urbanas.
IX. Ditam esta interpretação razões teleológicas, literais, sistemáticas mas, acima de tudo, razões de justiça que, não merecendo acolhimento, conduzirão a resultados manifestamente iníquos, injustos e desproporcionais. Ao decidir inversamente, o Acórdão recorrido incorreu na violação dos sobreditos preceitos.
X. Consequentemente, deve fixar-se jurisprudência no sentido de que a finalidade de tais normas é a de assegurar condições de arejamento, luminosidade e exposição solar dos novos edifícios ou da reconstrução dos existentes e já não das construções confinantes.
XI. Fixada a jurisprudência no sentido propugnado, deverá a decisão recorrida ser anulada.

A Autora contra alegou para concluir como se segue:
1) O presente recurso para uniformização de jurisprudência não deve ser admitido, porque a questão da interpretação a conferir aos artigos 58º e 73º do RGE já foi determinada pelo Pleno deste Alto STA, que continua válida e operante, verificando-se apenas a existência de um acórdão isolado, proferido em sentido oposto pela Subsecção do Contencioso Administrativo e que não foi objecto de recurso, como poderia, mas que, como é evidente, não coloca em crise aquela decisão do Pleno — cfr. doutrina supracitada no corpo das alegações e cfr. decisão deste STA no presente processo, que decidiu, e bem, não se vislumbrarem “novos factos, argumentos ou razões ou circunstâncias que não tenham sido anteriormente submetidos ao confronto, alterações do regime legal com repercussão na análise da questão ou evolução jurisprudencial ou doutrinária”.
2) O recurso não deve também ser admitido, porque não foi cumprido o duplo ónus previsto no art. 152°, n.º 2, do CPTA, desde logo porque não foi alegada nem provada, pelo recorrente a identidade dos pressupostos de facto (e de direito) entre o Aresto fundamento e o Aresto recorrido que se afigura não existir.
3) Na verdade; embora se desconheça a factualidade ou “situações da vida” discutida no Acórdão fundamento, porquanto este apenas e tão-somente deu «por integralmente reproduzida” a matéria de facto «dada como provada no acórdão «sub censura» ”, tudo parece apontar para que a situação da vida seja totalmente díspar e diversa do caso sub judice, pois, no acórdão fundamento o recorrente refere-se à “existência de uma janela aberta já em fase de licenciamento, mesmo que aberta contrariamente aos comandos legais aplicáveis, nunca poderá ser considerada como de boa fé” — ao contrário do que se passa na situação dos presentes autos em que as janelas da edificação da A. existem há muito.
4) E, note-se bem, talvez precisamente por esse especial motivo é que este STA entendeu que se justificava, nesse específico caso concreto, a introdução de desvios à interpretação perfilhada por aquela jurisprudência superior e uniformizada.
5) Em terceiro lugar, o recurso não deve ser admitido porque a orientação perfilhada no acórdão impugnado está de acordo com a jurisprudência abundante, estabilizada e até mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo (cfr. art.º 152º, nº 3 do CPTA), pois, e isto apenas a título exemplificativo, além dos Acórdãos deste Supremo Tribunal datados de 07.06.94, no rec. 33 836, de 17.06.2003, proc. nº 01854/02, de 07/02/2004, no rec. 47.882, ou de 03/11/2005, no proc. 0939/03, já depois da prolação do Acórdão do Pleno da Secção do STA (de 29/05/2007, no proc. nº 046946), este Alto Tribunal já se pronunciou acerca da interpretação dos arts. 58º e 73.° do RGEU sempre no mesmo sentido (com excepção do isolado acórdão fundamento) e por diversas vezes - referimo-nos aos Acórdãos de 12/06/2007 proferido no proc. 0208/07, de 28/11/2007, no proc. nº 0663/07, e mesmo depois da prolação do Acórdão fundamento, no Aresto de 01/03/2011, no proc. nº 0927/09.
6) Sem prescindir do que se vem de alegar e apenas para o caso de a tort se entender admitir o presente recurso, importa então alegar o seguinte:
7) O entendimento defendido pelo Recorrente é diametralmente avesso ao sentido da jurisprudência, é contrário ao disposto no RGEU, é sobretudo antagónico aos interesses de direito público que estão subjacentes a estes normativos e, em última linha, é desconforme com a Constituição da República Portuguesa, a vários passos.
8) Para alguém que, como nós, lida com esta matéria há várias décadas, é fácil perceber que o legislador pretendeu com estas regras que as habitações sejam dotadas de condições que impeçam o aparecimento de doenças, que podem ser não só danosas para a vida humana individualmente considerada, como para toda a colectividade.
9) O raciocínio sustentado pelo Recorrente radica precisamente no entendimento rejeitado pelo sobredito Aresto do Pleno deste STA, assentando, simplesmente, em argumentos que nada de inovador incorporam face ao que foi uniformemente decidido, antes repetindo razões que entreteciam a corrente jurisprudencial adversa, que foi debatida e afastada neste mesmo aresto uniformizador.
10) Quanto aos “argumentos gramaticais ou literais”, o Pleno deste STA já teve oportunidade de assentar que “É evidente que o argumento literal vale o que vale, porque desde que a interpretação encontre um mínimo de assento na lei o que é determinante é a orientação que resultar do conjunto dos diversos elementos interpretativos” e que o artigo 58.° se encontra inserido “num capítulo com a epigrafe “Da edificação em conjunto” que, ao contrário do que se entendeu no acórdão fundamento revela que se teve em vista regulamentar a edificação atendendo ao enquadramento circundante; à integração da construção ao conjunto edificado em que se vai inserir”.
11) Mais assentando o Pleno do STA que “A defesa de um tal entendimento, ainda que potencialmente suportada por argumentos literais retirados de modo isolado do contexto global do RGEU, contaria frontalmente o espírito não apenas da norma em si (art.º 58º), mas também de todo o diploma, bem como, numa perspectiva mais geral, toda a orientação para que propende a própria actividade administrativa da polícia edilícia, assim como estaria em frontal oposição com a garantia de tratamento igual dos cidadãos que é a exigência que se prima sobre a própria da lei”.
12) Por outro lido, nem se diga que o tempo verbal adoptado pelo legislador no artigo73º apontaria para que o normativo fosse totalmente alheio às janelas pré-existentes num prédio vizinho, pois este argumento é perfeitamente inane, por um lado, porque este artigo não pode ser lido isoladamente, mas sim em articulação sistemática e teleológica com as restantes normas do RGEU e, e, por outro lado e decisivamente, porque o art. 73º do RGEU é mesmo uma concretização do princípio geral do artigo 58°, que é uma norma relacional.
13) E nem se diga, para confundir, que o art.º 58º imporia que o novo construtor se preocupasse com o abastecimento de água potável e com a evacuação inofensiva dos esgotos do prévio vizinho já existente, pois a jurisprudência superiormente fixada e consolidada é sobejamente clara, ao afirmar que o art. 58° é uma norma de natureza relacional na sua 1ª parte, mas não na sua parte final.
14) Quanto aos “argumentos sistemáticos”, os mesmos revelam inanes e totalmente improcedentes, nomeadamente de que os pedidos de licenciamento não exigiriam peças desenhadas dos prédios vizinhos e contíguos, dado que não corresponde à realidade, porque, na verdade, a Portaria nº 232/2008, de 11/03, referida pelo Recorrente exige, nomeadamente no seu número 11º, 3, al. ª c) que, mormente, o projecto de arquitectura contenha, “no mínimo ”Alçados à escala de 1:50 ou de 1:100 com a indicação das cores e dos materiais dos elementos que constituem as fachadas e a cobertura, bem como as construções adjacentes, quando existam”, sendo que os próprios Municípios podem e devem regulamentar esta exigência no respectivo regulamento municipal de acordo com o que a lei (RGEU - cfr. art.ºs 58º, 73º e 75º) determina como aliás é comum e sucede em várias Autarquias.
15) Quanto ao exemplo prático, ressalvado o devido respeito, o mesmo mal se entende, não sendo, pois, claro. Porém, tanto quanto se percebe nem sequer é idêntico ao caso sub judice, sendo aliás deveras distinto, dado que, no nosso caso, o Recorrente licenciou ilegalmente uma ampliação - cfr. n.º 43 da matéria de facto assente.
16) Por outro lado e como é uniformemente aceite pela jurisprudência e dogmática, e segundo o exemplo, se o prédio está em ruína total e se se trata de “reconstruir um novo no seu lugar”, então, não se tratará de uma reconstrução, mas sim de um puro licenciamento de uma nova edificação, devendo este, como é sabido, cumprir as novas regras entradas em vigor em data posterior à edificação originária - nomeadamente as regras que impõem afastamentos, que o legislador consagrou para tutela dos próprios interesses do requerente do licenciamento e da comunidade, como vimos supra. Porém, se fosse realmente uma pura reconstrução em si mesma beneficiaria, como é sabido, do princípio da protecção do existente, previsto no artigo 60° do RJUE - cfr Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes, Fernanda Maçãs, Regime Jurídico da Unificação e Edificação, Comentado, Almedina, pág. 397.
17) Sobre o argumento relativo ao PDM, importa ter presente o que acertadamente refere a este propósito o Aresto recorrido, citando aliás André Folque, in Curso de Direito da Urbanização e da Edificação, Coimbra Editora, pág. 292 e ss., pois as normas do RGEU sobre a edificação em conjunto são imperativas e não supletivas, pelo que não podem ser afastadas ou derrogadas por instrumento de gestão territorial, nem por postura municipal ou licença de operação de loteamento. Dado que se trata de normas de natureza legislativa, pois o RGEU foi aprovado por decreto-lei.
18) Quanto às questões da justiça e da proporcionalidade, as mesmas causam intensa perplexidade, porque o entendimento propugnado no recurso apenas pretende tutelar os requerentes de licenciamentos. Por outro lado, sempre seriam irrelevantes porque a decisão autárquica é desconforme à vinculativa legalidade urbanística. E acresce que a lei não podia permitir uma regulação em que ao mesmo tempo se protegesse a saúde e a vida dos utilizadores das novas edificações com sacrifício de idênticos bens pessoais dos utilizadores de edificações anteriores, ou sem o mínimo de protecção de tão relevantes bens jurídicos deste outro grupo de cidadãos.
19) No que concerne às ideações já conhecidas de direitos subjectivos dos proprietários de prédios vizinhos, de normas do Código Civil e a de constituição de uma suposta servidão sobre os prédios vizinhos que seria constituída por meios não previstos no art. 1547.º do CC, importa referir que, salvo o devido respeito, este raciocínio é ostensivamente errado e uma vez mais demonstra a incompreensão dos interesses subjacentes ao RGEU e, concretamente, a estes normativos.
20) Em causa não está qualquer direito subjectivo dos proprietários de um determinado edifício, mas sim os interesses públicos da saúde e da higiene de todas as pessoas que ocupam os edifícios existentes (sejam proprietários, sejam inquilinos, seja meros ocupantes, não interessa aqui a sua qualidade ou natureza civilística), bem como todas as pessoas que utilizam os edifícios cuja licença é pedida.
21) Em causa não está a protecção da propriedade, através de qualquer suposta servidão, mas antes a imposição de condicionamentos ao direito de propriedade, pois que “o art.º 58.º do RGEU é uma norma relacional que se sobrepõe transversalmente aos planos, destinada a proteger a higiene e saúde das pessoas que utilizem os edifícios existentes e aqueles cuja licença é pedida, independentemente de preocupações quanto a conceder igual aproveitamento da faculdade de construir maior ou menor volume nos prédios contíguos - não se destina a proteger a propriedade mas a impor-lhe condicionamentos - cfr. Ac. do Pleno deste STA, de 29/05/2007, no âmbito do proc. n.º 046946.
22) Como também já disse este Alto STA, “O art° 73° situa-se no domínio das restrições impostas pelo direito público ao direito de propriedade, com base no interesse público da salubridade e estética das edificações, a par das restrições impostas pelo direito privado, designadamente o art.º 1360º do CC, com base em interesses meramente particulares, dos proprietários dos prédios vizinhos.” — cfr. Ac. STA, de 17/06/2003, no proc. 01854/02.
23) Materialmente, os interesses que estão subjacentes à norma são naturalmente públicos, e relativos à higiene e à saúde pública e visam impedir que, por exemplo, se criem os “negros”, que se vêem em algumas casas nas paredes, a disseminação de fungos, bolores e outros agentes que são perniciosos à saúde humana (gerando, nomeadamente, aquelas doenças do foro respiratório, que têm o seu expoente máximo na tuberculose) - é, por isso, que estas normas são relacionais.
24) Não interessa só ao legislador que uma casa em concreto seja salubre, interessa-lhe que todas as edificações, quando em conjunto, garantam reciprocamente essas condições de salubridade. Com efeito, algumas destas doenças respiratórias (como a tuberculose) são altamente contagiosas, não fazendo qualquer sentido, à luz da lei e dos interesses públicos de primeira linha que a mesma visa salvaguardar, que se permitam edificações, a edificar ou a já edificada, onde se verifiquem essas condições de insalubridade e estejam, assim, criadas as condições de potencial contágio entre os ocupantes de uma casa (sejam proprietários, arrendatários, ocupantes) e ao(s)... vizinho(s).
25) E, como é pacificamente aceite, o direito de propriedade não é um direito absoluto, tendo como limite imanente a função social (a respeito da função social do direito de propriedade, v.g. a título de exemplo, o Ac. do STJ, de 05/02/2015, tirado do proc. nº 742/10.2TBSJM.P1.S1), pelo que os interesses privados ou civilísticos, estão, assim, limitados ou comprimidos por este interesse público de primeira grandeza (mormente o da saúde e higiene públicas de todas as pessoas que utilizam ou possam vir a utilizar quer os edifícios existentes quer a construir), valendo este naturalmente mais do que aqueles, que, inclusivamente e em bom rigor, não estão a ser, até de acordo com a ordem de valores e direitos pessoais, correctamente defendidos, posto que criam condições para que surjam doenças que afectam a saúde de quem, contra si próprio, os sustenta.
26) Esta é, assim, a resposta aqueles que sustentam, com fundamento na sacralização do direito de propriedade, forjado em tempos de ignorância (quase romana) das repercussões sociais e colectivas da existência de habitações insalubres, uma compressão pretensamente inadmissível dos direitos de quem constrói. Na realidade, é a função social dos direitos a impor-se a direitos meramente individuais – tudo terrivelmente singelo e verdadeiro.
27) Aliás, em Itália, é um acquis já há muito consolidado que estas disposições são mesmo integrativas da lei civil, ou seja, os interesses públicos são assim interesses privados, sendo esta uma doutrina contra a qual ninguém se rebelou e que é uniformemente aceite pelos Tribunais Superiores Italianos - cfr. doutrina citada no corpo das contra-alegações.
28) Mas, na verdade, neste caso nem existe verdadeira compressão de direitos individuais, dado que o que a lei pretende e visa é proteger os interesses individuais, inclusivamente os do requerente do licenciamento - são normas da mesma natureza daquelas que impõem aos utilizadores de veículos automóveis o uso de cinto de segurança.
29) A evolução da própria sociedade humana e do conhecimento vai justamente no sentido perfilhado pelo acórdão recorrido, e não no vetusto sentido civilístico e preocupado somente com a propriedade que o Município sustenta.
30) Não se trata de constituir qualquer tipo de servidão, trata-se apenas de normas de direito público que estabelecem, no universo de interesses que lhe cabem salvaguardar, uma determinada obrigação de recuo.
31) Atento o exposto e sobretudo de uma perspectiva sistemática, teleológica e conforme à Constituição, o recurso deve improceder e ser fixada jurisprudência no sentido daquele Acórdão do Pleno, mantendo-se o Aresto recorrido.
32) Aqui chegados, é necessário empreender, aliás como sempre, uma interpretação teleológica e sistemática das normas que a compreendam não só nos valores e interesses que visam salvaguardar (sobre isto já nos pronunciámos), mas também no plano de interesses que as mesmas visam acautelar, sendo que não existe norma isso sim, que proíba a aplicação destas normas relacionando-as com as construções já existentes.
33) Estas normas que estabelecem no RGEU afastamentos, têm todas elas, uma visão comum essa visão é criar uma espécie de caixa de protecção ambiental ou de segurança de salubridade (nos prismas luz, ar e sol) das edificações erigidas ou a erigir. E, precisamente, tal é assim para que quem usa as habitações (todos nós) tenhamos níveis de existência não só agradáveis, como, sobretudo, tenhamos uma existência que diminua os riscos de contrair e, depois, propagar, doenças contagiosa por falta de luz, arejamento e insolação suficientes - cfr. o nosso RGEU Afastamentos entre edificações – Jurisprudência e anotações - pp. 36 e 37.
34) Depois, e em primeiro, se virmos os interesses subjacentes às normas e os perigos que as mesmas visam diminuir ou afastar, não tem sentido que as mesmas sejam vistas apenas como uma imposição relativa às edificações licenciadas.
35) Com efeito, e apelando ao elemento sistemático, temos que este Capítulo II determina o alcance regulador da norma “Da edificação em conjunto”, ou seja, o que o legislador está a tratar neste capítulo não é de exigências relativas a uma edificação isolada, mas de exigências que estatui relativamente a edificações vizinhas … umas em relação às outras … sendo que naturalmente, o legislador não podia ignorar que Portugal já estava era grande parte construído…!
36) Em segundo lugar, não tem qualquer sentido - qualquer moral, qualquer boa fé, qualquer proporcionalidade, qualquer razão técnica, qualquer justificação do ponto de vista dos interesses já evidenciados, qualquer justiça -, interpretar as normas em causa como preocupando-se apenas com os ocupantes das habitações licenciandas, deixando desprotegidos os interesses das pessoas que habitam em edificações vizinhas anteriores no tempo.
37) É quase inacreditável que se possa pensar o oposto!
38) A interpretação que o recurso leva a efeito não é só desprovida de razoabilidade como também é inconstitucional, entre o mais, por atentar contra as sobreditas garantias (direito fundamental dos cidadãos a usufruir de um ambiente de vida salubre, sadio e ecologicamente equilibrado - art. 66.° da CRP) e por criar uma flagrante e injustificada discriminação no tratamento de situações que merecem a mesma tutela, de modo que a interpretação conforme à Constituição, garantias dos particulares e igualdade de tratamento imporiam também a solução que vimos de referir – cfr. art.º 13º da CRP.
39) É, pois, inequívoco que a argumentação do recorrente provoca a violação dos normativos vertidos nos art.ºs 58.° e 73.° do RGEU, bem como do art. 66.º da CRP (direito fundamental a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado) e do princípio estruturante da igualdade (art. 13.º da CRP), e é inequívoca a interpretação que se deve seguir das normas em causa, sendo que, efectivamente, deve presumir-se que o legislador sabe a realidade, sabe o que faz e que consagrou as melhores soluções, não devendo interpretar-se, isso sim, restritamente, as normas de que cuidamos (cfr art. 9º do CC).

O Ex.mo Magistrado do M.P. emitiu parecer no sentido de que os Acórdãos em confronto decidiram de forma oposta a mesma questão fundamental de direito aplicando os mesmos preceitos legais a situações de facto substancialmente idênticas e que, por isso, se devia admitir o recurso.
E, no tocante ao seu mérito, pronunciou-se pelo seu provimento pelas razões que, de seguida, se transcrevem:
“O RGEU, tendo em vista a salubridade das habitações, estabelece no Título III regras relativas à altura máxima dos edifícios, aos afastamentos mínimos entre si e às disposições interiores e espaços livres de cada edifício a construir - cf. respectivamente, os artigos 59° a 64° e 65° a 82°.
A teologia da norma do artigo 73° articula-se harmoniosamente com o princípio geral exposto no artigo 58°: o condicionamento das janelas aí estabelecido tem a finalidade de proporcionar condições mínimas de salubridade enunciadas no artigo 58°, ao nível dos compartimentos de habitação referidos no artigo 61°/1, que, por força do disposto no artigo 71°/1, têm de ser “sempre iluminados e ventilados por um ou mais vãos praticados nas paredes, em comunicação directa com o exterior.”
Por isso, a norma do artigo 73° não se destina, em primeira linha, a estabelecer regras para determinar o afastamento entre edifícios ou a sua altura. Estas regras são as que resultam dos artigos 59° a 64°. O artigo 73° limita-se a estabelecer as condições a que ficam sujeitas as janelas impostas pelo artigo 71°/1.
Assim, desde que sejam respeitados os preceitos que especificamente regulam sobre a altura e os afastamentos dos edifícios e não haja outras normas específicas imperativas ou direitos de terceiros a respeitar no caso, o artigo 73°, ainda que conjugado com o artigo 58° não impede a (re)construção de um edifício com parede cega a menos de 3 metros da parede fronteira, ainda que esta esteja dotada de vãos.
Certamente que ao legislador não pode ser indiferente, em matéria de urbanismo, a sorte dos edifícios já construídos, tendo em vista os interesses públicos e privados que neles se manifestam.
…..
Simplesmente, o artigo 73°, na sua letra, na sua inserção sistemática e na lógica do diploma em que se enquadra, ainda que em conjugação com o princípio definido no artigo 58°, estabelece um critério que se destina especificamente a conformar a estrutura e o funcionamento do edifício novo, ainda que em relação com outras estruturas adjacentes.
Se o edifício fronteiro existente deixa de satisfazer esse critério, por efeito da nova construção, há que verificar se isso resulta da violação, por parte do novo edifício, de qualquer norma legal ou direito que devam ser respeitados. Se essa violação não se detecta, então não será por efeito do disposto no artigo 73°, que a nova construção não deve ser licenciada, até porque o respectivo processo de licenciamento não permite verificar qual é a “distribuição interior” do edifício fronteiro já existente.
Os efeitos negativos que possam resultar da construção do novo edifício para as condições do edifício antigo terão de ser por este suportados, ou, eventualmente, superados com intervenção da iniciativa do seu proprietário, se não tiver direito que possa opor ao dono do prédio novo.

Superação essa que não implica, necessariamente, um afastamento mínimo de 3 metros entre fachadas, pois o que o artigo 73° impõe é que o plano das janelas se possa projectar horizontalmente numa distância livre mínima de 3 metros e numa largura mínima de 2 metros, relativamente ao seu eixo.
E isso poderá ser, eventualmente obtido, por exemplo, através da redistribuição do espaço interior, por forma a serem dispensáveis as janelas; ou da obliquação do seu plano, relativamente à empena fronteira, visto que no caso não terá aplicação o artigo 60°, quer porque não se trata de fachadas principais, quer porque só numa delas existem vãos - cf., v.g., os acórdãos do STA, de 03-11-2005, proc. 0939/03, e de 12-06-2007, proc. 0208/07.
Claro que, harmonizados desta forma os interesses públicos e privados em confronto, pode não se dar absoluta protecção ao interesse público (que também é privado do dono do prédio antigo) da máxima salubridade, que certamente já não existia e será sempre uma meta a atingir. Mas a satisfação desse interesse, que também beneficia o dono do edifício, poderá ser prosseguido por este, embora, porventura não lhe possa ser imposto, em nome do interesse público, o comportamento correspondente, se o seu edifício foi construído legalmente, face à denominada garantia da existência ou da manutenção (Bestandsshutz) - cf. ob. cit., p. 121 e s. e o art. 60° do DL 555/99, de 16/12.
Certamente que a dona do prédio antigo veria o seu interesse inteiramente satisfeito se a parede que a afecta recuasse no terreno do seu vizinho, pelo menos até à distância de 3 metros das suas janelas, beneficiando ainda por não ter que efectuar idêntico recuo do edificado no seu próprio terreno. Mas essa solução significava dar prevalência ao seu interesse sem qualquer compensação para o interesse do vizinho, que pretende aproveitar o próprio terreno dentro dos limites legais.
Assim, a menos que possa invocar o direito - nomeadamente adquirido por usucapião - de manter o status quo, que lhe permitia usufruir das condições de arejamento, iluminação natural e insolação anteriores, não deverá ser apenas por efeito dos artigos 58° e 73° do RGEU, que tal direito lhe deve ser conferido.
Estas normas, embora possam pressupor uma relação entre edifícios, destinam-se a garantir as condições de salubridade do prédio novo, e não das condições dos prédios já edificados, cuja salvaguarda, se respeitam a legalidade, resultará da aplicação dessas normas aquando da sua construção e, eventualmente, de outras regras e direitos oponíveis ao dono da nova construção.
Em face do exposto, parece-nos que deve ser fixada jurisprudência em conformidade com o acórdão fundamento e conceder-se inteiro provimento ao recurso.”

Cumpre, pois, decidir.


FUNDAMENTAÇÃO


I. MATÉRIA DE FACTO

A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:
1. Em 23-10-2001, deu entrada na Câmara Municipal da FF, um pedido de licenciamento para “Alteração e Ampliação de Habitação” a que foi atribuído o n.º 1283/01, feito por D………….., relativo a um prédio sito na Rua … , em B... (cfr. fls. 1 e 32 do P.A.);
2. De acordo com o doc. de fls. 16 do P.A. o terreno tem a área de 114,4 m2, a implantação é de 32,4 m2 e a construção é de 64,8 m2, sendo que é referido que “As alterações são a nível da Cave e r/c(fls. 16 do P.A.);
3. Nos doc.s de fls. 17 e 18 do P.A., designado “Estatísticas Liquidações”, consta que a obra se destina a habitação familiar tipo T2, num total de 2 pisos, sendo um acima da cota de soleira e outro abaixo da cota de soleira, que a área de construção para habitação é de 126 m2, que a área total habitável é de 74 m2 e que o volume total de construção é de 252 m2 (fls. 17 e 18 do P.A.);
4. Consta da “Memória descritiva”, nomeadamente, o seguinte:
“(…) O edifício não oferecendo condições de habitabilidade e apresentando pavimentos, tectos, paredes interiores, instalações de águas, esgotos e electricidade sem condições de recuperação, optou-se por proceder à demolição do telhado, de todo o interior do edifício e do alçado posterior.
Após as demolições proceder-se-á a ampliação do mesmo.
(…)
O edifício foi ampliado no alçado de tardoz com a demolição e construção de um novo pano exterior.
As paredes do alçado principal e do alçado lateral esquerdo manter-se-ão, recuando a do alçado lateral direito na zona a ampliar. (…)(fls. 27 do P.A.);
5. Em 11-04-2002, foi aprovado, por despacho do Vice-Presidente da Câmara Municipal o projecto de arquitectura, embora condicionado à entrega de novas peças desenhadas, contemplando um aumento das dimensões dos vãos do quarto e da cozinha no alçado posterior de forma a garantir o cumprimento do art. 71.º do RGEU (fls. 33 a 35 do P.A.);
6. A aprovação a que se refere o ponto 5 foi comunicada ao Contra interessado, através de ofício n.º 008099, de 26-04-2002 (fls. 35 do P.A.);
7. Em 07-06-2002, deu entrada na Câmara Municipal da FF um requerimento, a que foi atribuído o n.º 6507, apresentado por D…………, no qual pedia a junção ao processo das “peças desenhadas (alçadas; planta e corte) de arquitectura em duplicado” “Para cumprimento do que lhe foi determinado através do ofício, de 26/04/2002 (n.º 008099).” (fls. 39 e 40 do P.A.);
8. Através do Ofício n.º 015221, de 23-07-2002, remetido mediante carta registada com A/R, recebida em 25-07-2002, foi comunicado ao Contra interessado que “Relativamente ao processo supra referenciado e face aos elementos apresentados em 02.06.07 informo Vª Ex.ª que se mantém o deferimento do projecto de arquitectura e que se aguarda a apresentação dos projectos de especialidade (…)” (fls. 42 e 43 do P.A.);
9. Em 02-12-2002, o ora Contra interessado apresentou na Câmara Municipal da FF um requerimento, a que foi atribuído o n.º 12002, “para cumprimento do que lhe foi determinado através do ofício de 26-04-2002 (n.º 008099)”, através do qual pedia a junção ao processo dos seguintes elementos e informava que: “Projecto de Estabilidade Acústico, Térmico, Telecomunicações, Ficha Electrotécnica, Águas e Gás foram entregues nas entidades respectivas(fls. 138 e anteriores do P.A.);
10. Em 05-06-2003, foi aprovado pelo Presidente da Câmara Municipal o pedido de licenciamento do projecto de construção, nos seguintes termos:
Deferido nos termos da informação”, a qual, por sua vez, tem, nomeadamente, o seguinte teor:
“O processo contém todos os projectos de especialidades e pareceres necessários das entidades exteriores.
Assim, o pedido está em condições de ser deferido e ser emitida a respectiva licença de obras para alteração e ampliação condicionada ao cumprimento dos pareceres emitidos pela EDP, ITG e empresa E………….., S.A., assim como ao cumprimento da legislação aplicável aos receptáculos postais - D.R. 8/90 de 6/4 com as alterações introduzidas pelo D.R. 21/98 de 4/9.” (…)” (fls. 201 do P.A.);
11. Em 02-07-2003, mediante carta registada com A/R, através do ofício n.º 14935, de 01-07-2003, foi o ora Contra interessado notificado da aprovação a que se refere o ponto anterior (fls. 204 e 205 do P.A.);
12. Em 04-09-2003, foi passado o “Alvará de Obras de Alteração” n.º 520/03, proc. n.º 1283/01, do qual consta, nomeadamente, o seguinte:
“(…) As obras, aprovadas por despacho do presidente da câmara municipal, de 03.06.05, respeita o disposto no PU, bem como o alvará de loteamento (…) e apresentam, as seguintes características:
Tipo de obras a executar: Alteração e Ampliação de Habitação;
Área total de construção: 126 m2; Volume de construção: 253 m3; Área de implantação: ----; N.º de pisos 2, sendo 1 acima da cota de soleira e 1 abaixo da mesma cota; Cércea: 4; N.º de fogos: 1; Uso a que se destina a edificação: Habitação. (…)” (fls. 267 do P.A.);
13. Em 01-10-2003, deu entrada na Câmara Municipal da FF um requerimento da Autora, enviado por telecópia, do qual consta, designadamente, o seguinte:
“(…) A minha habitação possui no seu lado nascente e há mais de 40 anos, três janelas (duas ao nível do rés do chão e uma ao nível do 1º andar) as quais se localizam a cerca de 85 cm do limite da propriedade e da confinância poente do prédio do referido D…………, e que deitam directamente para este.
Esta habitação foi objecto de um Licenciamento de Obras no vosso Processo n.º 12…/01, que tem em vista a demolição e ampliação do edifício.
Após a demolição do Edifício, teve início no dia 22 de Setembro a construção de um novo prédio.
Sucede que a Edificação em causa apresenta anomalias e a violação dos meus direitos de propriedade, porquanto:
♦ Verifica-se in loco que a estrutura de betão armado indicia o não cumprimento do Projecto, nomeadamente os dois últimos pilares do tardoz do alçado lateral direito que não foram colocados no local devido;
♦ O Projecto de Obras não respeita as janelas do meu prédio, nomeadamente não tem em atenção o que a este respeito estipula o RGEU e a Lei Civil, sendo que não consta do mesmo – como devia – a planta lateral do meu prédio, tão-somente a sua frente.
Assim sendo requeiro a V. Ex.cia se digne urgentemente:
♦ Mandar proceder à fiscalização da obra;
♦ Mandar constatar as janelas existentes e as quais o Engenheiro Camarário na apreciação do projecto não teve na devida consideração; (…)” (fls. 273 e 274 do P.A.);

14. Em 30-10-2003, foi elaborada uma “Participação” por ……………., Fiscal Municipal da Câmara Municipal da FF, servindo como testemunha ………….., também Fiscal Municipal da mesma Câmara, por terem verificado que o ora Contra interessado teria infringido as disposições da alínea b) ponto 1 do art. 98.º do Dec.-Lei 555/99, com a redacção do Dec.-Lei 177/01, já que “pelas 10.30h do dia 29.10.2003 que o Munícipe acima mencionado, está a levar a efeito a alteração e ampliação de uma habitação sita na Rua …, B..., a que se refere o processo n.º 1283/01, em desacordo com as condições de licenciamento, pois demoliu todas as paredes existentes, construindo outras novas, não cumprindo com a tela comparativa do referido processo.” (fls. 276 do P.A.);


15. De acordo com a informação da Câmara Municipal da FF, de fls. 281 do P.A.
“1 - Face à informação dos serviços de fiscalização e auto de notícia de 30/10/03, constata-se que estão a ser realizadas obras em desacordo com o projecto aprovado, infringindo assim o disposto na alínea c) do n.º 2 do art. 4.º do Dec.- Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Dec.- Lei n.º 177/01 de 4 de Junho.
2 – Assim, propõe-se:
Efectuar o embargo da obra, com auto de medição, ao abrigo do disposto no art.º 102.º do mesmo diploma legal;
Notificar o requerente para no prazo de 30 dias, apresentar projecto para eventual legalização das obras realizadas em desconformidade com o projecto aprovado;
Informar a munícipe com req.to na folha 213, deste procedimento.”;
16. Tal informação mereceu o seguinte despacho do Chefe de Divisão com competências subdelegadas, com data de 13-11-2003:
Concordo com a informação técnica.
Propõe-se proceder como se informa no ponto 2
1- Embargar a obra
2 – Notificar o requerente
3 – Informar a munícipe do procedimento
À consideração superior(fls. 281 e 281 v.º);
17. De acordo com doc. de fls. 287 do P.A., o Presidente da Câmara, em 23-12-2003, decidiu embargar a obra;
18. Através do Ofício n.º 77, de 05 de Janeiro de 2004, a Autora foi informada da decisão de embargar a obra, tomada pelo Presidente da Câmara Municipal, bem como de que o Contra interessado tinha o prazo de 30 dias para apresentar projecto de eventual legalização das obras levadas a efeito (fls. 289 do P.A.);
19. No dia 4 de Fevereiro de 2004, foi elaborado o “Auto de Embargo de Obras”, tendo do mesmo sido dado conhecimento ao pedreiro que estava na obra, de nome F……………, dele constando uma descrição do estado actual dos trabalhos (fls. 292 do P.A.);
20. Em 14-01-2004, deu entrada na Câmara Municipal da FF, um requerimento da A. no qual alertava a autarquia para o facto do ora Contra interessado, ao invés do que estava no projecto, que previa a construção de um telheiro, estar a construir uma varanda, o que levaria “à violação dos meus direitos, pelas vistas sobre o meu prédio, as quais nunca existiram.” (fls. 295 do P.A.);
21. O Director de departamento mandou informar a Requerente que “a obra objecto de reclamação está embargada, e que o seu proprietário foi notificado para apresentar projecto de eventual legalização das obras levadas a efeito em desacordo com o projecto aprovado.” Mandou informar, ainda, que “não se detecta nas obras realizadas qualquer violação de direito público, sendo as questões de direito privado tratadas nos respectivos tribunais.(fls. 305 do P.A.);
22. Em 18-03-2004, deu entrada na Câmara Municipal da FF um requerimento da Autora, do qual consta, designadamente, o seguinte:
“ Em carta datada de 13 de Janeiro próximo passado deu conhecimento a V.ª Ex.cia que o titular do Processo – D……….. – se preparava para construir uma varanda do lado sul do prédio em edificação, acabando com o telhado do telheiro previsto, e substituindo uma janela por uma porta;
- Sucede que o mesmo além de fazer a varanda, não fez nenhuma das janelas previstas na planta, transformando-as a seu belo prazer em duas portas;
- De igual modo o muro que separa o meu prédio, a poente, encontra-se em desrespeito do projecto aprovado;
Daqui resulta desde logo que desrespeitou o embargo decretado, sendo QUE A OBRA NUNCA PAROU DESDE O MOMENTO DO EMBARGO E ATÉ HOJE, donde exijo que procedam em conformidade legal, participando os factos ao Procurador-Adjunto no Tribunal da FF, sendo que se o não fizerem significará tal que eu terei de tomar as medidas adequadas junto das Entidades que tutelam o Poder Local;
- Em todo o caso, solicito averiguem esta factualidade supra referida, e que me informem das providências levadas a efeito. “ (fls. 307 do P.A.);

23. Através de Ofício n.º 9643, de 7/04/2004, da CMFF, notificado à A. mediante carta registada com A/R, assinado em 08-04-2004, foi-lhe dado conhecimento de que “a obra objecto de reclamação está embargada, e que o seu proprietário foi notificado para apresentar o projecto para eventual legalização das obras levadas a efeito em desacordo com o projecto aprovado. Informo, ainda, que não se detecta nas obras realizadas qualquer violação de direito público, sendo as questões de direito privado tratadas nos respectivos tribunais.” (fls. 308 do P.A.);
24. No dia 15-04-2004, deu entrada na CMFF um requerimento, a que foi atribuído o n.º 3472, do ora Contra interessado, pedindo a junção ao processo do “projecto de alterações” (fls. 322 do P.A.);
25. De acordo com o documento designado “Alteração ao Projecto Licenciado de Alteração/Ampliação de Habitação de D……………..” e da respectiva “Memória Descritiva”, entregue com o requerimento referido em 24 supra
“As alterações que agora se propõe resultaram fundamentalmente de, ao demolirem parte das paredes exteriores e a totalidade do interior, verificou-se que as que inicialmente eram para manter, não apresentavam condições de estabilidade, pondo em risco um prédio vizinho e a própria estrada.
Assim, procedeu-se à demolição de todas as paredes conforme descrito em livro de obra e executou-se de imediato um muro de suporte, evitando-se assim aluimentos e/ou assentamentos indesejáveis.
Por outro lado alterou-se a compartimentação interior, tendo em vista um melhor aproveitamento do espaço coberto, sendo que a cobertura do alçado posterior foi transformada em varanda.
Assim a área de implantação do edifício manteve-se a mesma e a compartimentação foi reprogramada, passando-se a dispor da seguinte disposição:
Cave – Cozinha, Sala de jantar e de estar e W.C.
R/Chão – 2 Quartos, escritório e W.C.
Escadas de acesso da cave para o R/Chão.
Manteve-se a traça e cércea do alçado principal, apresentando nos alçados laterais o elemento varanda. No alçado posterior a cobertura do alpendre foi substituída por uma varanda, com a abertura de duas portas para a mesma.
Todos os restantes elementos construtivos do projecto inicial bem como os acabamentos se mantiveram conforme o projecto licenciado.
Todas as alterações ao projecto licenciado obedeceram a todas a regulamentação em vigor.” (fls. 319 do P.A.);
26. Na sequência do requerimento a que se referem os pontos 24 e 25 supra, foi elaborada informação, em 07-05-2004, pela CMFF, aprovada superiormente em 11-05-2004, nomeadamente, com o seguinte teor:
(…) 2 – O projecto de arquitectura apresentado, sob o req.to n.º 3472 de 15/04/04, encontra-se incompleto:
O termo de responsabilidade do autor não faz referência ao cumprimento do Plano de Urbanização – PU;
Faltam cortes e plantas descritivas com a indicação das áreas dos compartimentos de acordo com o art.º 66.º do RGEU;
Nas peças desenhadas comparativas, as paredes exteriores e fachadas devem ser representadas com a cor azul pois são para legalizar.
3 – O projecto carece ainda de rectificação de forma a garantir um afastamento mínimo de 3 metros dos pilares da varanda à extrema posterior, cumprindo-se os art.ºs 73.º e 75.º do RGEU.
Os topos da varanda devem ter uma parede resguardo com 1.80 metros de altura, cumprindo os art.ºs 1360.º e ss. do Código Civil. (…)(fls. 324 do P.A.);
27. Esta informação foi notificada ao ora Contra interessado, através do Ofício n.º 14204, de 19-05-2004 (fls. 325 do P.A.);
28. Em 16-06-2004, deu entrada na CMFF um requerimento da Autora no qual esta pedia que lhe fosse dado conhecimento
“das demandas desencadeadas por este (Contra interessado), nomeadamente no que respeita à legalização das obras levadas a efeito em desacordo com o projecto aprovado.
Mais requer se digne comunicar-lhe da situação da varanda do lado sul do prédio em edificação por aquele, nomeadamente quanto à eliminação do telheiro previsto, e substituição de uma janela por uma porta.
Finalmente solicito me informe se mandou dar conhecimento ao Procurador-Adjunto no Tribunal da FF da desobediência ao embargo decretado.” (fls. 338 do P.A.);
29. Em 11-06-2004, o ora Contra interessado apresentou à CMFF novo Requerimento, a que foi atribuído o n.º 5510, apresentando “Projecto de Alterações”, o qual mereceu a seguinte informação da Câmara de 29-10-04, aprovada superiormente no mesmo dia:
“Face à situação do processo propõe-se:
1 – Notificar o requerente para, no prazo de 45 dias, apresentar projecto de alterações (legalização) devidamente instruído porquanto o apresentado apresenta deficiências nas peças desenhadas, nomeadamente: erros de representação e cotagem, bem como falta de cortes. Deverá, ainda, esclarecer a nova delimitação do prédio;
2 – Solicitar aos serviços de fiscalização que se desloquem ao local, a fim de informar se o embargo está ou não a ser respeitado, actuando em conformidade.” (fls. 326 a 336 e 340 do P.A.);
30. Através de Ofício n.º 032841, de 10-12-2004, a CMFF informou, mediante carta registada com A/R, assinado em 13-12-2004, o ora Contra interessado do teor da informação a que se refere o ponto 29 supra (fls. 341 do P.A.);
31. De acordo com a informação dada pelos fiscais da CMFF, C... e ………., com data de 25-01-2005, em cumprimento do solicitado em 29-20-04, “A obra encontra-se parada e de acordo com o auto de medição expresso no Embargo de Obras(fls. 343 do P.A.);
32. Através do ofício n.º 004011, de 15-02-2005, remetido mediante carta registada com A/R, assinado em 16-02-2005, a CMFF informou a Autora de que
“O projecto de alterações (legalização) encontra-se em fase de apreciação;
A obra encontra-se parada e de acordo com o auto de medição expresso no Embargo de Obras;
Não se detecta nas obras qualquer violação de direito público, sendo as questões de direito privado tratadas nos respectivos tribunais.” (fls. 345 e 346 do P.A.);
33. Em 08-03-2005, deu entrada na CMFF um novo requerimento da A. essencialmente com o mesmo teor da presente p.i. (fls. 348 a 355 do P.A.);
34. Em 16-03-2005, o ora Contra interessado apresentou novo requerimento, a que foi atribuído o n.º 2496, entregando projecto de alterações (fls. 356 a 373 do P.A.);

35. Em resposta a tal requerimento, foi o Contra interessado notificado pela CMFF, mediante carta registada com A/R, assinado em 30-05-2005, de que dispunha do prazo de 15 dias para apresentar os seguintes elementos:
“Peças desenhadas comparativas com a pretensão representada em termos de cores convencionais. A cor preta, a parte existente/licenciada; a cor vermelha a parte nova a construir; a cor amarela, a parte a demolir; a cor azul, a parte a legalizar;
Termo de responsabilidade do autor do projecto de arquitectura correctamente redigido, no que diz respeito à data e conforme Anexo I da Portaria n.º 1110/2001 de 19/09;
Aditamento à memória descritiva esclarecendo devidamente a nova delimitação do prédio e a construção do muro divisório da propriedade;
Planta de implantação às escalas de 1/100 e 1/200 com a delimitação das estremas do prédio a carmim e indicação em legenda da sua área;
Aditamento às peças desenhadas de forma a cumprir com o art.º 66.º do RGEU.” (fls. 377 e 378 do P.A.);
36. Em 25-07-2005, o ora Contra interessado apresentou novo requerimento, a que foi atribuído o n.º 7399, com Projecto de Alterações (fls. 379 a 390 do P.A.);
37. Em 02-08-2005, é elaborada informação pela CMFF, a qual mereceu a aprovação do Presidente, em 25-11-2005, em que se propõe, nomeadamente, o seguinte:
2- Quanto ao aditamento apresentado sob o req.to n.º 7399 de 25-07-05, corrige certas deficiências do projecto de arquitectura.
3- Considerando a versão final do projecto de arquitectura de alterações (legalização) – fls. 300, 320, 321 e 322 (peças desenhadas), verifica-se o cumprimento dos parâmetros urbanísticos e regulamentares aplicáveis. A pretensão garante também um enquadramento aceitável no local.
4- Face ao exposto, o projecto de arquitectura de alterações (legalização) reúne condições para merecer aprovação. (…)” (fls. 392 do P.A.);
38. Através de Ofício n.º 029716, de 30-11-2005, enviado mediante carta registada com A/R, assinado em 02-12-2005, foi o mandatário da Autora notificado do seguinte:
“Relativamente ao assunto em epígrafe e em conformidade com o despacho do Presidente da Câmara Municipal de 2005/11/25, informo V. Ex.ª na qualidade de Mandatário Judicial de MPAF que o requerente construiu o seu prédio com uma parede cega, não tendo necessidade de cumprir com o art.º 58.º do RGEU – Regulamento Geral de Edificações Urbanas, tendo apenas que cumprir com o plano em vigor.” (fls. 393 e 394 do P.A.);
39. A mesma informação a que se refere o ponto 38 supra foi notificada à Autora, através de Ofício n.º 029717, de 30-11-2005, enviado mediante carta registada com A/R, assinado em 02-12-2005 (fls. 395 e 396 do P.A.);
40. Através de Ofício n.º 029718, de 30-11-2005, enviado mediante carta registada com A/R, assinado em 02-12-2005, foi o ora Contra interessado notificado, entre outras situações, de que “por despacho do Presidente da Câmara Municipal, datado de 2005/12/10, foi deferido o projecto de arquitectura.” (fls. 397 e 398 do P.A.);
41. Em 03-03-2006, deu entrada na CMFF um requerimento da Autora, a que foi atribuído o n.º 2078, através do qual vem pedir a certificação, a existir, do acto final de legalização das obras, bem como do “seu conteúdo, autoria e data, incluindo-se aqui também o conteúdo, autoria e data de todas as informações ou pareceres que sustentaram esse ato de legalização e ou as plantas (a amarelo, vermelho e azul) correspondentes à versão da legalização e licenciamento autorizado.(fls. 531 e 532 do P.A.);
42. Através de carta registada com A/R, assinado em 18-04-2006, foi o Mandatário da Autora notificado de que “se encontra a pagamento as cópias autenticadas com valor de certidão, podendo para o efeito proceder ao levantamento das mesmas mediante o pagamento de 8,80€ (oito euros e oitenta cêntimos), no Departamento de Urbanismo desta Câmara Municipal(fls. 539 e 540 do P.A.);
43. Através de carta registada com A/R, assinada em 17-04-2006, foi o ora Contra interessado notificado pela CMFF do seguinte:
ASSUNTO: LICENCIAMENTO DE OBRAS PARTICULARES
Comunicação da resolução final – Proc.º n.º 1283/01
Nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 71.º, 76.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16/12, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 177/01, de 4 de Junho, NOTIFICO V.ª Ex.ª de que por despacho proferido pelo Presidente da Câmara Municipal em 2006.04.06, foi/foram aprovado(s) o(s) projecto(s) que constitui/constituem o processo em epígrafe e relativo(s) ao projecto que apresentou para a LEGALIZAÇÃO de ALTERAÇÃO À AMPLIAÇÃO DE HABITAÇÃO, sita na R… – B.... (…)” (fls. 545 e 546 do P.A.);
44. De acordo com o documento de fls. 563 do P.A., constituído pela “LICENÇA PARA OBRAS”, o Alvará de Licença (inicial) n.º 520/03, emitido em 4 de Setembro de 2003, com validade até 4 de Setembro de 2004, teve o prazo prorrogado com o n.º 394 emitido em 03 de Maio de 2006, válido até 03 de Dezembro de 2006.
45. A presente acção deu entrada no Tribunal no dia 20-07-2006 (fls. 1 dos Autos).


II. O DIREITO.
Resulta do antecedente relato que A……………………. intentou, no TAF de Coimbra, contra o Município da Figueira da Foz, acção administrativa especial pedindo a anulação do acto da respectiva Câmara que licenciou as obras de reconstrução de um prédio pertencente ao contra interessado D……………….., contíguo ao prédio de habitação da Autora. Para o que alegou que aquele licenciamento violava o disposto nos art.ºs 58.º, 73.º e 75.º do RGEU na medida em que a reconstrução licenciada não respeitava os afastamentos exigidos nessas normas já que iria provocar uma redução significativa da iluminação, arejamento natural e da exposição aos raios solares do seu prédio.

O Tribunal de 1.ª instância julgou a acção procedente e, em consequência, anulou o acto impugnado.

Decisão que o TCAN confirmou, por Acórdão de 16/01/2015, por considerar que as apontadas disposições obrigavam a que a Câmara só licenciasse uma construção ou reconstrução de um prédio quando fosse seguro que elas não iriam reduzir a exposição solar, o arejamento e a iluminação natural dos prédios contíguos pois que, ocorrendo essa redução, se violariam essas normas. E isto porque as mesmas eram normas relacionais destinadas a proteger não só a saúde e a higiene das pessoas que iriam habitar o novo prédio como a saúde e a higiene das que residiam nos prédios contíguos. Daí que se a construção objecto do licenciamento privasse os prédios pré-existentes das condições de que beneficiavam haveria que concluir pela violação de tais disposições. Sendo assim, e sendo que, no caso, “dos elementos disponíveis, mormente do que resulta dos factos provados, evidencia-se que o Município não teve em consideração no licenciamento as normas dos art.ºs 58.º,73.º e 75.º do RGEU, o que se mostra irregular, tal como decidido pelo Tribunal a quo” não havia que censurar a decisão que este tomara.

Inconformado, o Réu interpôs recurso de revista mas este Supremo, em apreciação preliminar, não o admitiu por entender que inexistia, quer na actividade administrativa quer nos tribunais, uma situação de proliferação de conflito sobre esta matéria que justificasse a sua admissão. No entanto, e porque persistiam dúvidas sobre o âmbito de aplicação do art.º 73.º do RGEU e porque se invocava no recurso um acórdão do STA, posterior ao acórdão do Pleno que se pronunciara a favor do entendimento que o Recorrente queria ver reconhecido, o Acórdão da formação considerou que, verificando-se a reunião dos restantes requisitos, “o meio adequado para obter a reponderação da questão será submetê-la ao Pleno mediante recurso para uniformização de jurisprudência (art.º 152.º do CPTA).”

Foi isso o que o Município da Figueira da Foz fez através da interposição do presente recurso, onde alegou que a decisão do TCAN contradiz sobre a mesma questão fundamental de direito o que se decidiu no Acórdão deste Supremo de 24/09/2009 (proc. n.º 707/09).
Cumpre, pois, analisar se ocorrem os requisitos indispensáveis ao seu prosseguimento.

1. Os recursos para uniformização da jurisprudência destinam-se, como é sabido, a obter decisão que fixe a orientação jurisprudencial nos casos em que, sobre a mesma questão fundamental de direito, tenham sido proferidas decisões contraditórias em Acórdãos já transitados do STA, ou deste e do TCA ou entre acórdãos do TCA.
Todavia, e existência dessa contradição não basta à admissão do recurso uma vez que esta só pode ocorrer quando (1) as decisões em confronto estiverem transitadas, (2) os quadros normativos e as realidades factuais subjacentes às decisões contraditórias forem substancialmente idênticas e, por isso, ser evidente que a contradição decorreu unicamente de divergente interpretação jurídica e quando (3) a orientação perfilhada no Acórdão recorrido seja conforme com a jurisprudência mais recentemente consolidada do STA. Sendo certo que este Tribunal tem, ainda, acrescentado como condição de admissão que a contradição de julgamentos se refira a decisões expressas e não a julgamentos implícitos. Vd. art.º 152.º/1 do CPTA e, a título de exemplo, Acórdãos do Pleno da 1ª Secção de 16/09/2010 (proc. 262/10), de 18/10/2010 (proc. 355/10), de 18/11/2011 (proc. 482/11) e de 12/11/2015 (rec, 835/13).

Sendo assim, e sendo que os Arestos ora em causa já transitaram e que a sua realidade factual e jurídica é substancialmente idêntica, resta analisar se a alegada contradição de julgamentos existe e se ela decorreu unicamente de divergente interpretação da lei.

2. Em ambos os casos, estamos perante actos de licenciamento de obras de construção (Acórdão fundamento) ou reconstrução (Acórdão recorrido) cuja ilegalidade decorria, alegadamente, dos afastamentos exigidos pelos art.º 58.º e 73.º do RGEU das janelas dos seus compartimentos relativamente às fachadas dos prédios vizinhos não respeitarem as distâncias neles prevista e de tal ter provocado a redução da exposição solar, do arejamento e da iluminação natural dos edifícios já construídos.
Por isso a questão que se colocou nos Acórdãos em confronto foi a de saber se o disposto nos identificados preceitos se aplicava apenas às novas construções ou se tais normas também se destinavam a preservar as referidas condições nos edifícios já construídos.

O Acórdão recorrido, invocando o Acórdão do Pleno de 29/05/2007 (rec. 46946), pronunciou-se pela segunda das referidas alternativas por considerar que o art.º 58.º do RGEU era uma norma relacional “destinada a proteger a higiene e saúde das pessoas que utilizem os edifícios existentes e aqueles cuja licença é pedida, independentemente de preocupações quanto a conceder igual aproveitamento da faculdade de construir maior ou menor volume nos prédios contíguos” e que, sendo assim, a mesma, conjugada como se dispunha no art.º 73.º, obrigava a que os novos prédios tivessem um determinado afastamento em relação ao edifício vizinho já construído. Daí ter concluído que as citadas normas eram aplicáveis “à construção objecto de novel licenciamento, importando verificar da sua aplicabilidade e conformidade face às edificações preteritamente construídas e que lhe estão adjacentes.” Sendo assim, e sendo que se mostrava “provado que na apreciação do processo de legalização/licenciamento da obra controvertida levada a cabo pelo Município, não foi considerada e ponderada a construção preexistente e adjacente, na perspectiva, designadamente, dos artigos 58.º, 73.º e 75.º do RGEU, não merece censura a decisão de 1ª Instância ao anular o acto objecto de impugnação, consubstanciado na legalização de alterações ao identificado processo de licenciamento, de 25 de Novembro de 2005.”

O Acórdão fundamento, por seu turno, analisou e decidiu questão da legalidade de “um acto de indeferimento do pedido de licenciamento de uma construção, acto esse motivado por a projectada implantação da obra a localizar a menos de metro e meio de uma janela existente num prédio contíguo, o que ofenderia o disposto nos art.ºs 1362.º do Código Civil e 73.º do RGEU e impediria o licenciamento nos termos do art.º 24.º, n.º 1, al.ª a) do DL 555/99, de 16/12." E o mesmo, depois de descartar a possibilidade da invocada norma do CC ter aqui alguma potencialidade anulatória - visto o que dele constava se dirigir à salvaguarda de interesses particulares que nada têm a ver com a defesa de interesses públicos merecedores de protecção imperativa – mencionou que o citado “art.º 73º tem suscitado a dúvida de saber se «as janelas» a que se refere são só as previstas no edifício a construir ou também as já existentes num prédio vizinho. Ora, essa dúvida tem de resolver-se no primeiro sentido, afinal o único que minimamente se harmoniza com a letra do preceito (art. 9º, n.º 2, do Código Civil)”. E, porque assim, concluiu que o “licenciamento de uma obra não pode ser recusado a pretexto de que ela pode ferir uma servidão de vistas constituída em proveito de um prédio limítrofe”, uma vez que “as «janelas» a que alude o art. 73º do RGEU são as do prédio a edificar, e não as existentes num imóvel contíguo.”
Daí que tivesse concedido a revista, revogado o Acórdão recorrido e julgado a acção procedente.

É, assim, claro que os Acórdãos recorrido e fundamento, muito embora se tivessem debruçado sobre situações substancialmente idênticas do ponto de vista jurídico e factual, decidiram de forma oposta a questão fundamental de direito que neles se colocava.
Tanto basta para que se conclua pela existência da oposição de julgamentos e pela necessidade dos autos prosseguirem para se apreciar o mérito do recurso.

3. A questão colocada à apreciação deste Tribunal é, pois, como se vê, a de saber se o licenciamento da construção (ou reconstrução) de um prédio que não respeite os afastamentos legalmente exigidos no que toca às janelas dos seus compartimentos em relação às fachadas da habitação contígua e, por essa razão, a prive da exposição solar, do arejamento e da iluminação natural de que anteriormente gozava ofende o disposto nos art.ºs 58.º e 73.º do RGEU (Aprovado pelo DL 38.382, de 7/08/1951). Ou seja, e dito de outro modo, o que se nos pede é que decidamos se tais normas são de aplicação exclusiva aos prédios novos ou se a exigência dos referidos afastamentos e a necessidade de assegurar as condições de arejamento, iluminação natural e exposição solar também se destinam a preservar esses benefícios nas edificações pré-existentes e se, portanto, tais normas também são aplicáveis a estes prédios.

A jurisprudência deste Supremo sobre esta matéria tem sido inconstante, podendo indicar-se, a título meramente exemplificativo, como defensores da primeira das apontadas alternativas os Acórdãos de 20/10/99 (rec. 45026), de 24/02/2003 (rec. 46996), de 17/02/2004 (rec. 47882) e de 24/09/2009 (rec. 707/09, Acórdão fundamento) e, sustentando a tese de que tais normas têm natureza relacional e, por isso, também se aplicam às construções pré-existentes, o Acórdão do Pleno de 29/05/2007 (rec. 46946) e os Acórdãos da Secção de 16/07/2007 (rec. 208/07) e de 28/11/2007 (rec. 663/07).

Vejamos, pois.

4. O regime jurídico da edificação encontra-se regulamentado no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), aprovado pelo DL 555/99, de 16/12, e nele se estatuiu que o pedido de licenciamento de obras de construção (ou reconstrução) é indeferido quando elas violarem “plano municipal de ordenamento do território, plano especial de ordenamento do território, medidas preventivas, área de desenvolvimento urbano prioritário, área de construção prioritária, servidão administrativa, restrição de utilidade pública ou quaisquer outras normas legais ou regulamentares aplicáveis.” [art.º 24.º/1/a)]. O que quer dizer que as novas construções cujo licenciamento é pedido têm de respeitar o que consta referidos planos, medidas restritivas ou quaisquer outras normas legais ou regulamentares sob pena de, tal não acontecendo, o pedido ser indeferido.
Deste modo, integrando a normatividade ínsita no RGEU as normas legais referidas no transcrito art.º 24.º e, por essa razão, serem as mesmas susceptíveis de condicionar o deferimento (ou indeferimento) do pedido de licenciamento - visto prevalecerem sobre os instrumentos de planificação do território mais específicos, como os PDMs, os planos de urbanização e os planos de pormenor - haverá que respeitar o que nelas se prescreve por as mesmas, maxime os mencionados art.ºs 58.º e 73.º, continuarem a vigorar e a ser aplicáveis.
Nesta conformidade, e muito embora o Acórdão fundamento tenha fundado a sua decisão unicamente ao art.º 73.º, certo é que a análise dessa norma não pode ser convenientemente compreendida e interpretada se não a filiarmos no que se dispõe no art.º 58.º e não partirmos do que neste se estatui. De resto, foi nessa perspectiva que o Acórdão recorrido laborou e que chegou às conclusões postas em causa neste recurso.

5. O RGEU, publicado num tempo em que os PDM eram inexistentes ou quase inexistentes, foi de uma acutilante modernidade por procurar evitar os males decorrentes da inexistência desses Planos, estabelecendo princípios e regras – uns de carácter geral, outros mais particularizantes - destinados a promover não só a qualidade construtiva de modo a que os novos prédios proporcionassem maior conforto sem agredirem a envolvência ambiental mas também a que tal se pudesse fazer a preços razoáveis.
E, porque assim, esse Regulamento apelou não só a que se adoptassem novos processos que conciliassem a pretendida melhoria construtiva “com imperiosidade de as construir a preço tal que as suas rendas se compadeçam com a escala de níveis de proventos dos futuros ocupantes”, como a que se cuidasse da “conveniente insolação e iluminação das dependências de habitação ou de trabalho, isolamento contra o frio e calor excessivos, protecção contra os ruídos incómodos, defesa das condições de vida e intimidade ….” e das condições estéticas do ambiente local, criando novos motivos de beleza e preservando ou aperfeiçoando os já existentes, tudo de modo a tornar a vida da população mais sadia e agradável e a dar aos núcleos urbanos e rurais um desenvolvimento correcto, harmonioso e progressivo”. – vd. o seu preâmbulo. – O que evidencia que a primeira preocupação do legislador daquele diploma foi a de que a futura construção se fizesse de forma que reunir as melhores condições de salubridade, estética, solidez e segurança.
E, por isso, estabeleceu uma série de regras e princípios que, como se lê nesse preâmbulo, interessavam em primeiro lugar aos “serviços de Estado e corpos administrativos - a estes em especial – pela sua função directiva e disciplinadora” mas também aos técnicos a quem cabia conceber, projectar e executar a edificação, dotando-a das condições que a lei queria ver alcançadas. Tudo com vista a garantir aos futuros utilizadores dessas construções que estas “terão sido erigidas e se manterão de modo a proporcionar-lhe condições vantajosas para a sua saúde e bem-estar; e que, como habitante do aglomerado, poderá desfrutar com segurança o ambiente sadio e esteticamente agradável ….”

O que, desde logo, indicia que os objectivos do RGEU se dirigiram a ser concretizados apenas nas novas construções e que, por isso, as suas normas só farão sentido se forem aplicadas aos futuros licenciamentos e às novas edificações e que, sendo assim, salvo a existência de qualquer norma exceptiva, as mesmas não se aplicarão aos prédios já edificados. Tanto mais quanto é certo que, em matéria de licenciamentos, o que releva é a apreciação da conformidade da nova construção com o bloco de legalidade aplicável, maxime o RGEU, e não verificar a conformidade das construções pré-existentes sem que, com isso, se olvide que as construções já edificadas poderão, na maioria das vezes, também beneficiar na salubridade, arejamento, iluminação e estética por via da sua aplicação.
Podemos, pois, concluir, que salvo indicação em contrário, as normas do apontado diploma só serão aplicáveis às futuras construções. Princípio que, como veremos, também se aplica aos art.ºs 58.º e 73.º ora em causa.

6. Com efeito, e tendo em vista a concretização dos apontados objectivos, o art.º 58.º do RGEU estatuiu:
“A construção ou reconstrução de qualquer edifício deve executar-se por forma a que fiquem assegurados o arejamento, iluminação natural e exposição prolongada à acção directa dos raios solares, e bem assim o seu abastecimento de água potável e a evacuação inofensiva dos esgotos.
§ único - As Câmaras Municipais poderão condicionar a licença para se executarem obras importantes em edifícios existentes à execução simultânea dos trabalhos acessórios indispensáveis para lhes assegurar as condições mínimas de salubridade prescritas neste regulamento.”

A primeira observação que a leitura desta norma nos suscita é a de que a mesma tem carácter meramente proclamatório já que nele se fixam objectivos de natureza geral - o arejamento, iluminação natural e exposição prolongada aos raios solares da nova habitação e, bem assim, o seu abastecimento de água potável e a evacuação inofensiva dos seus esgotossem estabelecer quaisquer prescrições concretas relativamente ao modo como esses objectivos serão alcançados. Indicações que só se encontram nos normativos que se lhe seguem os quais, sendo-lhe complementares, dão corpo àquela estatuição fixando em concreto os parâmetros da execução da obra quer no tocante à altura dos edifícios (art.º 59.º), à distância entre fachadas (art.º 60.º e 61.º), aos logradouros (art.º 62.º), aos afastamentos das janelas do novo prédio aos muros ou fachadas dos prédios fronteiros (art.º 73.º) e às varandas e alpendres (art.º 75.º), etc.
E essa forma vaga e não concretizada de proclamação de um princípio geral, juntamente com a indeterminação dos seus conceitos e a sua indissociável ligação aos artigos que se lhe seguem, levam-nos a concluir que se as exigências insertas nessas normas forem cumpridas não será o disposto no art.º 58.º que poderá determinar o indeferimento de um pedido de licenciamento. E isto porque se o projecto e a sua execução respeitarem as exigências mencionadas naqueles preceitos – que, como se disse, visam assegurar o arejamento, a iluminação natural e a exposição solar do novo prédio exigidas pelo art.º 58.º - como se poderá afirmar que os objectivos nele definidos não se encontram preenchidos e que, por isso, a nova construção viola o que nele se dispõe? E, não fazendo esta norma, ao invés do que acontece com vários dos artigos que se lhe seguem, qualquer referência aos prédios vizinhos ou confinantes, é forçoso concluir que a mesma se dirige aos edifícios a construir e não nos já construídos como, aliás, ressalta do tempo verbal da sua formulação - construção ou reconstrução de qualquer edifício deve executar-se por forma a que fiquem assegurados o arejamento, iluminação natural e exposição prolongada à acção directa dos raios solares (sublinhado nosso). - Por ser assim é que, mostrando-se cumpridos os condicionamentos prescritos nos normativos seguintes ao art.º 58.º, haverá que acompanhar o Sr. Procurador-Geral Adjunto quando afirmou que “Os efeitos negativos que possam resultar da construção do novo edifício para as condições do edifício antigo terão de ser por este suportados, ou, eventualmente, superados com intervenção da iniciativa do seu proprietário, se não tiver direito que possa opor ao dono do prédio novo.”
Podemos, pois, concluir que os propósitos do art.º 58.º do RGEU se ativeram à qualidade da construção ou reconstrução objecto do licenciamento e que o mesmo não cuidou das condições dos edifícios vizinhos já existentes que, de resto, não lhe mereceram qualquer referência, directa ou indirecta, no seu texto.

7. E o mesmo se diga do art.º 73.º, norma que se encontra incluída no Título III do RGEU – com a epígrafe «Condições especiais relativas à salubridade das edificações e dos terrenos de construção» - onde, a propósito dos afastamentos das janelas do novo prédio em relação ao prédio pré-existente, se estabeleceu o seguinte:
“As janelas dos compartimentos das habitações deverão ser sempre dispostas de forma que o seu afastamento de qualquer muro ou fachada fronteiros, medido perpendicularmente ao plano da janela e atendendo ao disposto no artigo 75.º, não seja inferior a metade da altura desse muro ou fachada acima do nível do pavimento do comportamento, com o mínimo de 3 metros. Além disso não deverá haver a um e outro lado do eixo vertical da janela qualquer obstáculo à iluminação a distância inferior a 2 metros, devendo garantir-se, em toda esta largura, o afastamento mínimo de 3 metros acima fixado.”

Esta disposição, ao exigir que as janelas dos compartimentos do prédio a edificar fiquem a uma certa distância dos muros e fachadas dos edifícios fronteiros já construídos, destina-se, como é bom de ver, a assegurar as condições de iluminação, arejamento e insolação do novo prédio ainda que, indirectamente, dela possam também beneficiar os prédios pré-existentes. Deste modo, acompanha-se o decidido no Acórdão fundamento, quando nele se afirmou que o art.º 73.º trata “da maneira como as janelas «deverão» ser dispostas, tempo verbal que se refere ao processo e ao resultado ulteriores do traçado delas numa fachada” e que o mesmo “alude a janelas futuras e, entretanto, apenas projectadas – e não a janelas preexistentes noutro edifício, cuja disposição se fez no passado e subsiste no presente”. Sem que daí se possa retirar que o mesmo permite ignorar a realidade já edificada e que esta também não possa sair beneficiada.

Não se pense, por isso, que este art.º 73.º impede que o novo prédio seja construído até ao limite do terreno onde é erigido visto que o que nele se estatui é, apenas e tão só, que o afastamento aí prescrito só tem de ser respeitado se na fachada do novo prédio forem abertas janelas e estas deitarem para o prédio já construído e ficarem a menor distância do que prevista. Daí que nada impeça que o novo prédio ocupe todo o terreno até ao limite deste e que, por essa razão, a sua fachada confrontante com o prédio vizinho fique a menor distância deste do que a estabelecida no art.º 73.º se naquela fachada não for aberta qualquer janela. O que significa que o disposto nesta norma não pode servir de fundamento a que se obrigue o proprietário do novo prédio a, em qualquer circunstância, cumprir os afastamentos aí previstos. E, porque assim é, o licenciamento só pode ser recusado se se constatar que na fachada da nova construção está prevista a abertura de janelas e que estas se situam a distância menor do que a fixada naquela norma.
A não ser assim o mero licenciamento de um prédio importaria a constituição de um direito real de servidão sobre os prédios vizinhos em favor do beneficiário do primeiro licenciamento, por meios não estabelecidos no art.º 1547.º do CC.

Com efeito, se se entendesse que aquele art.º 73.º também se dirigia ao já edificado e se, por essa razão, se indeferisse o licenciamento de uma nova construção com o fundamento de que a habitação contígua iria ficar afectada nas suas condições de arejamento, insolação e iluminação natural tal significaria que a mera construção de um prédio poderia determinar, por si só, a imediata constituição de uma servidão sobre os prédios vizinhos por meios não estabelecidos no art.º 1547.º do CC. Ou seja, “estar-se-ia a atribuir a um mero acto de licenciamento a simultânea constituição de direito real de servidão em favor do prédio beneficiário daquele licenciamento e, do mesmo passo, em prejuízo dos imóveis confinantes. Os direitos reais, para além do numerus clausus, são apenas aqueles que têm a fonte expressamente prevista (cf. o artigo 1547.° do Código Civil).
O tipo legal do acto de licenciamento de construção não se compadece com semelhante resultado, limitado como é aquele acto à permissão de edificar sem prejuízo dos direitos de terceiros. Por isso mesmo, quem constrói primeiro deve acautelar os eventuais danos que tenha de suportar, face à construção que pretenda efectivar, danos esses emergentes do exercício do direito de propriedade dos vizinhos.” – Acórdão deste Tribunal de 19/01/78 (rec. 10.290).

Acresce que, se assim não fosse, tal como se assinalou no Acórdão deste STA, de 20/10/99 (rec.º n.º 45.026), os licenciamentos nos espaços urbanos iriam ser enorme e incompreensivelmente dificultados uma vez que, como se sabe, na maior parte dos casos, as novas edificações irão “afectar inevitavelmente os prédios já implantados, quer ao nível do seu arejamento quer da sua exposição solar. E, se é certo que aqueles valores não estão completamente ausentes no espírito do legislador, no que tange às construções pré-existentes, não é nesta norma que se poderá encontrar essa protecção mas sim, ainda que, por vezes de uma forma indirecta, ao nível das normas do mesmo RGEU que regulam as distâncias e as cérceas (cfr. art.ºs 59.º e seg.s) bem como das normas dos PDMs, quando estes existam e ainda nas normas do Código Civil que impõem distâncias mínimas relativamente aos prédios contíguos (cfr. art.ºs 1360.º e seg.s) ”.

Em suma: o art.º 73.º do RGEU comporta, assim, uma exigência cuja observância só tem lugar quando a nova construção disponha de janelas na fachada que confronta com o prédio antigo, exigência essa que se destina a proporcionar, em primeira linha, ao novo prédio, maxime aos seus compartimentos cujas janelas deitam para o prédio vizinho, as condições de salubridade, arejamento, iluminação natural e exposição ao sol genericamente prescritas no art.º 58.º, sendo certo, porém, que tais condições também irão beneficiar, ainda que reflexamente, o prédio já edificado.

E idênticas considerações se poderão fazer a propósito do cumprimento do disposto no art.º 75.º do RGEU pois na sua base estão idênticos propósitos.

8. No caso, a Autora, fundada na convicção de que o licenciamento impugnado violava as identificadas normas, queixou-se à Câmara Municipal de que a construção que o Contra interessado estava a fazer não respeitava as distâncias legais acima mencionadas uma vez que a sua habitação tinha, no seu lado nascente, 3 janelas e que estas iriam ficar a distar cerca de 85 cm da confinância poente do prédio que se estava a reconstruir. Ao que acrescia que o Contra interessado, violando o projecto aprovado, também estava a fazer uma varanda no lado sul do seu prédio. O que a levou a requerer a fiscalização da obra para que se confirmasse a sua denúncia e se procedesse como era de lei (pontos 13, 20 e 22 do probatório).
Em consequência dessa denúncia, a fiscalização foi realizada e foi constatado que a obra estava a ser executada com violação do projecto aprovado o que determinou o embargo das obras e a notificação do Contra interessado para que este apresentasse “projecto de eventual legalização das obras levadas a efeito em desacordo com o projecto aprovado”. O que ele fez apresentando um novo projecto que, depois, veio a ser alterado (pontos 14 a 17, 23 a 25, 29, 34, 35 e 36 do probatório).
Depois de ter sido informado pelos serviços camarários que o novo projecto cumpria os “parâmetros urbanísticos e regulamentares aplicáveis”, o Sr. Presidente da Câmara aprovou-o – o acto impugnado - e a Autora foi notificada não só dessa aprovação como de que o Contra interessado tinha construído o seu prédio com uma parede cega pelo que não havia necessidade de se cumprir o art.º 58.º do RGEU (pontos 37 a 39 e 40 e 43 do probatório). Ou seja, no dizer da Câmara, a obra que fora licenciada não tinha de respeitar as distâncias exigidas pelo art.º 73.º (apesar dela, por lapso, referir o art.º 58.º) uma vez que a confinância do novo prédio com o prédio da Autora iria ser feita através de uma parede cega e que tal dispensava o cumprimento do disposto naquela norma. Daí que nada de ilegal pudesse ser apontado ao licenciamento.

Nesta conformidade, cabia à Autora provar que o afirmado pela Câmara não era verdadeiro, isto é, que a nova construção tinha janelas na parede que confinava com o seu prédio e estas não cumpriam as distâncias legais.
Ora, a Autora não logrou provar fazer essa prova.
Com efeito, a Autora não demonstrou que a Câmara da Figueira da Foz tinha licenciado um projecto apesar do mesmo não assegurar os afastamentos impostos nos art.ºs 73º e 75.º do RGEU e, consequentemente, que a nova construção não garantia as condições de salubridade, arejamento, iluminação natural e exposição ao sol prescritas nos citados artigos ao novo prédio e, reflexamente, ao seu. E isto porque não só nenhum dos factos levados ao probatório menciona a violação das distâncias estabelecidas nos citados preceitos como não foi desmontada a afirmação subscrita pelo Sr. Presidente da Câmara ao deferir o licenciamento impugnado de que se verificava o cumprimento dos parâmetros urbanísticos e regulamentaras aplicáveis.
Prova essa que era fundamental para o êxito da acção.
Nesta conformidade, e porque os fundamentos que levaram a Autora a propor esta acção ficaram por demonstrar é inquestionável a sua improcedência.
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em conceder provimento do recurso e em, revogando a decisão recorrida, julgar a acção improcedente.
Fixa-se a seguinte jurisprudência:
As exigências previstas nos artigos 58.º e 73.º do RGEU incidem apenas sobre o projecto submetido à apreciação camarária.

Custas pela Recorrida.

Lisboa, 16 de Junho de 2016. – Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) – Jorge Artur Madeira dos Santos – António Bento São Pedro – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – José Augusto Araújo Veloso – José Francisco Fonseca da Paz – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – Vítor Manuel Gonçalves Gomes (vencido, pelo essencial das razões do acórdão do Pleno de 29/05/2007, P: 46946) – Carlos Luís Medeiros de Carvalho (vencido, no essencial pelas razões constantes do acórdão do Pleno deste Supremo de 29.05.2007. Proc. nº 046946).